terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

De dentro do restaurante, eu observava a passagem dos filhotes. Um, ou dois, deles passava de cá pra lá.
- Não sei se é o mesmo, pois são todos iguais, não sei diferenciar.
Certamente nenhum deles era o adoentado, que eu distinguia pelas costelas à mostra. Fiquei vigiando. Precisava me certificar de que continuavam sendo três. Quatro, com a mãe. Ela passava de vez em quando e eu cumprimentava-a, mesmo que ela, fora do restaurante, não me pudesse escutar:
- Oi, mamãe!
Depois acabei de almoçar e fui conferir o paninho dos cachorros, que lhes servia de cama. Estava vazio. Teria que procurá-los pelas ruas. Não seria complicado, pois eu conhecia seus trajetos e os paradeiros possíveis.
Fui andando pela rua, olhando para os lados, espreitando. Estranho que tudo estivesse vazio. Cheguei à avenida principal e parei à esquina. O vendedor de samosa me ofereceu:
- Quer uma samosa?
- Samosa? Não, obrigada.
Continuei parada e acho que ele entendeu, quando permaneci olhando-o com olhos interrogativos, porque respondeu à minha dúvida:
- Ele morreu.
- Morreu?
- Há dois dias.
- O cachorrinho morreu? Há dois dias?
- Sim, ele morreu há dois dias.
- E os irmãos? Os dois irmãos estão vivos, né?
Ele acenou que sim.
Então eu fui para casa com os olhos marejados, mas me esforçando para focar no caminho, para acertar o passo, para não deixar transparecer que eu falhara em cuidar de um dos primeiros seres que amei na cidade. E, sobretudo, focada em não me deixar ser invadida por um sentimentalismo tão barato quanto verdadeiro.
Até que cheguei em casa, tranquei a porta, sentei-me no banheiro e desabei. Chorei a morte de um cachorro pelo qual eu nada fizera, senão escolher.
É que quando escolhemos um ser - dei-me conta de súbito - não o protegemos de nada, senão de uma existência desapercebida. Mas qualquer existência é ainda frágil, ainda arriscada, ainda vulnerável a ameaças. Inclusive a da não existência.
E tudo continua existindo e deixando de existir, apesar dos amores.
Mas ainda bem que: os amores.
Enxuguei o rosto, acendi um incenso e me preparei para a noite. Porque depois dela, mais um dia viria e então e então.
É a vida que nos escolhe.
- Vou sentir falta do corpo - lembro de pensar, antes de vir para a Índia.
Era uma das poucas coisas que eu lamentava sobre a viagem. Perder essa sensação de um corpo tão vivo, que a combinação de água com sol me dá. Mergulhar no mar, ou no rio, ou em uma água qualquer. E depois sair molhada a caminhar sob o sol, quase sem roupa, o cabelo secando naturalmente. Sentir calor novamente e voltar para a água.
Aqui em Varanasi, o corpo tem outros prazeres.
Os sabores são os principais. As masalas, que não são um tipo específico de tempero, mas misturas. Cada masala é uma. O que faz com que cada comida, por simples que seja, tenha um refinamento especial. O cardamomo. O cravo. O açafrão.
E depois tem os cheiros. Os incensos. Ervas e flores. Os perfumes feitos por mestres perfumeiros. Os cheiros dos temperos mesmos que se espalham pelas ruas. Há os cheiros não tão agradáveis, que se misturam. Os excrementos. Mas que de uma forma estranha têm sua maneira de serem aconchegantes, em meio à bagunça.
Há, também, os prazeres dos olhos. Excessos. Tudo é belo. Absolutamente tudo. Mesmo que tantas vezes a beleza se misture à tragédia e à dor. As cores são belas. Os bichos são magníficos. As pessoas, essas são monstruosamente belas e me enchem de espanto, com suas peles e tonalidades e texturas. E há o rio e o fim de tarde, em que o sol se torna uma bola alaranjada, cercado de pipas infinitas.
E há o prazer auditivo, que quase se mescla com o igual desprazer das buzinas ao ouvido. Mas eu me vingo xingando os motociclistas em português. E sendo tão livre que até canto em voz alta pelas ruas, o que, no Brasil, não fazia nem no chuveiro. E tem os cânticos, o tempo todo, ao longo do dia. Tem o que começa já de madrugada nas mesquitas e que se repete ao pôr do sol, no horário das pipas. Tem a música da aarti, a celebração hinduísta, às margens do rio. Os sons que vêm dos templos, as pessoas que entoam seus mantras cotidianos, as que passam gritando, vendendo pan, o tabaco com condimentos que eles mascam o tempo inteiro.
E tem o sol, que deixo tocar o rosto e já é vida.
Mas mesmo que o sol tenha resolvido aparecer - e ficar de vez - ainda sentia falta daquele outro, o do corpo molhado e dos mergulhos.
Então o professor de meditação cancelou a aula. Era domingo. Fazia calor. Por isso decidi que era o dia do mergulho. Vesti uma camiseta mais velha, a calça de trilha, levei uma canga para me enrolar depois.
Era para ser um pequeno mergulho, apenas pelo ritual. Mas o sol brilhava quente e a água estava fria. Então eu esqueci que estava no Ganges: com sua sujeira e sua sacralidade. Nadei, como nadasse em um rio qualquer. Nadei de prazer, pelo corpo. Nadei como se pecasse.
Que meus prazeres me purifiquem. Amém.
Fui almoçar no Nyiati Cafe mais para ver como eles estavam. São três. Quatro com a mãe. Andam por ali, entre seu paninho na rua de trás e as duas ruazinhas até chegar à avenida principal. Encontrei o primeiro, saudável, dormindo no meio da rua. O segundo, magrelo, um pouquinho adiante. E a mãe logo depois. Faltava um, mas não me importei, porque sabia que o ausente era um dos gordinhos, devia estar serelepe por aí.
São os primeiros seres com que me importei em Varanasi - e desde então cuido deles. Mesmo que cuidar, nesse caso, seja apenas observar.
Foi em um dos meus primeiríssimos dias na cidade que os percebi: três cachorrinhos pretos, muito pequenos e magrelos, com as costelas aparecendo e as orelhinhas caídas. Acho que nem soube, naquele momento, que eram três mesmo. Andavam sempre espalhados e ficavam a rodear os homens.
Eu, que via de dentro do restaurante, supus que estivessem famintos: "são tão magros!" Saí para lhes entregar um pedaço de minha dosa. Eles ficaram tão empolgados com a atenção, que nem enxergavam a comida.
- Aqui, cachorrinho! - eu apontava.
Eles, nem aí. Queriam era rebolar comigo.
Voltei ao restaurante:
- Suponho que eles não estejam com tanta fome assim.
Com o passar dos dias percebi que havia quem cuidasse deles. Os homens da loja de chai davam-lhes leite. E todos nas ruas vizinhas, assim como eu, sabiam deles e acompanhavam seu crescimento.
Assim era a família: três filhotes pretos serelepes, a mãe pretinha e mais dois machos, um branco e um amarelo. Não sei qual dos dois é o pai, mas acho que ambos assumem a paternidade. Estão sempre presentes e são, juntos, uma família, que anda pela rua, brinca e fica a se lamber.
- Já estão tão gordos! - exclamei a um amigo que almoçava comigo, em minha segunda semana em Varanasi - Quando cheguei, eles eram pequeninos e magrelos. Queria tê-los fotografado, para comparar.
- Você pode começar a fotografá-los agora. Aí você compara daqui a três meses, quando você for embora. Imagina como estarão...
- Boa ideia.
Comecei a fazê-lo.
E ver vida prosperando é sempre uma alegria. Eles passavam serelepes de lá para cá, de cá para lá. Pulavam de animação quando eu me dirigia a eles e às vezes tentavam arrancar minha calça ou minha bolsa.
Há alguns dias reparei: um deles estava muito magro e triste. O vendedor de samosa me explicou: "Ele está doente, não come há quatro dias." - comentei com o senhor do Dosa Cafe. Ele respondeu que os cachorros comem qualquer coisa por aí e acabam ficando doentes.
Por isso fui lá, conferir se ele permanecia vivo. Ele dormia, no meio da rua. Ainda magro. Mas respirava. "Se está vivo até hoje, acho que sobreviverá", penso, esperançosa.
E ele sobrevive. Magro, mas sobrevive. Com a teimosia que têm os seres de cá.
O que me consola é isso: conheço a teimosia. Confio nela.
Pode ser coisa de taurina, mas acredito que teimosos venceremos.
Fui correndo tomar um lassi porque não tive tempo de almoçar antes do concerto. O que se passou? Nem sei. Sei que o tempo passa e que continua acontecendo: essa passagem pluridimensional das horas.
Eu acho que estava em algum lugar de onde via búfalos caminharem. Há muitos deles pelos ghats. Eu fico surpresa que as pessoas andem por aí e vivam suas vidas normalmente, como se isso não fosse extraordinário: a existência dos búfalos.
Seus negros pêlos brilham a ponto de quase cegar. E o brilho torna-se mais evidente por conta das formas angulosas, de ossos pontudos que se sobressaem em meio ao corpo robusto.
- Búfalo também é sagrado? - perguntei outro dia a alguém - Ele conta como vaca?
Búfalos são búfalos e vacas são vacas. Acho que foi isso que me responderam, não me lembro. Eu sei que são seres meditativos e solares e que parecem nada mais fazer, senão serem belos.
Existir em beleza já é ser sagrado. É claro que são.
Mais difícil é enxergar a sacralidade dos sapos e das galinhas: eis a sabedoria que cabe aos iniciados. Aqueles que sabem ver deus na matéria crua do mundo.
De repente me espanto: Por que o homem criou Deus à sua imagem e semelhança, se tinha a referência dos búfalos em pronta perfeição? Homem é bicho que não entendo muito. Criou também o relógio, sem saber que o tempo não cabe.
E nesse tempo indomável eu passo a tarde vivendo búfalos porque me perco um pouco do mundo dos homens. Talvez eu também não caiba tanto. Depois olho o relógio e tenho que caber. Corro para chegar a tempo ao concerto no terraço. Mais uma vez, não consegui almoçar - nem recitar meus mantras.
- Mas como você não teve tempo? O que você fez durante o dia inteiro?
Sei lá. Fui búfalo. Mas quem compreenderá?
Já no concerto, misturo-me a todas aquelas pessoas de tantas partes do mundo e quase me torno gente de novo. O amigo toca uma raga ao violino, e eu já nem percebo o quão deslocada eu sou.
Até que um macaco me denuncia, puxando minha blusa. Outro se junta a ele e agarra minha perna. Começo a gritar e eles não me soltam. Pulo de onde estou sentada, sentindo-me visível demais, diante das pessoas que olham, mal entendendo o que aconteceu, tão rápido fora o ataque.
Sento-me em outro canto, mais protegido, e quero chorar. Mas não choro, para evitar estardalhaço.
Hoje sou mais búfalo do que gente. Mas fico aliviada por ninguém ter percebido meu segredo.
Apesar da denúncia dos macacos.
Há alguns anos que tenho dado mais importância à virada do ano chinês do que ao nosso Réveillon. Isso porque o horóscopo chinês tem sido certeiro em explicar cada período que vivo, pelo menos desde que comecei a prestar atenção. E é nessa época que a energia do meu ano realmente muda, não no primeiro de janeiro.
O ano do dragão foi violento de maneira surpreendente e positiva. Muitas novidades, eventos, transformações. O ano da serpente me conduziu ao lado escuro. Fui obrigada a encarar um lento e árduo caminho pelas minhas profundezas. No ano do cavalo, as profundezas vieram à superfície, fazendo ruir todas as falsas estruturas. Entramos no meio do furacão e saímos com a lição de que não controlamos nada. Doeu menos para quem não ofereceu resistência. E agora, nós, que chegamos vivos (tantos não chegaram), entramos no ano da cabra.
O que devemos esperar? - tanta gente tem me perguntado. Honestamente não sei. Fala-se em tranquilidade ou em paz. E eu até acredito em alguma paz, mas não essa do que se cala ou que se esconde. Eu não acredito na paz da ausência de conflito (a negação completa do conflito é o totalitarismo) e nem imagino que alguma coisa vá voltar ao seu lugar.
Daqui pra frente é um caminho tão vasto, que não sei o que esperar. Sei que o que mexeu foi mexido e que haverá uma nova ordem. Outra. E que tudo que é novo tem sua parcela de desconforto. E que será bonito se a gente souber andar de mãos dadas com ele.
Respondo, então: Não sei de nada. Mas comecei o ano da cabra em Varanasi, veja só, e talvez para mim essa seja a forma mais clara de não ter clarezas. Como eu preveria um ano atrás que em dezenove de fevereiro eu estaria aqui, vivenciando a pequenez humana perante a grandiosidade do acaso?
E foi assim, sem saber de nada, que eu decidi que o novo ano merecia uma celebração. Convidei meu companheiro de língua ("different countries, same language") e fomos nós comprar cordões de flores e procurar cabras para participarem de nosso ritual inventado.
Compramos daqueles cordões enormes de flores amarelas:
- São malas. - expliquei-lhe - Devem ter cento e oito flores.
Recusei o saquinho de plástico oferecido pelo vendedor, resolvendo que iríamos usá-los no pescoço mesmo.
- Mas vão pensar que somos turistas. - replicou meu amigo.
- Não importa. Estamos na Índia, somos livres.
E fomos, livres, procurar nossas cabras parceiras.
- Do lado de lá, conheço cabras bem sociáveis, mas é um lugar onde sempre tem muita gente. Do outro lado, as cabras são mais medrosas, mas o lugar é sossegado.
Optamos pelo sossego e caminhamos até encontrar duas cabras que comiam lixo por aí.
O plano era: cada um coroaria seu animal com um cordão de flores, prostraria-se diante dele e faria sua oração.
O que aconteceu: as cabras começaram a comer as flores antes que estas fossem ajeitadas em seu pescoço e em seguida saíram correndo, sem que conseguíssemos estabelecer contato.
- Está tudo bem. - dei de ombros - Pelo menos alimentamo-nas. Agora a gente senta na escada e cada um faz sua oração em voz baixa.
Assim foi.
Começa o Ano da Cabra e a única coisa que sei é que ela me escapa.
E que há beleza - tanta - na nossa falta de poder diante dos vastos caminhos.
O barco está lá há dias, no rio em frente ao templo. Eu passava sempre e via o guru fazendo pregações. A multidão de pessoas sentadas na escadaria, prestando atenção, cantando junto, batendo palmas e levantando os braços em louvor.
Desta vez resolvi me sentar em meio a todas aquelas mulheres de saris e ficar ali a escutar, seja lá o que o guru estivesse dizendo. Habituei-me a ignorar palavras e escutar o não-dito. Tem sido minha forma central de comunicação.
Quedei-me ali não sei por quanto tempo. Às vezes perdida na sonoridade da língua, às vezes apenas observando as pessoas. Uma velhinha amparada por dois homens, com cara de espanto e desespero. O que quereria ela? Traziam-lhe panos e panos, não entendi bem por quê. O moço que insistia em varrer o chão, mesmo a poeira sendo infinita. Os meninos entediados, que implicavam uns com os outros, procurando alguma forma de brincadeira.
Até que: uma mulher que dançava.
Em meio a todos, ela dançava. Talvez eu fosse a única pessoa que observava aquela dança assim boquiaberta, em meio àquele povo habituado a se expressar livremente, sem dedos ridicularizantes apontados.
Mas era-me tão bonito que, ali, em meio à celebração, ela dançasse. E ela girava e girava, levantava os braços e depois aproximava-os do rosto, fazendo mudras. E depois limpava os olhos e parecia chorar, para em seguida entregar o gesto, oferecendo as mãos aos céus. Então ela abria e fechava as mãos, como se tivesse castanholas e voltava a girar.
Nietzsche já dissera que não acreditava em um deus que não dança. Pois eu juro que vi uma mulher conectada com o divino. E ela não dançava para ninguém, ou para nenhum olhar. É que naquele momento cabia a uma mulher de meia idade a dança cósmica, esse grande segredo do universo.
O guru dizia coisas e cantava. A multidão acompanhava batendo palmas. E lá no meio, a presença divina. Não das divindades que mandam, criam regras ou ordenam. Mas as divindades dançantes e caóticas. Essas, infinitas.
Nietzsche tinha razão.
Eu vi deus e ele dançava.
Terça-feira de carnaval.
Aqui na Índia, também um grande feriado nacional: o Shivaratri. Estando em Varanasi, a cidade de Shiva, podemos ver toda a movimentação em torno das festas.
A cidade enche-se de turistas estrangeiros, mas, sobretudo, de peregrinos indianos. Eles lotam os templos e as ruas. Fazem rituais pelos ghats, acendem fogueiras, andam descalços.
- Haverá um grande evento musical, além do Dhrupad Mela. - alguém me informa.
Todos os turistas frequentam os eventos musicais, que trazem grandes artistas e duram a noite inteira.
- Hoje você vai pra este ou aquele evento? - me pergunta uma polonesa com cara de boneca.
Mas eu decido que não vou a lugar nenhum:
- A não ser que eu possa seguir os peregrinos nos eventos deles. Estou cansada dos ocidentais.
Acabo indo pra casa cedo, passando pelas preparações nas ruas, as flores infinitas. Pessoas carregam caixas de som, enfeitam os caminhos. Tudo está mais ativo por aqui. Menos eu, que continuo em câmera lenta.
E eu sei que Varanasi nunca foi exatamente uma cidade tranquila, mas por um dia eu desejo que ela volte ao seu excesso normal, aquele do cotidiano.
- Nasci mesmo velha - penso.
Tem sempre um dia em que me canso dessa necessidade que se tem de diversão. O dia em que eu tiro as fantasias de fora e prefiro fantasiar dentro.
É como se fosse terça-feira de carnaval.
E é.
Sempre que alguém me pergunta sobre cafés e restaurantes, dou essa resposta: que não conheço quase nada. Frequento sempre os mesmos lugares.
Estou me transformando no meu pai, que tem seu lugar certo ao sofá. E nem me queixo. A fidelidade me traz pequenas alegrias que me são imensas.
- Se eu fosse você, experimentaria tudo! - ouvi algumas vezes.
Mas nem sou ingênua a ponto de acreditar que consumir coisas diferentes caracteriza necessariamente experiências distintas. E nem tola a ponto de não perceber que a mesma coisa jamais é a mesma. E o que acho bonito é ver as pequenas transições. Conquistar lentamente um espaço. Ganhar a confiança das pessoas. E confiar também.
Frequentar a mesma casa de lassi e ver o sorriso do moço quando chego.
- Eu quero um lassi de...
- Eu já conheço o seu sabor! Pode se sentar!
É coco com romã. Mas no outro dia ele sugeriu:
- Hoje tenho morangos frescos. Quer?
- Como não?
- E amanhã quero que você prove o de chocoball.
- Não sei... Essa coisa de lassi com chocolate, não sei se combina.
- Mas não é chocolate. É lassi puro com pedaços crocantes dentro.
- Está bem.
Acordo pensando no chocoball e era mesmo tão bom.
Ontem, contrariando meu médico ayurvédico, resolvi jantar um lassi:
- Você ainda tem morangos?
- Tenho.
- Então eu quero um de morango com romã.
- Amanhã vou fazer um sabor especial pra você. - ele ofereceu - Por causa do festival, meu pai vai trazer esse ingrediente, aí você prova. É um lassi especial.
Eu torço pro lassi especial não ser o special lassi, que é de maconha. E aceito o agrado como aceitasse entrar por uma porta e viver em um mundo que passa a ser meu, também.
Depois vou comprar frutas na barraquinha de sempre. Pago quarenta rupias por uma dúzia de bananas, após ver a moça ao lado pagar o mesmo por oito. O homem descasca uma banana a mais e me entrega. O outro sempre me oferece uvas, que esfrego muito na roupa antes de comer.
E tem também o Dosa Cafe, com a melhor dosa e o melhor da chai da cidade. E uma vaca que passa lá todos os dias, a pedir comida. E o dono que a alimenta diariamente. É o lugar da constância, e às vezes volto só para mostrar que continuo por ali.
O dono fica em silêncio e às vezes, só às vezes, resolve falar alguma coisa. Mal entendo seu inglês confuso, mas aceno com a cabeça.
- Desculpe meu inglês ruim.
- Imagina. Preciso aprender hindi.
- Você pode vir à tarde, quando o movimento é menor, e traga um caderno. Aí eu te ensino.
São bonitas assim, as pessoas, quando as vemos de perto. E perto costuma ser questão de tempo, de insistência, de olhar mais de uma vez. E de novo e de novo.
Quase todos os lugares que frequento, o faço pelas pessoas. Apenas um deles escolhi pelo lugar mesmo. Próximo de casa, com um tatame confortável para sentar. Comida normal, embora eu tenha encontrado o meu prato, que é excepcionalmente bom. Os ovos sempre vêm errados e o chá com pouco gengibre. O atendimento era sempre ruim, de má vontade. Mas por alguma teimosia eu continuava voltando ao local.
Então um dia percebo que minha insistência começa a amolecer as pessoas. E eu não sei exatamente qual foi a chave, mas elas passam a lhe sorrir e até a trazer guardanapos espontaneamente. O chá vem mais forte, porque agora elas sabem o seu jeito. E perguntam por você quando sentem sua falta. E até a deixam colar placas anti-fumo naquele que você decidiu ser seu espaço. Um espaço conquistado dia a dia.
- Eu gosto disso, sabe? - falei a um amigo, enquanto divagava.
- Disso o quê?
- De pessoas difíceis. De conquistá-las aos poucos.
Gosto de conhecer pessoas e lugares diferentes. Especialmente se eles forem os mesmos, mas outros. O tempo e a constância me permitem isso: que eu cave mais fundo.
É pelos buracos que eu pretendo explorar o mundo.
Mais uma noite sem respirar e sem dormir e mais uma manhã exausta.
- Você precisa jejuar - recomendara-me meu amigo, no dia anterior - você está intoxicada.
- Eu não quero jejuar. Você não vê o prazer que eu tenho em comer? A felicidade que a comida me dá...
Fomos nos encontrar no meu cantinho do restaurante para o café da manhã, para, em seguida, irmos à clínica ayurvédica. Desta vez, tínhamos consulta e tratamento agendados.
O médico era um moço sério, mas suave. Tomou meus braços e pôs-se a tocar meus pulsos, fazendo considerações:
- Sua temperatura está alta. Você está levemente febril.
Depois ele concluiu que eu estava com o dosha kapha desequilibrado e que, por isso, meu organismo estava intoxicado e com baixa energia. Estranhei que logo meu kapha estivesse alto, pois, até onde eu sabia, era o dosha menos presente em mim.
- Nós não somos uma coisa só. Temos equilíbrios (e desequilíbrios) diferentes a cada momento. - explicou o médico - Por ora, evite comidas pesadas, massa, fritura, iogurte...
- Isso inclui o lassi?
- Inclui.
- Droga.
Meu amigo aproveitou a oportunidade:
- O que você tem a dizer sobre jejum?
O médico respondeu:
- Jejuar é ótimo para desintoxicar. Pode fazer duas vezes por semana, ou quando conseguir. Mas não precisa ser jejum total, é melhor tomar apenas líquidos do que não ingerir nada. Chá de gengibre com limão, por exemplo, é ótimo.
Pelo menos isso comemorei, já que bebo deste chá diariamente, o tempo inteiro.
Depois preenchemos questionários para saber nosso dosha geral, na vida. E ele me entregou um papel com a dieta ideal para meu tipo, vata. Recomendou que eu praticasse yoga diariamente, mas com práticas curtas, que eu também meditasse todos os dias e que não fizesse atividades físicas pesadas.
Em seguida fui para o tratamento que eu havia agendado. Chama-se nasya e é uma técnica de desobstrução nasal e facial. Confesso que estava com um pouco de medo. Mas no fim a sessão foi mais prazerosa do que eu temia. Muita massagem na face e no pescoço, inalação de vapor e um medicamento a base de ervas introduzido nas narinas.
Na saída, meu amigo sugeriu:
- Vamos fazer um jejum hoje? Eu te acompanho.
Admito que estava com fome e já pensando no que iria almoçar, mas acabei aceitando a proposta.
- Mas o médico disse que líquido está valendo. Então vamos agora tomar um suco.
Fomos à casa de frutas do outro lado da rua e cada um tomou um suco de romã. Depois entrei no meu modo avião, que é um modo de ser ainda mais aéreo do que o normal. Fui caminhando lentamente. Estava ainda sonolenta. Ainda fraca. Ainda tonta.
Compramos uma garrafa d'água e fomos para o rio meditar. Mas, em vez disso, passamos a tarde desenhando.
Às seis da tarde ele propôs:
- Vamos comer?
É claro que aceitei imediatamente. Fomos felizes para o restaurante e, depois de comer meu malai kofta com arroz branco, suspirei:
- Agora sim estou desintoxicada.
Dormi como um anjo à noite.
No Brasil já é oficialmente Carnaval. Aqui em Varanasi temos o Dhrupad Mela, exatamente nos mesmos quatro dias.
Trata-se de um grande festival de música, com importantes artistas do país.
A cidade encheu-se de turistas e eu, taurina que sou, confesso que fiquei um pouco enciumada.
- Haverá música a partir de sete da noite, seguindo até de manhã - contaram-me.
Nasci velha, é verdade. E pensar em qualquer evento grande, cheio de gente e que entre noite adentro me dá um certo pavor. Mas é Índia. É Varanasi. Eu tinha que conferir.
Cheguei ao local do festival: uma tenda grande com palco e cadeiras. A plateia toda sentadinha, escutando música clássica indiana. "Então é isso o grande evento de música, logo em um país tão cheio de gente?" - estranhei, sentindo-me aliviada.
Ao lado da tenda principal havia umas barraquinhas de comidas, onde comprei uma porção de momos, bolinhos nepalenses correspondentes ao jiaozi chinês. Estavam tão apimentados que me fizeram espirrar a noite inteira.
Quando voltei ao meu lugar, já não conseguia ficar parada. Tive que me levantar novamente e dar uma volta. Acabei comprando um livro de híndi e assistindo ao show lá do fundo, em pé.
Havia um cantor incrível. E a música era tão diferente da nossa.
E depois resolvi ir embora cedo, como faço até nos carnavais. Sou muito diurna para a noite. E acho que nasci mesmo velha.
- E eu que imaginava um show enorme, com todo mundo em pé dançando... - comentei com um amigo.
- É. Assim é bem mais profundo - ele respondeu.
- Não é mais profundo, é apenas diferente.
No Brasil já é oficialmente Carnaval.
Aqui também. Apenas diferente.
Acordei com uma dor de cabeça de intensidade incomum e, como que para fugir, saí de casa correndo com minha lista de compras mental: fita adesiva, papel higiênico, água. Braços cruzados, cenho franzido, olhar agressivo de "por favor não me incomodem".
Não havia papelaria aberta àquele horário e tive que ir mais longe para encontrar a fita adesiva. Voltando para a região de casa, encontrei, ou melhor, fui encontrada por um amigo:
- Hoje você aparenta estar mais desanimada do que o normal.
- Minha cabeça está explodindo. - expliquei, quase chorando de dor.
- Calma - ele respondeu, colocando a mão sobre minha testa - vai passar. Já está passando, vê?
Ele me orientou que descruzasse os braços e deixei-me ali, de olhos fechados. E não sei o que ele fez, mas pelo menos naquele instante passou a dor.
Depois ela voltaria igualmente forte, mas aqui se aprende que qualquer instante já é uma vida. E qualquer gesto já é uma cura.
Seguimos cada qual seu caminho e voltei pra casa mais tranquila. Larguei as compras e fui encontrar outro amigo para o café da manhã. Havíamos combinado de ir juntos, depois, a uma clínica ayurvédica.
Cheguei antes ao meu cantinho do restaurante e comecei a colocar meu plano em pratica. Havia pintado duas plaquinhas de "não fume" na noite anterior e estava decidida a colá-la na parede. Daí a função da fita adesiva. Fui deixando tudo preparado fora da mochila para o momento de distração do garçom. Meu amigo chegou, mostrei-lhe as placas e pedi ajuda no plano.
- Não é melhor perguntarmos antes?
- Melhor não. Pois, se ele recusa, não teremos o que fazer. E, se colocarmos, ele saberá que fomos nós.
Estava certo que enchi as placas de florzinhas, o que me tornava ainda mais suspeita do crime.
Tomamos nosso café da manhã e aproveitei as breves saídas do garçom para colocar minhas plaquinhas. Quando ele voltou, percebeu imediatamente:
- Quem colocou isso aí?
- Eu - admiti.
- Você?
- É. Sabe, decidi que o restaurante precisa de pelo menos um espacinho livre de fumo.
Ele aceitou logo.
E eu fiquei contente em meio ao dia difícil. A dor, que voltava intensa em minha cabeça.
Depois fomos caminhando em direção à clínica. Era preciso que meus passos fossem lentos, pois cada movimento brusco ampliava a dor, que já era muita.
No final das contas, o médico não estava lá. Acabamos marcando consulta para outro dia e encontrando um lugar para tomar um chá. Era um agradável restaurante em um terraço, com vista para o rio. Percebemos que já estávamos com fome e pedimos almoço. Comida deliciosa, solzinho e um terraço cheio de crisântemos coloridos, que fiquei a fotografar.
- Este dia está sendo muito agradável. O mais agradável que pode ser, diante da condição em que estou. - agradeci a meu amigo, sem agradecer.
E por algum motivo durante o almoço mencionei que adorava quebra-cabeças e descobri que ele também. Demo-nos a missão de encontrar um e fomos parar no shopping de Varanasi. Sim, descobrimos um shopping em Varanasi. Compramos o brinquedo e fomos montar no terraço, sob um sol alaranjado, quase a se por.
- Você está com sede?
- Não. Estou montando quebra-cabeça.
- Você não está com frio?
- Não sei. Estou montando quebra-cabeça.
Assim estava eu, em estado de concentração absoluta, fazendo algo que sempre adorei e havia tanto não fazia.
Quando resolvi ir embora, dei-me conta:
- Minha cabeça já não dói!
- Eu sabia.
- Como você sabia?
- Você nunca mais reclamou.
Às vezes é só questão de encontrar a peça que faltava.
- Não se troca de guru - repreendeu um indiano quando um amigo contou que estava com seu terceiro professor de sitar. - A nossa cultura é assim, não é uma relação comercial, é uma relação pra vida toda.
Admito que, pelo uso que se faz no ocidente, acabei tendo certa relutância com a palavra "guru". Não gosto da ideia de seguir e cultuar algum suposto iluminado.
Mas aqui na Índia é bem diferente. Guru é simplesmente seu mestre. Seja espiritual, artístico ou relacionado a qualquer conhecimento. E ser mestre de alguém é como ser pai. Há uma consideração mútua que em muito ultrapassa as nossas relações profissionais.
Sempre admirei o percurso do meu próprio pai, que teve um grande mestre de pintura. Um mestre chinês, que se aproxima bastante da lógica do guru indiano. Meu pai passou um ano apenas limpando o ateliê de seu mestre, até ser aceito oficialmente como discípulo. Uma vez aceito, foi-lhe passado todo conhecimento e todas as técnicas. Mas não apenas. Passa-se a pertencer a uma linhagem: uma família.
Escolher um guru é um ato de fé. Você planta a semente e acredita nos frutos.
Escolhi o meu em um contexto que muito me fazia sentir, só não parecia fazer sentido. Eu o vi apresentar-se em um concerto e decidi que ele era a pessoa que podia me conduzir a algo que eu chamaria de deus.
Combinamos que ele me ensinaria meditações vocalizadas. Mantras, basicamente. E confesso que, em nossa primeira conversa, tive uma grande decepção. Enquanto ele tentava negociar um valor que lhe fosse mais vantajoso, percebi que ele era humano.
Mas não era isso que eu queria? Um humano, apenas?
E eu, que não acreditava em seres iluminados, me vi nessa armadilha. No fundo, lá no fundo, a gente espera um salvador.
E todos os dias em que estou com ele eu confio e desconfio.
- Como você se sente? - ele pergunta.
- Eu me sinto ótima.
E sinto. Eu sempre me sinto ótima após um tempo recitando os mantras. Mas aí ele começa a falar. Tenta me vender uma coisa qualquer, diz como sou sortuda de encontrar alguém que saiba me ensinar os sentidos dos mantras, coisas do tipo. E eu fico olhando aquele ser demasiado humano e tentando me lembrar de que todo ser sempre tem algo a ensinar.
- Não há caminho pela sombra - disse certa vez um amor antigo.
Mas eu discordo.
E sigo pelo claro-escuro das pessoas imperfeitas. É aceitando sua sombra que enxergo sua luz.
Eis que um dia, então, reconheço: tenho um guru.
Entre todos os outros.
Como não endurecer em um lugar onde todo mundo precisa, pede e demanda tanto?
E como endurecer sem perder a ternura?
Aqui a gente quase sempre ignora os mendigos, porque são muitos, um atrás do outro. Então de vez em quando tem que poder não enxergar. Mas e a ternura, meu deus, como mantê-la? Também é preciso não se cegar.
Tive uma amiga cuja filhinha tinha estrabismo desde bebê. Um olho voltado para cada lado. Como ela via duas imagens, o cérebro eliminava uma delas. Por isso o médico recomendou que ela mantivesse sempre um dos olhos tapados. Caso contrário, o cérebro acabaria por cegar um deles definitivamente. Assim é. Qualquer excesso é cegueira. É preciso sempre luz, sombra e algum foco.
Aqui é preciso não enxergar demais. Ou ao menos não querer ajudar a todos. Todos são tantos. E tantos são tão sofridos.
Mas de vez em quando lembro de parar. Assim fiz, diante da senhorinha que pedia dinheiro em vão. Cumprimentei-a olhando nos olhos, tirei minha carteira e lhe entreguei uma moeda de cinco rúpias. Ela pegou o dinheiro e chorou. Sua latinha estava completamente vazia e imaginei o quanto de angústia podia-se acumular ali, dentro das horas de solidão e invisibilidade.
Fiquei parada por um segundo à sua frente. Ela desmontou-se, para logo em seguida se recompor e me agradecer, com um aceno de cabeça.
Deixei-a e fui procurar um lugar para meditar. Lembrei de um canto no alto, ao lado do Shivala Ghat. Era lá que eu costumava ir quando precisava encontrar o primeiro amigo que tive em Varanasi. Ele sempre ficava lá, compondo suas canções. Achei terna a ideia de que eu herdara aquele espaço. Era um lugar tranquilo por onde as pessoas não passavam, pois havia degraus imensos para saltar.
Meu professor de meditação (ainda tenho certa relutância em usar a palavra "guru") recomendou que eu repetisse diariamente cada mantra cento e oito vezes, ou seja, um mala completo. Como aprendi em torno de quinze mantras, achei a quantidade exagerada e decidi começar com apenas dois.
Dois me foi o possível e já foi o suficiente para um pouco de leveza. Para que eu voltasse às ruas igual, mas com alguma suavidade. Porque depois, nas ruas, a miséria é tanta. E a vida concreta é tão dura. Mas poder enxergar uma, uma pessoa que seja, já é um pouco de ternura.
Acordei, vi o quarto todo iluminado e pensei: será que já é tarde?
Imediatamente me respondi: calma.
E ainda argumentei com a canção: "Lembra que o sono é sagrado e alimenta de horizontes o tempo acordado de viver..."
Ainda eram oito da manhã. E era a primeira vez em uma semana que eu dormia a noite inteira, oito horas, quase ininterruptamente. Um resfriado misturado com rinite alérgica tem-me feito virar noites em claro. Então era bom acordar depois de finalmente dormir.
É que as noites aqui tem sido longas, enquanto os dias são curtos para tantos sonhos.
- Daqui pra frente, tem que fazer tudo que você planeja, porque o tempo vai voar sem que se perceba - ele me disse.
Já voa. E como o que planejo é muito pouco, cabe-me mais viver os planos do acaso.
Ajudamos uma cabra, que estava acorrentada muito rente à parede.
- Vamos afrouxar sua corrente. - propus.
Quando o bicho percebeu, começou a tossir de emoção.
- Não se anime muito, não vamos te soltar. - expliquei-lhe.
Mas acho que ela não entendeu, pois continuou tão emocionada que fez xixi. Logo depois, fez cocô.
Já se passou mais de um mês e tudo ainda me surpreende. Eu acho graça das coisas e os indianos acham graça de eu achar graça das coisas. Todo mundo vem me ver quando resolvo tirar foto com a cabra de pernas cruzadas sobre o banco. A cabra se faz de gente, mas a atração sou eu.
Acho que eles sabem há muito que gente, cabra, vaca... é tudo bicho igualmente. E é tudo deus.
Estranha é essa menina, que não sabe nada disso.
É como se eu tivesse entrado no sonho alheio. E por isso ele fosse mais meu.
Estar desperto é sonhar muito profundo.
Talvez por isso eu não durma.
Paguei meu café da manhã no restaurante, e o garçom estranhou:
- Hoje você ficou tão pouco tempo!
Nem era tão pouco assim. Mas é verdade que ele está acostumado a me ver diariamente durante horas, lendo, escrevendo e bebendo chá atrás de chá.
Desta vez resolvi ir logo para os ghats, para aproveitar um pouco do tanto de sol que havia. Sentei-me em um degrau qualquer e, mal abri meu livro, veio um senhor sentar-se ao meu lado. Falou um monte de coisas em hindi, entregou-me um papel com seu número de telefone e disse que eu lhe telefonasse. Perguntei-lhe por quê, mas nem ele me entendia.
À nossa frente, uma garotinha observava, esperando sua vez de vir ter comigo.
- Agora preciso voltar a estudar - falei ao homem, apontando meu livro.
Ele entendeu e saiu. A menina se aproximou. Não sei quanto tempo ficamos conversando, cada uma em sua língua. Compreendíamo-nos? Nem sei. Éramos ambas curiosas e tínhamos sede de alguma comunicação.
Ela apontava para o sol e dizia uma palavra que eu não compreendia. Então me lembrei do caderno na bolsa. Tirei-o, junto com uma caneta, e desenhei o sol. Ela confirmou: "suraja". Depois apontou para vários pontos diferentes do céu: "tara". E desenhou uma estrela.
Então ela quis me desenhar. Fez umas bolas e uns cachos sobre minha cabeça, com o detalhe da trança. De um lado, meu brinco grande, do outro duas argolas. O colar e a blusa. Virei uma Carmem Miranda de Picasso e achei aquilo tão tão bonito. E me dei conta do quanto minha cognição fora moldada e limitada, enquanto uma pequena menina na Índia olhava cabelo e enxergava toda aquela variedade de volumes e de formas.
Mais tarde peguei um tuk tuk para ir à aula. O trânsito é sempre caótico, mas aprendi a me divertir com todo o barulho e bagunça. Dou risada, sobretudo, dos motoristas que fazem maluquices, chocam-se com os outros veículos, gritam com todos e em seguida riem, achando graça de si mesmos e achando graça, principalmente, dos que se irritam.
A regra aqui é que nada é tão sério a ponto de não passar.
- Eles não se deixam afetar - dissera um amigo dias atrás.
- Eles se afetam sim - corrigi-o, sabendo que o indiano é um povo, sobretudo, de afetos - Eles se afetam, mas não carregam nada. O legal é isso. São pessoas que aceitam o conflito.
E depois, pela manhã, li a mensagem de um garoto que conhecera, que seguia para o Nepal. Ele agradecia a conversa:
- O que você falou sobre aceitar o conflito me ajudou muito por esses dias.
Fiquei feliz.
E, como chegasse cedo à aula, sentei-me em alguma esquina por perto, para tomar um pouco de sol. Novamente fui rodeada por crianças e fiquei desenhando com elas. Descobri o desenho como linguagem comum. Um dos pais aproximou-se para me entregar um prasad: algumas sementes desconhecidas, mais dois docinhos, que são sempre divididos entre todos. Então alguém me convidou a sua casa, entrei e fiquei apenas sorrindo, enquanto me falavam em hindi.
- Tenho que ir. - apressei-me, ao me dar conta de que chegava a hora de minha aula.
Fui embora leve, sabendo que vida é conflito. Mas que em meio ao conflito há uma infinidade de paz.
Dizem que nunca se sabe como vai ser até que você mesma se torne mãe.
Mas, até que esse dia chegue, às vezes me dou o direito de projetar. Confesso que sempre me imaginei deixando meus filhos muito livres, que é como fui criada. Lembro de certa vez comentar com minha mãe:
- Eu acho que tem que deixar as crianças se machucarem mesmo. É assim que se aprende. Tem que cair, ralar o joelho, bater a cabeça...
Minha mãe concordou:
- É mesmo...
Mas completou:
- ... só não pode morrer, né?
Dei risada da observação inesperada. Mas ela tinha razão.
Desde a primeira vez que vim à Índia, espantei-me com as crianças, tão livres e espertas. "Por aqui não há frescuras" - pensei - "e, veja só, estão vivas e saudáveis". Desde então comecei a defender essa ideia: "As pessoas deveriam ter seus filhos na Índia e criá-los lá até uns sete anos de idade, pelo menos. Aí poderiam voltar para seus países. Crianças criadas na Índia não ficariam doentes, pois desenvolvem muitos anticorpos, não são atropeladas, porque aprendem a ser espertas em meio à confusão, e não fazem manha. O mundo assim seria melhor."
- Muitas delas morrem sim. - explicou-me, porém, uma brasileira que mora no país. - A taxa de mortalidade infantil é altíssima. E morrem por besteiras, como diarreia e coisas do tipo. Mas você tem razão: se sobrevivem até os sete anos de idade, aí não ficam mais doentes.
Fiquei pensando nisso ao ver uma mulher recolher a água suja do rio em uma mamadeira e entregar ao seu bebê, algumas semanas atrás. Ao seu lado, alguém lavava roupa, mais além havia as cinzas e os corpos, mais ainda, o Assi River, cheio de lixo, que desaguava ali e mais, mais além de nossa vista, todas as indústrias que poluem as águas que ali chegam.
Fiquei espantada com a cena e, mentalmente, desejei saúde à criança.
O fato é que continuo me surpreendendo com as crianças aqui, tão soltas e espertas. E me surpreendi com o garoto que veio falar comigo, quando me sentei à rua para comer um roll à noite, depois do concerto:
- Você vem todas as noites, né? Eu sempre te vejo aqui.
- Tenho vindo muito, sim. - respondi.
Ele me fez mais perguntas e ficamos um tempo conversando. E o engraçado é que ele parecia um hominho, com todos os trejeitos, o balançar de cabeça e o jeito de fazer piadas dos homens daqui. Mesmo a malícia, que não deixa de ter um quê de inocência.
"São pequenos adultos" - pensei. E depois pensei melhor e me dei conta de que os adultos também são grandes crianças, quando soltam pipas compenetrados, quando brincam uns com os outros e mesmo quando contam mentiras de uma maneira tão ingênua.
São todos iguais por aqui, as crianças que endurecem tão cedo e os adultos que nunca abandonam de todo sua criança.
Às vezes penso que Guevara esteve na Índia. "Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás" - é um insight que só pode ter nascido aqui, entre essa gente que sobrevive nos extremos da brutalidade e da delicadeza.
- Só não pode morrer - dissera minha mãe em sua sabedoria.
Concordo.
É preciso um mundo em que o adulto nasça sem que a criança morra. Jamais.
Por aqui é época de casamento. A gente anda pelas ruas e passa pelas procissões. As pessoas arrumadas caminhando, às vezes tocando tambores. Vi uma mulher com a testa encostada no chão, pensei que estivesse caída, mas ela levantou-se e todos continuaram a segui-la. Parecia ser a sogra ou matriarca da família. A esposa caminha atrás do marido, amarrada a ele por um tecido. O tempo é propício e auspicioso.
É tempo de se unir - penso eu. E também de se perder.
Saio para comprar um par de chinelos.
- O mais barato possível - pergunto pelas lojas.
É apenas para pisar o chão molhado do banheiro. De preferencia que não tenha tiras de dedo, para que eu possa calçá-los com meias. Mas então me lembro de que não tenho mais dormido de meias. E isso é bom, apesar de que, em realidade, mal tenho dormido, alérgica que estou nos últimos dias.
No meio da madrugada tive calor. Tirei uma das três calças que usava.
Durante o dia sempre alguém me convida a ir para a sombra. Recuso sempre, pois há tanto esperava esse sol. Calor por aqui é bem-vindo e aquece o espírito.
Olho as horas e penso que tenho de correr, ou não terei tempo para almoçar. Percebo o absurdo: como pode me faltar tempo em um sábado de Varanasi?
Tempo sempre há. De sobra. Mas é tanto, que sempre me perco dentro dele. É o tempo das coisas pequenas que corre por aqui. E é como se tudo fosse tão lento, que eu mesma me desacelerasse até que cada movimento fosse imperceptível.
Pois eu consigo perder a hora em um sábado absolutamente vadio. É que sou muito absorvida em errar. A liberdade me ocupa todo o tempo.
E depois paro na porta de um pequeno restaurante desconhecido. O funcionário pede que eu entre e, suave, obedeço. Peço um special thali e, quando ele chega, percebo que há comida para duas pessoas. Eu sou uma só, mas como com o prazer de uma multidão faminta.
"Vamos escrever um texto juntos" - proponho mais tarde a um amigo, explicando-lhe a brincadeira: "Eu escrevo um parágrafo, você lê apenas a última linha, dá continuidade ao texto e assim por diante. Vamos nos revezando".
Quando lemos o resultado final, nos espantamos: o texto tem estrutura e unidade, além de uma mesma vibração.
Acho bonito que uma história coerente seja escrita a quatro mãos. Eu sempre escrevi só. E nunca tive muito jeito para dividir palavras.
Mas é tempo de se unir - penso eu. E também de se perder.
Alguns anos atrás e muito antes de chegarmos nesse ponto da história, um dia ele entrou em minha casa, no Rio de Janeiro, e observou:
- Olha, Lian, tem um preguinho aqui! Você pode pendurar alguma coisa!
Retruquei sem pensar duas vezes:
- Eu não!
Ele ficou um pouco frustrado com minha resposta brusca, e eu expliquei:
- Você pensa que eu sou a maluca penduradora? Que não pode ver um preguinho, que já tem que pendurar alguma coisa?
- Não... Eu disse isso... porque você gosta de coisas coloridas... E também... porque você é feliz!
Ele realmente pensava que eu era uma maluca penduradora.
E talvez eu fosse.
Eu sei que acho graça das tantas malucas que podemos ser.
Pouco tempo atrás, ainda antes de vir para a Índia, passei pela fase da maluquice das águas. Trouxe uma garrafa d'água energizada de Abadiânia, e uma amiga querida explicou que, se eu misturasse um pouco dela com mais água, tudo aquilo ficaria energizado. Gostei dessa história da reprodução das águas e, quando vi, mantinha seis, sete garrafas cheias no quarto.
Um dia achei que era maluquice demais e joguei tudo fora.
Aqui em Varanasi encontrei em mim uma maluca que não pensava existir: a maluca das roupas.
Não consigo entrar no banho sem aproveitar para lavar alguma roupa. E há sempre alguma de molho no balde, sem contar as tantas penduradas no varal que atravessa meu quarto.
As roupas do balde são sempre uma desculpa pra quem tem a natureza escorregadia, de entrar em cada lugar procurando a porta de saída.
- O que você vai fazer agora? Conheço um lugar ótimo que...
- Não posso. Tenho que tirar as roupas do molho.
E lá vou eu.
Cada lugar e cada pessoa desperta em nós uma maluquice. Aqui eu tenho as roupas e os bichos e os chás.
E, finalmente, a maluca que despertou em mim nos últimos dias: a maluca da comida. Nada tão novo para quem nasceu com o sol em touro. Mas é que desta vez tem uma intensidade diferente.
Costumam ser comidas específicas: o Malai Kofta com arroz japonês do restaurantezinho de sempre e o roll de ovos com vegetais do carrinho na rua.
Hoje acordei péssima depois de uma noite resfriada e não dormida. Passei o dia meio fraca, meio tonta, meio congestionada, de olhos cansados lacrimejantes. Tive um dia meio bom, no limite do que pode ser bom, quando seu corpo está mal. E encerrei a noite com um roll no carrinho do ghat principal.
A lua começara a minguar, mas ainda estava redonda no céu. E amarela, por trás da árvore seca. Eu podia vê-la, enquanto saboreava minha comida, que hoje estava mais condimentada do que o normal. E eu não conseguia senão suspirar de prazer a cada mordida.
E era a lua. E era o sabor. E era a textura.
E era tão bom que em um dia assim, em meio ao cotidiano e à vida na rua, em meio a um resfriado chato e um quase mau humor, eu fosse transportada à lua só por comer um enroladinho de ovos com legumes.
E é tão bom que às vezes uma porta muito pequena tenha este poder: transformá-la, por um dia, na maluca do prazer.
Há um dia em que você acorda, chega ao restaurante de sempre, e sua mesa de sempre, no cantinho, está ocupada. Você se conforma com a mesinha ao lado e, quando tenta tomar seu café da manhã em paz, todo mundo ao seu redor resolve fumar, inclusive os coreanos que roubaram sua mesa.
Há um dia em que você sai a andar pelas ruas, senta em qualquer degrau ao sol e, quando pensa em abrir seu livro, vem um estrangeiro e puxa assunto. Você conversa, afinal, é esse seu trabalho: entrevistar viajantes. Mas sempre há um dia, há esse dia, em que você não sabe direito o que faz ali. E você se sente um bicho do mato entrevistando pessoas em uma cidade como Varanasi. E isso te soa quase como uma contradição lógica. E você quer ficar sozinha. E ele chama:
- Vamos para a sombra?
Mas você está ali pelo sol.
Então você pergunta se ele tem fome e lhe sugere um restaurante. Ele se anima. Mas você não. Você permanece ali, sozinha com seu pedaço de sol e seu livro, até aparecer um outro viajante, recomeçar outra entrevista e você se entediar tudo de novo.
Há um dia em que você vai almoçar em certo lugar onde a comida é ótima. Mas você não vai pela comida, e sim pelo silêncio e pela presença discreta do senhor que te atende com o carinho dos introvertidos. Apenas nós, iguais, nos comunicamos e sabemos que, por trás das palavras silenciadas, há um oceano de reconhecimento.
E depois você vai procurar um lugar para esperar a lua, mas encontra alguém que já se tornou um amigo e vão juntos tomar um chai. É uma presença agradável e que tem vários conhecimentos interessantes a ensinar. Mas fuma. Novamente, todos ao redor fumam. E de repente bate aquele desespero, um sufocamento e vontade de fugir para qualquer lugar onde se respire. Você desiste da lua e sai com o cabelo cheirando a fumaça. Não aquela boa dos incensos e fogueiras, mas a fumaça dos cigarros, que nunca dão trégua.
Há um dia, sempre haverá um dia em que você preferirá a solidão.
Mas também haverá um dia em que, em um país estrangeiro, você encontrará pessoas que falam a sua língua. E você ficará tão à vontade que poderá até se calar, pelo tempo que quiser.
Então você não precisará mais esperar a lua. Ela estará branca e alta no céu, tão logo você sair à rua.