quarta-feira, 27 de março de 2013

Outra história de amor



Essa história foi minha irmã quem contou. Eu achei-a bonita e quis escrever. É a história de um amor grande e gordo. Quase desajeitado, como são os amores que mal cabem.

Essa é a história de uma família que vive em uma cidadezinha do interior de Goiás. Não sei os fatos com detalhes. Sei que eles salvaram um bebê de um incêndio, que matou a mãe e os irmãos da criança. E que depois eles levaram o bebê para casa. Deram-lhe um nome: Tobias. Cuidaram dele. Amaram-no. 

É a história de uma família que recebeu Tobias como um filho. Alimentavam-no. Colocavam-no para dormir na cama que lhe arranjaram. Davam-lhe banho. 

Um filho.

O detalhe é que Tobias é uma capivara. E só de pensar em uma capivara-menino chamada Tobias andando por aí, já transbordo de afeto. É fato que em qualquer outro caso sou contra animais silvestres sendo criados como domésticos. Mas, vejam bem, aqui eu falo de amor. Tobias foi salvo de um incêndio e foi amado e cuidado. 

Passou-se um tempo até que a família adotiva fosse informada: é ilegal criar animais silvestres. Foram corretos: procuraram o Ibama. Entregaram seu filho, em nome da lei. 

Ao ser criado em ambiente doméstico, um animal silvestre perde a capacidade de sobreviver em seu habitat natural. Por isso essa família foi tão criticada, me contou minha irmã. Mas, como cada caso é um caso e, neste caso, não se trata de uma família que comprou ilegalmente uma ave silvestre para exibir em seu viveiro, como neste caso não se trata de uma arara azul sendo traficada para gringos exibirem seu exotismo brasileiro, como neste caso não se trata de um quati ou tamanduá andando de coleira acompanhados de donos estúpidos por puro capricho... Como se trata de uma capivara chamada Tobias que foi salva de um incêndio e cuidada, por uma inocente ignorância da ilegalidade de seu ato de afeto... Eu, em meu nenhum poder, os absolvo em nome do amor. Eu, em meu nenhum poder, os bendigo e abençoo. 

Pois essa família, que amou Tobias como um filho e ainda assim o entregou às autoridades competentes, voltou um tempo depois para visitá-lo. Ao vê-lo, choraram. Tobias jazia triste e esquecido a um canto. Magro. Ferido. Ali, Tobias era burocraticamente mais uma capivara, sem a singularidade do amor. 

Então essa família entrou na justiça, vejam só, pela guarda da capivara. Encontraram uma brecha na lei. Algo sobre idosos com mais de sessenta e cinco anos com depressão. E era tudo verdade. A mãe, senhora idosa, também com depressão por causa de Tobias. Pela lei do amor, eram eles próprios a brecha. 

Conseguiram e seguiram as condições impostas pelo Ibama: construíram um espaço adequado, comprometeram-se a submeter Tobias a exames anuais. Foi aí que minha irmã, veterinária, conheceu essa capivara tão amada. "Eles pagaram duzentos reais pelos exames" - ela me contou. "Mas eles tem dinheiro ou só tem amor?"- perguntei. "Só amor. O pai trabalha em uma lavoura de laranja. Eles disseram que já vão começar a juntar dinheiro para os exames do ano que vem."

Então ficamos as duas, eu e minha irmã, assim, aéreas devaneantes pensativas suspirantes sonhadoras.

- Normalmente sou contra. Mas neste caso... 

- É... neste caso...

Há casos em que o amor abre frestas. É por elas que entram os dilúvios.





terça-feira, 12 de março de 2013

Quando fui mãe



Todos os meus amigos conhecem essa história. Muitos a acompanharam naquela época. Ou leram aqui no blog, ou me ouviram falar. E por que trago-a de volta, agora, que tanto tempo já se passou? É que as histórias precisam ser contadas. E recontadas. E lembradas. É o que tenho me dito nos dias de caos. Dias em que parece que sempre tem alguma coisa fora do lugar. As intolerâncias. As desumanidades (ou seriam superumanidades?). Há o pasmo com que vejo o dia de hoje. O desenrolar das notícias. E há o pasmo maior, de saber que cada dia da história é também um dia de hoje. 

Esses dias parei para assistir ao documentário "Timor Leste - a história que o mundo não viu", produzido e dirigido pela amiga Lucélia Santos. Terminei o filme ainda em estado de choque, como já me aconteceu tantas vezes, ao ter contato com determinadas realidades. Na minha época de vestibular, a questão timorense estava em alta. Aprendíamos na escola. Mas, como na escola, aprendemos sempre a ter distanciamento da vida. E, quando o mundo me joga aquela vida na cara, e que eu vejo pessoas reais, com suas dores, seus amores, sua história... pessoas matando e morrendo... eu sempre tenho esse primeiro choque. E penso: as pessoas precisam ver, as pessoas precisam saber. E penso novamente que as histórias precisam ser contadas, pois são sempre atuais. E somos sempre nós, as personagens.

Mas, por ver guerras e intolerâncias e covardias, é que quis falar sobre Amor: essa história que precisa ser recontada sempre, para que lembremos quem somos. 

E eu quis contar do dia em que fui mãe. 

Eu estava de férias em Goiânia, e minha irmã, que é veterinária e trabalhava com animais silvestres, trouxe para casa uma bebê tamanduá. Eles tinham esse projeto de rastreamento e preservação de tamanduás-bandeira, espécie em risco de extinção. Como tantos outros, essa tinha ficado órfã, após a mãe ser atropelada. Quando os filhotes ainda eram pequenos, precisavam de atenção integral, daí um dos integrantes do projeto levá-los para casa. Ao ganharem um pouco mais de autonomia, voltavam para o local do projeto, para, mais tarde, serem soltos na natureza.

Eu achei um acontecimento ter um tamanduá em casa, mas minha irmã me informou que já havia levado vários. Ela a chamava de tamanduinha e pediu que eu ajudasse a escolher um nome para a bebê.

- Eu gosto de Tamanduinha.

- Mas, Lian, todas que trago são tamanduinhas. Tem que ter um nome diferente.

Eu, que tinha acabado de ler “O amor nos tempos do cólera”, só conseguia pensar em “Fermina Daza”. Mas achei que não combinasse esse nome com uma tamanduinha, que pra mim já era Tamanduinha mesmo.

- Mafalda – minha irmã decidiu – eu gosto de Mafalda.

Mas pra mim ficou Tamanduinha pra sempre.

Então minha irmã contou sua história: A bebê já havia passado por outras duas casas diferentes, antes de chegar às nossas mãos. Era uma bebê problemática. Tinha medo de seres humanos. Não aceitava a mamadeira por nada. Quando forçada a se alimentar, acabava vomitando. Não podia continuar assim, senão acabaria morrendo.

Lembrei da minha infância e dos momentos de profundo desamparo. Tentei imaginar-me no lugar dela, que perdera a mãe e agora era passada de casa em casa, em meio a seres estranhos. E quis confortá-la. Quis protegê-la. E, mais que isso, quis muito que ela vivesse. Que ela crescesse, tivesse filhos. Em nome dela, em nome da espécie, em nome da vida.

E aí nasceu uma mãe em mim.

Eu a levava nos braços de um lugar a outro. Ela se agarrava em meus ombros e, quando eu tentava soltá-la, cravava as unhas em mim. Eu tomava banho com ela ao lado, chorando a falta de colo, no banheiro. Eu e minha irmã nos uníamos para dar a mamadeira. Uma segurava as patas, a outra a alimentava à força. Mas ela não mais vomitava. Outra vitória. Quando a ensinei a beber leite na tigela, foi o dia de glória. Esperei ansiosamente a chegada da minha irmã para contar a novidade.

Cada passo era uma festa. Era vida aprendendo a viver. Quando eu a soltava no chão, ela desesperava-se, novamente órfã. Então passei a levá-la ao quintal todos os dias. Eu sentava-me na grama, embaixo de uma árvore, com ela ao colo. Aos poucos, ela passou a sentir confiança: eu estava sempre lá. Descia do meu colo, cutucava a terra um pouquinho, voltava correndo. No dia seguinte, ousava um passeio mais longo, antes de subir correndo em minhas pernas.

Minha irmã não a deixava dormir comigo. Era preciso que ela não se apegasse tanto aos seres humanos, pois o medo a protegeria, quando ela estivesse solta na natureza. Mas todas as manhãs minha irmã levava a Tamanduinha à minha cama, enquanto ela cuidava de outras coisas. Eu, de férias, dormia até tarde com seu focinho sobre meu pescoço. Posteriormente, na volta ao Rio, eu acordaria com frio no pescoço durante um mês inteiro.

Eu conversava com Tamanduinha e lhe dizia sempre que esperava que ela vivesse, que ela fosse forte, que ela tivesse filhos. E desejava mais ainda que o mundo fosse bom. É que, quando se é mãe, a gente descobre que é também mãe do mundo. E de repente somos responsáveis pelo futuro da Vida.

Então eu aprendi várias coisas sobre o amor. Sobre a doação. Sobre o sentido da vida residindo na própria vida. E sobre como tamanduá nos dá uma real dimensão do que é ser mãe. Enquanto criamos gatos e cachorros para nos fazer companhia e, de certa forma, nos servir, criamos tamanduás para o mundo. Só queremos deles que eles vivam. Assim é, ou deveria ser, com nossos filhos. Não são nossos.

Com Tamanduinha aprendi esse amor muito puro. E depois voltei ao Rio, com uma lição e uma responsabilidade imensa pelo mundo.

Tamanduinha ficou mais um mês em casa, com minha irmã. Depois foi solta na natureza. E depois soubemos que ela havia morrido, afogada.

Alguns anos se passaram e essa lição permanece viva. Eu sempre me lembro dela, quando o mundo parece caos. E quando eu vejo o ódio, a guerra, a miséria e a intolerância, eu lembro do amor. Ele em sua forma pura, despertado assim, tão inocentemente por uma bebê tamanduá. E penso que as histórias devem ser contadas. E recontadas. E lembradas sempre.

Para nunca esquecermos que somos pais e mães do mundo.