domingo, 19 de abril de 2015

Meus últimos dias em Varanasi têm se resumido a, tontamente, repetir os programas de sempre, os lugares de sempre. Como se eles se pudessem eternizar na repetição dos dias. E estes ganhassem pernas próprias para seguir. Pela lei da inércia.
Almocei naquele terraço aonde íamos de vez em quando, no Assi Ghat. Eu sempre ficava no lado do sol, porque fazia frio. E agora, que já está tão quente, escolhi a sombra. É a rotação dos astros. Ou passagem do tempo, como preferir. Já há até mangas nos mercados, mesmo não sendo, oficialmente, verão. Pensei que não chegaria a provar as mangas indianas. E mesmo que seja só o inicinho das colheitas e que ainda não haja muitas variedades e que a que provei nem seja tão saborosa quanto as do Brasil... Testemunhar sua chegada é doce como ter bisnetos.
Comi o arroz com gengibre de sempre. "Arroz é sagrado" - dissera a um amigo outro dia, quando lhe explicava por que ele não deveria ser misturado com nenhum molho. O outro prato era apenas figuração. Não é à toa que os paulistas o chamam de mistura - descobri recentemente. Apesar de que, repito, no arroz não se deve misturá-lo.
Depois voltei caminhando pela avenida, olhando as lojas, pensando nas últimas compras. Vi alguma roupa em tecido cru e me voltou a obsessão. Entrei para perguntar. O moço mostrou-me algumas blusas:
- Cores naturais.
Eram amarelas e beges, mas não eram, exatamente, cores naturais.
- Eu queria como aquelas do lado de fora.
- Aquelas foram desbotadas pelo sol. Mas você quer comprá-las?
- Não, obrigada.
Assim não valia.
Quando saí, o outro homem que estava na loja veio atrás de mim:
- Você tem interesse por tecidos orgânicos? Venha comigo.
A vida toda na Índia consiste no conflito entre se deixar levar e resistir.
Deixei-me.
Percorremos algumas ruelas até chegar a esse galpão. Havia rolos e rolos de tecidos, embora eu preferisse roupas prontas mesmo. Ele foi me mostrando:
- Estes são os sintéticos. Estes são os de origem animal. E este são os orgânicos, de origem vegetal. Você tem que deixá-los na água antes de mandar fazer a roupa. Porque encolhem depois de molhados.
Saí de lá com dez metros de tecido e sem saber o que fazer com aquilo. Até hoje tenho no armário alguns metros de algodão africano, que nunca se transformou na saia que havia imaginado.
- Você é designer? - me perguntou o homem.
- Não. Na verdade nem sei o que faço aqui.
- Perguntei apenas porque troco contatos com muitos designers, costumo fornecer tecidos a eles.
- De qualquer jeito, me dê seu cartão. - pedi - Nunca se sabe.
Confesso que, vendo os tecidos daqui, penso muito em criar minhas próprias roupas. Sem contar com as tantas amigas que diziam que eu deveria ser estilista. Nunca sei se acredito, pois, ao mesmo tempo em que dizem gostar do que visto, fazem a ressalva:
- Em você. Eu não teria coragem de usar.
Então provavelmente eu seria um fracasso de vendas.
Cheguei em casa e organizei a bagunça. Juntei o excesso de coisas, as roupas de inverno, os livros. Paguei uma fortuna para enviá-los ao Brasil. Andei toda torta até os correios, carregando as sacolas. Parecia uma tonelada. E já eram vinte quilos. Ainda estava ali, sendo embalada, a sitar que meu companheiro português mandara enviar. Cumprimentei-a, como se o tivesse encontrado. O senhor dos correios - um desses que tem um ar inexplicável de dignidade - serviu-me um chai. Fiquei ali preenchendo os papéis. Ele contou-me que estivera doente. Agora já melhorava.
- Todos estiveram doentes. - pensei - Acho que foi o eclipse.
E depois fui esperar a cerimônia no rio apenas porque não queria ir para casa. Nunca fui grande fã dessa cerimônia, em que eles contratam pessoas para fazer um espetáculo diário.
- Ali do lado tem um menino que faz o mesmo ritual, sozinho, todo compenetrado - mostrara-me o amigo espanhol tempos antes.
Mas eu me sentei na escada mais pela espera do que pela cerimônia. Até que a menina fadinha apareceu. Eu amo a voz dela. E amo o fato de ela me deixar mais feliz instantaneamente.
- Você não tem chinelos? - ela me perguntou.
- Tenho, mas estão em casa.
- Chinelos são bons para proteger os pés de coisas que cortam.
Dei-lhe razão, pensando em como era cômodo gostar de andar descalça, quando se tem a opção dos sapatos.
Mudei de assunto:
- Com quem você aprendeu inglês?
- Tenho um guru que aparece de vez em quando e me ensina aos pouquinhos.
- O seu inglês é tão bom! - reparei.
Então ela me contou que não podia ir à escola, porque se tem que pagar quinhentas rúpias "por menina". Sua mãe tem muitos problemas de dinheiro. São cinco filhas e dois filhos.
Eu não soube o que responder. Nem ela esperava resposta. Mas era triste ver uma menina tão inteligente assim sem oportunidades. Não é apenas seu inglês. Logo que a conheci, lá atrás, reparei no olhar estético que ela tinha, quando lhe entreguei minha câmera. Ela foi uma das primeiras pessoas aqui por quem tive afeto.
- Onde está seu amigo? - perguntou.
- Foi embora. - respondi, sem saber de quem ela perguntava - Todos os meus amigos foram embora. Agora estou completamente sozinha.
Falei tragicamente. Minutos antes ela me contara de suas tragédias em tom tão natural. E depois ela seguiu atrás de turistas, para vender seus pigmentos e cartões postais.
Fiquei um tempo pensando se voltaria para casa pelo ghat ou pela estrada. Eu costumava preferir o ghat, mas lembrei de ontem. E, porque lembrei, pensei que então era mesmo questão de honra não me deixar amedrontar. Mas depois achei que era orgulho e burrice. Fiquei um tempo discutindo comigo mesma, até que, antes de a cerimônia começar, bateu fome. Fui - pela estrada - até o Shiva Café, restaurante simpático de donos nepaleses. Os meninos que atendem são lindos - nem no Nepal encontrei bonitos assim. Fazia tempo que eu não aparecia lá. O menino me reconheceu, brincou de não me entregar o cardápio. É um adolescente, mas talvez não seja. Descobri que deste lado do planeta todo mundo parece mais jovem do que é.
Pedi momos. Eram melhores do que os do Nepal. Devorei-os com as mãos e por um momento me enxerguei, de fora: sem talheres e sem sapatos.
- Estou virando bicho. - pensei - Gosto.
Ao anoitecer, me dei conta de que o dia, que se pretendia repetitivo, fora um dia único. Sempre é.
E de manhã, ainda na Universidade, eu pedira um suco de limão na barraquinha de frutas. A senhora apontou-me o açúcar, perguntando se eu queria. Respondi que só um pouquinho. Ela colocou menos do que isso. Até pensei que era melhor assim, pois deixaria de ingerir besteira. Misturei e bebi.
Era sal.
E era até bom, também.
Aprendi que, mesmo na repetição dos dias, a Índia sempre oferece um sabor inesperado.

Nenhum comentário: