terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Paguei meu café da manhã no restaurante, e o garçom estranhou:
- Hoje você ficou tão pouco tempo!
Nem era tão pouco assim. Mas é verdade que ele está acostumado a me ver diariamente durante horas, lendo, escrevendo e bebendo chá atrás de chá.
Desta vez resolvi ir logo para os ghats, para aproveitar um pouco do tanto de sol que havia. Sentei-me em um degrau qualquer e, mal abri meu livro, veio um senhor sentar-se ao meu lado. Falou um monte de coisas em hindi, entregou-me um papel com seu número de telefone e disse que eu lhe telefonasse. Perguntei-lhe por quê, mas nem ele me entendia.
À nossa frente, uma garotinha observava, esperando sua vez de vir ter comigo.
- Agora preciso voltar a estudar - falei ao homem, apontando meu livro.
Ele entendeu e saiu. A menina se aproximou. Não sei quanto tempo ficamos conversando, cada uma em sua língua. Compreendíamo-nos? Nem sei. Éramos ambas curiosas e tínhamos sede de alguma comunicação.
Ela apontava para o sol e dizia uma palavra que eu não compreendia. Então me lembrei do caderno na bolsa. Tirei-o, junto com uma caneta, e desenhei o sol. Ela confirmou: "suraja". Depois apontou para vários pontos diferentes do céu: "tara". E desenhou uma estrela.
Então ela quis me desenhar. Fez umas bolas e uns cachos sobre minha cabeça, com o detalhe da trança. De um lado, meu brinco grande, do outro duas argolas. O colar e a blusa. Virei uma Carmem Miranda de Picasso e achei aquilo tão tão bonito. E me dei conta do quanto minha cognição fora moldada e limitada, enquanto uma pequena menina na Índia olhava cabelo e enxergava toda aquela variedade de volumes e de formas.
Mais tarde peguei um tuk tuk para ir à aula. O trânsito é sempre caótico, mas aprendi a me divertir com todo o barulho e bagunça. Dou risada, sobretudo, dos motoristas que fazem maluquices, chocam-se com os outros veículos, gritam com todos e em seguida riem, achando graça de si mesmos e achando graça, principalmente, dos que se irritam.
A regra aqui é que nada é tão sério a ponto de não passar.
- Eles não se deixam afetar - dissera um amigo dias atrás.
- Eles se afetam sim - corrigi-o, sabendo que o indiano é um povo, sobretudo, de afetos - Eles se afetam, mas não carregam nada. O legal é isso. São pessoas que aceitam o conflito.
E depois, pela manhã, li a mensagem de um garoto que conhecera, que seguia para o Nepal. Ele agradecia a conversa:
- O que você falou sobre aceitar o conflito me ajudou muito por esses dias.
Fiquei feliz.
E, como chegasse cedo à aula, sentei-me em alguma esquina por perto, para tomar um pouco de sol. Novamente fui rodeada por crianças e fiquei desenhando com elas. Descobri o desenho como linguagem comum. Um dos pais aproximou-se para me entregar um prasad: algumas sementes desconhecidas, mais dois docinhos, que são sempre divididos entre todos. Então alguém me convidou a sua casa, entrei e fiquei apenas sorrindo, enquanto me falavam em hindi.
- Tenho que ir. - apressei-me, ao me dar conta de que chegava a hora de minha aula.
Fui embora leve, sabendo que vida é conflito. Mas que em meio ao conflito há uma infinidade de paz.

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