quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Uma novela e alguns novelos

Há dias que essa novela vem tomando conta dos meus dias. E que tento contá-la. Mas cada tessitura é feita de muitos fios, alguns de outros novelos. E todos compõem a mesma trama. Por isso ela se desenvolve em quatro capítulos, mas com vários parênteses: os outros fios, sem os quais uma história é impossível.

Capítulo 1:

Soube-se que na Rua das Quaresmeiras vivem os corações mais moles da vizinhança. O fato é que ela apareceu por ali, decidida a ficar. Entrava em nossa casa sem maiores pudores. Havia constantemente uma porta aberta e, mesmo quando não, ela sempre podia contar com a portinha dos gatos.

Eles, que em outras circunstâncias se impunham perante os animais vizinhos, por algum motivo recuaram diante dela. Mesmo Rafinha, o mais territorialista de todos, que costumava expulsar aos berros qualquer outro gato que ousasse aparecer, passou a agir diferente. Fingia não vê-la, ainda que ela entrasse em casa diante de seu nariz. Quando ficou frente a frente com ela, fugiu. João não dava a mínima e continuava blasé sobre o braço do sofá, como se não notasse aquela presença estranha. Miki ainda tentou discutir com ela, mas, ao seu menor gesto brusco, saiu correndo também. No dia em que não correu, levou uma mordida na orelha.

Minha irmã concluiu que ela não pertencia a nenhum vizinho:

- É uma gata de rua.

- Mas como ela veio parar aqui?

- Alguém deve tê-la trazido. Ou ela passou pela portaria.

- Ela está com fome, vamos alimentá-la.

- Mas, se a alimentarmos, ela vai voltar sempre.

- Mas, se não a alimentarmos, ela vai ficar com fome.

Ela voltou sempre. Colocávamos ração e água em frente à porta, mas ela queria mais do que comida: queria um lar. Tentava entrar em casa e conquistar nossa afeição, esfregando-se em nossas pernas. E a gente tentando não se render àquele amor tão fácil.

Meu pai já andava preocupado com a movimentação felina. Foi assim cada vez que trouxemos um novo gato. Eles iam ficando e, quando se via, já estavam lá. Mas agora não morávamos mais naquela casa, eu e minha irmã, nem naquela cidade.

O fato é que em casa aquela gata não poderia ficar. Tampouco poderíamos ignorá-la como se não fosse problema nosso. Sempre é. A gente tem responsabilidade pelo mundo, embora não tenha controle sobre nada.

(Aqui abro o primeiro parêntese de outro fio, para contar que minha irmã é a pessoa que deixa de jantar para tentar salvar uma lagartixa. Posso vê-la compenetrada sentada à mesa, realizando uma cirurgia na pobre da lagartixa, que fora atacada pelos gatos, e lamentando não existirem instrumentos próprios: “a linha deveria ser muito mais fina, a agulha também”. Imagino que nenhuma escola de veterinária tenha jamais previsto tal cirurgia. E acho bonito que, em algum lugar, exista alguém para quem qualquer vida, por mais pequena, seja preciosa e digna de ser salva.)

E aqui volto à história da gata, pela qual nos responsabilizamos porque fomos escolhidas, mesmo que não a tenhamos escolhido.

- Ela precisa ser castrada – resolveu minha irmã, que é veterinária de animais silvestres e, como ela diz, veterinários de silvestres acabam pensando como biólogos -  ... senão ela vai se reproduzir exponencialmente e, com ela solta por aí, logo teremos um problema ambiental.

Antes de levá-la a uma clínica, entretanto, minha irmã a examinou: tinha mamas proeminentes.

- Será que ela está prenha ou que deu à luz recentemente?

Apalpamos sua teta: não tinha leite.


Capítulo 2:

A essa altura, eu estava fora da cidade e só pude acompanhar o desenrolar dos fatos à distância. Minha irmã me informava através de mensagens: levara a gata para ser castrada. O funcionário da clínica ficara com dó e lhe dera comida, fazendo com que sua cirurgia fosse adiada em um dia. Minha irmã tentara mantê-la em casa durante o pós-operatório, mas a gata não aceitou ficar presa e desesperou-se para sair. Por onde andaria ela quando não estava conosco? Voltava sempre, entretanto, para comer e procurar aconchego. Minha irmã aproveitava suas vindas para cuidar de sua cicatriz.

Enquanto isso, na casa ao lado, eis que Emília, nossa vizinha, encontra uma gatinha filhote. Como a nossa costuma ser a casa dos gatos, ela veio perguntar se não tínhamos perdido algum. Não tínhamos. Mas não parecia ser coincidência surgir aquela filhote logo ali – e tão semelhante à outra gata que nos aparecera.
A gatinha era pequena, muito. Não como um gato filhote, mas como um ratinho. Parecia recém-nascida, mas já tinha dentes. Era frágil, apática. Dormia o dia inteiro e só era esporadicamente acordada por minha irmã e Emília, que se juntavam para cuidá-la.

( E abro este segundo parêntese para contar sobre o abacateiro de Emília.  Houve um dia em que lhe perguntei sobre as árvores frutíferas de seu quintal. Foi quando me contou: “Eu fui comer um abacate e, quando o abri, achei que aquela semente parecia um feto – eu tenho isso, costumo ver essas imagens, em parte por isso me tornei vegetariana. - Como não tive coragem de jogar aquela semente fora, plantei-a no quintal”. Essa é Emília. Alguém que consegue enxergar o mundo sem divisões. O outro nome disso é amor.)

Nunca houve tanto movimento entre as duas casas da Rua das Quaresmeiras. Mulheres e gatinhas indo e vindo. As primeiras tentando unir as segundas. A gata maior (que ainda assim era pequena) não parecia interessada em assumir a maternidade. E as duas mulheres insistiam. Chegavam a jogar leite sobre as tetas da gata-mãe, para que a pequenina mamasse.

Voltei de viagem e ainda pude conhecer a gatinha. Sabia que ela era miúda... mas tanto! Era vida muito frágil que se punha em nossas mãos.

E a mãe nem aí.

- Ainda bem que a castramos. Que mãe desnaturada! – julgamos.

Então, como era inevitável, a gatinha não resistiu. Emília levantou-se durante a noite para vê-la, e ela já estava cedendo. Amanheceu. Foi um dia de luto na Rua das Quaresmeiras.


Capítulo 3:

(Este capítulo já começa com um parêntese. Outro fio da mesma tessitura. É que preciso contar o sonho de Emília, na noite fatídica. A gatinha já havia morrido. Emília já havia chorado e chorado. Então voltou para a cama e veio o sonho. Foi assim: Ela ia conferir a gatinha em sua caminha. E, enquanto cuidava dela, de repente percebeu que não era a mesma filhote que estava lá, mas outro gato.)

Então aconteceu. Em um outro dia, que já era um novo dia, eis que aparece um gatinho andando pelo quintal. Ao ser avistada por pessoas, correu para se esconder dentro de um cano. Era filhote, também. Saudável, ativo. Emília conseguiu pegá-lo. Levou-o para minha casa e ficamos as duas na varanda, ligando os pontinhos. Só podia ser irmão da outra gatinha, ambos filhos da gata adulta, nem tão adulta e nem tão grande. A gente não entendia como aquele gatinho, que Emília chamou de Tunico, poderia ter sobrevivido.
Até que ela apareceu, a mãe. E foi surpreendente a serenidade e o modo como tratava a criança: lambia-o, brincava com ele e até o amamentava. (“Então ela tem leite? Só pode ter leite, senão ele não estaria vivo!”) 

Aos poucos as coisas começavam a fazer sentido. Por isso a rejeição à gata mais fragilizada. Provavelmente a mãe sabia que ela não tinha chances de sobreviver e simplesmente abandonou-a, para concentrar suas energias cuidando do filhote saudável. Por isso também ela era tão esfomeada (comia várias vezes ao dia, na nossa casa e na casa de Emília). E por isso, sobretudo, o poder: a forma como conseguia amedrontar Pepita, a cachorrinha de Emília, e os três gatos da minha casa, tão maiores e mais fortes. Era uma mãe protegendo seu filho. A maternidade confere poder e coragem extraordinários.

(“É como o caso do caçador” – contou minha irmã. Ela havia assistido à palestra de um biólogo que, antes, fora caçador. Um dia, encontrou uma onça com seus filhotes e, decidido a matá-los todos, atirou primeiro em um deles. Quando a mãe viu seu filhote ser atingido, soltou fogo pelos olhos. Foi essa a expressão do caçador: ele viu fogo nos olhos. E aquele fogo era tão forte e tão poderoso, que desde então ele parou de caçar. Tornou-se biólogo.)

Era curioso, agora, desvendar a vidinha secreta daquela gata. Então ela era mãe. Mãezona. Imaginávamos seus diálogos com Tunico, orientando-o a se esconder quando aparecessem pessoas. Pois como um filhote tão brincalhão e ativo pôde passar despercebido por tanto tempo?

Eu evitava me perder em pensamentos sentimentalistas, senão acabaria desejando o que já desejava: ficar com a gata. Mas eles me vinham – os tais pensamentos – à cabeça. E às vezes eu os verbalizava: Que aquele devia ser o dia mais feliz da vida daquela gata. Que ela sentia que, enfim, encontrara um lar e segurança, para ela e seu filhote. Que ela estava em paz, como nunca estivera.

E era visível a paz. Às vezes ela simplesmente nos confiava Tunico e saía para passear. Outras vezes passava tempos lambendo-o, deixando-o morder seu rabo ou sugar seu peito – com ou sem leite. Quando uma de nós saía com Tunico no colo, ela esticava o pescoço, a procurá-lo. Quando saíamos de perto, deixando os dois juntos e sozinhos, ela vinha nos chamar. Queria aquilo: nós quatro espalhados na varanda. Um lar.

Capítulo 4:

No dia seguinte, Emília apareceu em casa:

- Vizinha, você não acredita no que aconteceu!

Meu coração foi parar na boca.

Ela continuou:

- Acabei resolvendo adotar a gata e seu filhotinho. Arrumei um quarto para eles lá embaixo e deixei-os dormindo lá. Hoje de manhã cheguei e, em vez de um, havia quatro filhotinhos!

Me veio à cabeça a voz da minha irmã, na noite anterior: “Se apareceu mais um, deve haver outros por aí. Uma gata nunca pare apenas dois”.

Quatro! Todos machos, saudáveis, brincalhões. Emília trazia leite, ração de cachorro, seu pai trazia queijo, carne moída. Virou festa.

- Onde será que eles estavam escondidos? Será que eles estavam naquele cano?

- Acho que não. Lá mal cabia o Tunico.

Era incrível pensar que aquela mãe cuidara escondido de quatro filhotes. E que, apenas quando sentiu segurança, carregou um por um à nova casa. E estava explicado por que ela tivera tanta urgência em sair, quando passara pela cirurgia de castração: havia gatinhos escondidos em algum lugar por aí, cuja sobrevivência dependia dela.

- No outro dia eu dei comida para os gatos, – me contou Emília – a mãe deixou-os comendo e subiu para me pedir mais. Dei um pedaço de frango para ela. Acredita que ela comeu um pedaço e trouxe o resto para os pequenos?

Era inacreditável. Era surpreendente. E era, sobretudo, bonito, ver tanta vida assim.

E de repente ríamos da vida secreta daquela gata, que um dia ouviu falar na Rua das Quaresmeiras, onde moram os corações mais moles do lugar. Uma gata que nos escolheu, que nos invadiu, que construiu um lar.

- Hoje sim – concluiu Emília – deve ser o dia mais feliz da vida dela.



terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Outra viagem



Acho drogas uma caretice.

Do rivotril à maconha. Da cocaína ao McDonalds. Da ritalina ao álcool. Da nicotina à Coca Cola.

Sou dessas que não bebem e não fumam nada. Ou seja, chata. Mas careta, jamais.

Careta é o conservadorismo que mantém no poder o poder econômico. Careta é acreditar que o valor de um ser humano reside em seu carro, em sua casa, ou em seu cargo. É olhar atravessado para essas tantas pessoas destituídas de “valor” e dedicar a vida a conquistá-lo. E tomar uma droga para não sucumbir. E tomar outra droga para ser produtivo. E fumar outra droga na pausa do respiro. De novo para não sucumbir. E tomar outra droga para conseguir se concentrar. E comer uma droga no meio da correria. E beber outra droga para ser sociável. E tomar outra droga para dormir.

Careta é o status quo.

Por isso falar palavrão não nos deixa menos caretas. Falar alto no bar também não. Nem pegar todas na balada. Nem ficar high com os amigos.  Nem ficar eufórico, nem ter alucinações, nem ficar chapadão. Careta, careta, careta.

É claro que entre as tantas drogas, algumas aceito, outras tolero e a outras mais tenho aversão. Tolerância zero para cigarro, por exemplo. Que faz mal à saúde própria, à saúde dos outros, que é um desrespeito ao espaço público, que é um desrespeito ao meio ambiente, que fede e fomenta uma indústria que também fede.

Já a maconha é uma das drogas mais engraçadas, pois geralmente quem fuma pensa que transgride alguma coisa. Ou que atinge algum tipo de comunhão, sei lá. Tenho uma amiga lúcida, que sabe que fuma apenas para aguentar a porrada da vida. Eu costumo lhe dizer que, se é pra amortecer, melhor que seja maconha do que droga de farmácia. Mas que, se for pra resolver, o bom mesmo é yoga.

Também conheço aqueles que dizem que não precisam de maconha e que seria lindo se se pudesse plantá-la. É. Mas precisam a ponto de fomentar o tráfico. Não acho pouca coisa. Agora, lúcido, lúcido mesmo, é Mujica, que promulgou a lei que regula o mercado de maconha no Uruguai. Sem essa caretice de “uhu, que legal!”, mas como uma atitude política séria e necessária, rompendo tabus e moralismos vazios.

Pois, cá entre nós, de que adianta reprimir, se a verdade é que vivemos em uma sociedade que produz a necessidade de drogas? Uma sociedade que sufoca, que impõe um ritmo de vida e de trabalho que desrespeita o ritmo do corpo e da natureza, uma sociedade que exige que sejamos alegres o tempo inteiro, que sejamos magros, produtivos e fortes? Uma sociedade que exige que escondamos atrás de regras e superficialidades nossas verdades escuras? Como se pode, sóbrio, sobreviver?

Por isso compreendo o consumo de todas as drogas, legais e ilegais. Mas não sem achar careta. Porque não se trata de alternativa à sociedade materialista/capitalista/individualista como é, mas de encaixe e reprodução. Porque usá-las é necessidade criada por esse mundo castrador, mas também uma maneira de mantê-lo e de torná-lo viável.

Superar a caretice não é ficar doidão, mas estar conectado ao mundo. É essa conexão que transgride o sistema que oprime. A conexão existe em vários níveis, nem sempre racionais. Acredito, inclusive, que todos os estados produzidos pelas drogas também podem ser atingidos através de trabalho corporal. Meditação. A diferença é que meditação é processo. Processo é transformação. Enquanto droga é resultado rápido. Segue a lógica do mundo moderno. E a modernidade é démodé. Conservadora. Opressora. Ultrapassada, desde que a ultrapassemos.

Para isso temos que aceitar a travessia. Essa é outra viagem...



quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O trem da vida



Eu me interesso pela vida alheia. Sempre penso que poderia ser comigo, por isso fico esperançosa quando encontro um casal antigo que ainda se ama muito ou fico incomodada quando escuto histórias de pessoas fazendo mal às outras. Acho intrigantes os caminhos do destino e, porque sei da minha impotência diante da vida, observo no voo dos outros os ventos possíveis. Pode tudo, eu sei. E às vezes pode até fazer sentido.

Pois eu almoçava em um restaurante simpático em Alto Paraíso e observava as pessoas do local, todas elas, igualmente sujeitas às peças que a vida prega. Até que minha atenção foi fisgada por um moço, aparência de japonês, que tentava descer um degrau com um carrinho de bebê. Ele cumprimentou os moços da mesa ao lado da minha, deixou o carrinho com uma menininha linda e se despediu. Logo apareceu sua esposa, ela sim para ficar, junto com outra criança, um menino curioso e agitado. Foi logo contando sua história com o marido:

- Eu e o Alan nos conhecemos há quase vinte anos...

Logo me perguntei quem seriam seus amigos, que não conheciam seu esposo de tanto tempo, mas, como se respondesse à minha dúvida, ela continuou:

- Mas só nos casamos em 2010.

Me interessei e continuei prestando atenção à história. Ela contou que conheceu Alan no primeiro dia de aula na faculdade (de quê, me perguntei), e que anos depois ele lhe contaria que, na primeira vez que a vira, nem dera atenção. Na segunda vez, teve certeza de que ela era a mulher da vida dele. Mas ano vai, ano vem, nada acontecia, além de um gostar platônico, de ambas as partes. Até que, no quinto ano de faculdade (ah, de arquitetura!), a turma viajou junta para um congresso em Uberlândia. E, no primeiro dia de congresso, Alan ficou... com a Carla! Uma menina qualquer da turma dos dois. A nossa personagem, cujo nome não descobri, mas que tem um rosto quadrado e expressivo, ficou arrasada. E eu, que tomei as dores dela, também.

Depois disso ela acabou deixando-o de lado e começou a namorar outro cara - o Pablo. Quando Alan percebeu que era sério, foi conversar com ela, que lhe disse:

- Lembra quando você ficou com a Carla? Pois é. O trem da vida passou.

E passou e passou. Cada um seguiu seu caminho e namorou outras pessoas. Muito tempo mais tarde ela saberia que, depois da tal conversa fatídica, Alan ficou doente, de cama, por uma semana. É que o trem atropela e tritura. Nem sempre recolhemos os pedaços.

Eles recolheram. Reencontraram-se em 2010, começaram a namorar, casaram-se no mesmo ano e duas semanas depois engravidaram do primeiro filho, Ian, o menino curioso que brincava pelo restaurante.

Naquele dia, visitariam a fazendinha.

E eu seguiria viagem para Cavalcante, intrigada com a vida e com o trem que passa. Nem sempre são suaves, os atropelamentos.

Mas faço mosaicos.