segunda-feira, 30 de maio de 2011

Sapatos


Ela é uma dessas pessoas de extraordinária delicadeza. Hoje me escreveu um e-mail oferecendo seus sapatos. Havia sonhado que as sapatilhas que eu usava feriam meus pés.

Às vezes ferem. Às vezes o que me salva são essas pessoas que calçam meu número. Ou que me oferecem seus sapatos, mesmo que largos. Como já me aconteceu na rua com um estranho, havaianas número 43, quando as minhas arrebentaram.

O que me salva é o amor, mesmo quando escolho andar descalça.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Ouriços

Hoje você me mandou esta foto, que me fez recordar uma história que minha terapeuta costumava contar, sobre os ouriços: Eles, na noite fria, aconchegam-se para dormir. Precisam do calor um do outro. Porém não podem aproximar-se demais, ou acabam se espetando. Nós, ouriços, somos assim: constantemente medindo a distância adequada entre mim e o outro. O quanto somos capazes de agregar sem ferir.

Então eu me lembrei de uma época em que não tínhamos essa lucidez dos sensatos. Aproximamo-nos mais, muito mais do que era possível a nós, ouriços. E nossos espinhos cravaram-se um no outro. Mas eles não nos feriam, extasiados que estávamos ao nos reconhecermos como um.

Poderíamos nos manter eternamente espetados e unidos, um pelo outro, um ao outro, não fosse a lentidão com que dois corpos se movimentam juntos, não fosse o peso, não fosse a minha pressa e a ânsia de me lançar ao espaço. Não fosse a brusquidão com que separei os corpos perfurados para só então me dar conta do sangue que corria pelos poros já não tapados pelo espinho que outrora se agregara. Agora alheio.

Hoje você me manda esta foto: um ouriço. E ela me faz pensar que o medo não é das perfurações, mas da retirada dos espinhos.

sábado, 21 de maio de 2011

Chega a idade...




(nove sinais de que você envelheceu)

- Você descansa depois de comer:

Quando crianças, nós almoçamos e saímos correndo, sob o alerta dos pais: “Você acabou de comer, tem que fazer a digestão, não entre na piscina!” Pra gente essa coisa de digestão é meio mística, comer não faz diferença nenhuma no nosso organismo e na disposição para brincar, pular e correr. Pois chega um dia em que faz.

- Você sabe o que é elasticidade da pele:

Antigamente essa conversa de propaganda de cosméticos era muito distante da minha realidade. Eu só visualizava a tal da elasticidade, que era a pele normal, em contraponto à pele das pessoas bem velhinhas, aquelas todas enrugadas. Um dia olhei no espelho e me veio a luz: “Isso é elasticidade da pele!” Isso. Era isso que estava faltando.

- Você gosta de cerejas em calda e, num estágio mais avançado, de frutas cristalizadas:

Bem, essa é uma etapa em que ainda não cheguei, embora já tolere as tais cerejas. Pois bem, não conheço uma criança que goste de frutas cristalizadas, quase nenhum jovem, um ou outro adulto e muitos idosos. Quando envelhecemos, perdemos a sensibilidade do paladar e o sabor doce é um dos poucos que se sobressaem. Daí a preferência.

- A temperatura da comida faz diferença:

Lembro quando era criança e a Conceição, nossa empregada, chamava-me para almoçar. Eu queria brincar mais um pouquinho, e ela dizia: “Venha logo, que a comida vai esfriar!” Eu pensava que era melhor que esfriasse mesmo, assim não precisaria soprar para comê-la. Tempos depois comecei a fazer questão de comida quentinha. A tal da idade...

- Você descobre os órgãos do corpo:

Até certa idade, tudo o que se sente na parte traseira são coisas que acontecem nas costas. Certa vez tive dores, fui à farmácia comprar relaxante muscular para a “dor nas costas”, que ainda assim não passava. Então uma amiga me disse: “Lian, nesse lugar para onde você está apontando ficam os rins”. E descobri uma infecção. Isso quer dizer que já cheguei na idade da descoberta dos rins. Nas idades mais avançadas, as pessoas descobrem não apenas onde ficam os órgãos, mas passam a descobrir órgãos de cujas existências elas sequer desconfiavam.

- Você se desinteressa dos homens (ou mulheres) mais velhos:

Enquanto você é novinho, os parceiros da mesma idade são moleques, enquanto os mais velhos parecem bem mais maduros e interessantes. Até que chega um dia em que as pessoas da sua idade já são adultos feitos, enquanto os mais velhos do que você... bem, já estão velhos demais.

- Você descobre que não tem tanto direito de se ofender com os coroas que te dão cantadas:

Antigamente eu pensava: “Que nojo esse velho cantando uma mocinha como eu!” Até que um dia me dei conta da novidade: Eu também já não sou essa mocinha toda. É...

- Você tem uma anágua e uma bolsa de água quente:

Eu ri durante muito tempo da amiga que comprou uma anágua para usar com as saias mais transparentes: “Isso é coisa tão antiga, de gente velha!” Paguei língua. Comprei uma saia linda, toda rendada e... transparente. O jeito foi comprar uma anágua também. Quanto à bolsa de água quente... acordei com um torcicolo que não me permitia mexer o pescoço. Fui ao acupunturista e, ao final da sessão, ele me aconselhou a comprar uma bolsa para fazer compressas. Saí da farmácia me sentindo dez anos mais velha.

- Você descobre que já não conhece nenhuma das músicas da moda:

Pior, além de torcer o nariz para as bandinhas novas, ainda acha que as do seu tempo são bem melhores. Bem, se o “seu tempo” já existe, definitivamente você está velho!

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Amuleto

(ao meu amigo Nel)


Na minha infância, havia na garagem do prédio um espaço cercado, que nós, crianças, chamávamos de “verdinho”, por conta do piso verde. Havia o “verdinho” e o “verdão”, e brincávamos em um ou em outro, dependendo do tamanho da brincadeira. No espaço maior brincávamos de correr e jogar bola, enquanto o menor era reservado para as brincadeiras íntimas, casinha, escolinha e outras pequenas fantasias infantis.

Havia, no verdinho, algumas pedrinhas arredondadas, seixos rolados. Elas eram diferentes das outras pedras porque, para nós, aquelas tinham vida. Chamávamo-las de “manteiguinhas”. Dedicávamos longas horas brincando com elas. As mais achatadas eram os carrinhos das manteiguinhas, os buracos no muro eram suas casas. Cuidávamos delas e nos ofendíamos quando alguém as jogava fora ou “maltratava”.

Depois aquele prédio ficou para trás e com ele também as manteiguinhas e as vidas que lhes dávamos. Também a infância ficou para trás. Mas permaneceu o costume de catar pedras pelo caminho, de selecioná-las, de guardar algumas como tesouro, de me importar com elas e com suas vidas. E segui assim, encontrando várias pedras, mas reconhecendo poucas, pouquíssimas manteiguinhas.

Uma delas eu guardo em casa. Tem um nome próprio, mas tem também um nome que é meu. É uma manteiguinha-garoto e é um amuleto que tenho. Tê-lo por perto me conecta com um mundo que é maior do que eu. Há aproximadamente dois meses concretizamos o plano de viver na mesma casa. Não sei se é um plano de dois ou de quinze anos, pois tenho a lembrança daquela época remota em que eu sonhava formar uma comunidade com nosso grupo de teatro adolescente, minhas manteiguinhas, entre as quais ele tinha um papel central. E depois houve os origamis e ele foi meu amuleto perto e depois meu amuleto à distância. Nós dois partimos e nos repartimos tantas vezes até estar um dia, novamente, na mesma cidade.

E era bom quando, já me preparando para dormir, eu ouvia seus passos chegando em casa. Era bom tê-lo por perto e às vezes sentar ao seu lado, enquanto ele tocava violão, só para ver alguma dor pontual se desmanchando com seus acordes. Porque ele me resgatou nos meus piores momentos e sempre o fez em silêncio. Porque sua simples presença me dá a certeza de que não me encerro nos limites do meu corpo, pois lá está ele, meu pedaço. Procuramos apartamentos juntos, depois cada um foi para um canto, até o destino nos unir na mesma casa.

Então ele chega e bate na porta, ele chega faminto procurando comida na geladeira, ele canta tranqüilo mesmo quando está com pressa. Ele fura a minha parede, coloca vidro na janela e se ressente porque o gato Serafim não lhe dá atenção. Nós conversamos sobre deus, sobre o universo e sobre nossos signos. E concluímos que nós, taurinos, somos legais e nos damos bem.

Eu me deparei com muitas pedras no caminho, mas pouquíssimas manteiguinhas. E ter esta por perto, em mãos, em casa, faz com que o universo seja o meu verdinho.

domingo, 15 de maio de 2011

Certa sexta-feira 13


era cedo ainda e tinha uma faixa de pare meio apagada e a gente tinha combinado uma última chance de compreender línguas tão distintas e tinha tanta coisa na minha cabeça eu tinha ficado acuada e fui responder a alguma pergunta se eu pegara um caminho diferente desta vez e apareceu um carro correndo na minha frente e eu pensei que maluco e pisei no freio mas a colisão foi feia barulho e fumaça e ela me dizia para sair do carro rápido eu desci olhei pra rua e pensei que droga a menina desceu dizendo que a preferencial era dela eu acabara de ver a faixa apagada e pedi desculpa ela foi educada disse que essas coisas acontecem e logo tinha tanta gente tanta gente em volta a sorte era que tinha gente boa ajudou deu água e bateu uma frustração muito grande de ter sido minha a responsabilidade mas estava todo mundo bem e sem feridas isso é o que importa é o que me diziam e liguei pro seguro e foi chegando mais gente chegou o reboque a justiça móvel e me levaram pra casa com um susto a mais e um carro a menos eu te falei que não poderia te ver mas você apareceu com uma barra de chocolate para garantir porque não sabia como estava meu humor e eu realmente estava tão assustada com tudo e pensava entrar pela fresta mas você abriu a porta da frente e eu achei graça mesmo foi do chocolate que era amargo mas uma forma doce de dizer que compreendia minha instabilidade.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Bicho do mato

Quando você me despejou uma tonelada de perguntas, eu me calei em silêncio. É só assim que sei falar da minha verdade. Eu aprendi a correr de arapucas, mesmo das boas. Levantei tijolos na estrada principal e fiquei à espreita. Eu não tenho serenidade de alvo. Não sei desacelerar e me deixar atingir. Você tentando me acessar pelos caminhos diretos e, veja só, já me perdi nos labirintos.

Mas se você deixar a arma e as botas de caçador. Se entrar para olhar as flores e contemplar as estrelas. Se quiser coletar frutos e metamorfosear borboleta.

Talvez eu possa te ensinar os caminhos.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Conversa alheia


- Como você veio parar aqui?

- Eu vi no jornal. Já não te falei? Eu compro jornal todos os dias. Às vezes compro dois exemplares: um pra ler e outro pra recortar os cupons. Ganho um monte de bagulho, já juntei vários pra minha neta, que vai se casar. Não sei por que vai se casar tão nova, com dezenove anos! Eu falei pra ela ir trabalhar, construir carreira, mas não, ela inventou de casar agora, fazer o quê?

- Ah, deixa ela casar, separar...

- Se não tiver filhos, pode casar e separar, mas se tiver, vai ter que ficar casada. Se separar, faço com ela igual fiz com minhas filhas, obrigo a voltar pra casa do marido. Minha filha inventou de se separar, chegou lá em casa com três filhos pra criar, disse que não amava mais o marido. Eu disse: "Ama sim!" Ela teve que voltar pro casamento, estão lá, juntos até hoje.

- E agora ela ama o marido...

- Ela diz que não. Eu falei pra ela criar os filhos e, só depois que eles estiverem crescidos, arranjar outro homem pra amar. Comigo é assim. Eu vou contar uma história pra vocês (a essa altura ela não falava mais com a interlocutora, mas com a plateia que se formara): Meu marido me largou aos 20 anos de idade. Eu não me separei, ele me abandonou, é diferente. Eu estava no Piauí com cinco filhas pra criar, tive uma aos 15, uma aos 16, aos 17, aos 18 e aos 19. Ele me largou por uma de 17 anos, que também estava grávida dele. Por isso que eu vim pro Rio, porque não queria mais ver a cara dele, porque eu sou assim. No norte, naquela época, mulher casada não podia trabalhar, não sei por quê. Eu vim e criei minhas filhas sozinha. Mas filha minha não namora nordestino, porque eu não deixo. O pai delas era nordestino e não prestava. Eles são todos safados. Eu avisei que se aparecesse com nordestino, eu ia botar pra fora de casa. Quando elas vinham me contar que conheceram alguém eu perguntava tudo, aí elas falavam: "Quer que traga radiografia também?" E eu: "Quero! Quero que traga tudo sobre ele, pra eu descobrir a origem!" Esse cara não era nordestino não, mas a mãe dele era. Ela não prestava. Minha filha apareceu noiva e grávida. A mãe dele mandou avisar que a criança não era neta dela, que eu tinha arranjado alguém pra fazer esse bebê na minha filha. Eu disse: "É assim?! Vou lá falar umas boas pra ela!" Fui lá na favela, o pau quebrou. É porque ele era o único filho dela que trabalhava, aí não podia arranjar mulher. Mas um dia eles brigaram, minha filha apareceu em casa toda machucada, porque ele bateu nela. Fomos pro hospital, depois dei queixa na delegacia. Eu aluguei uma casa pra minha filha e um dia soube que ele andava frequentando a casa dela, dormindo lá. Eu falei que ele, então, pagasse o aluguel do mês seguinte. Quando chegou lá a queixa que eu dei, ele ficou todo assustado, implorou pra eu retirar. Eu não retirei, só pedi pra arquivar, porque ele comprou uma casa pra minha filha...


segunda-feira, 2 de maio de 2011

Meu exemplo

Em homenagem ao dia da minha mãe, vou compartilhar aqui receitas de família, ensinamentos passados com carinho de mãe para filha:

Como lavar roupas:

Nunca use roupas brancas. Use apenas roupas bem coloridas, dessas em que não se pode ver a sujeira.

Como lavar calça jeans:

Primeiro encontre um daqueles tanques com duas torneiras. Pendure a calça de forma que cada perna fique em uma delas. Abra-as e deixe a água escorrendo. Se quiser melhores resultados, dê uma esfregadinha de vez em quando.

Alinhar ao centro
Receita de lasanha:

Pegue a lasanha da empregada, acrescente um pouquinho de água e coloque no microondas.

Como encobrir o crime do gato:

Esconda o passarinho, embrulhando-o com várias camadas de jornal, antes de colocá-lo no lixo.

Como lidar com o estresse:

Jogue um pano preto sobre os problemas e vá ser feliz!

Obrigada, mãe, por me ensinar a ser criança!