sábado, 27 de dezembro de 2014

Do ano



Facebook fez uma retrospectiva do meu ano: constavam ali as fotos mais populares, aquelas com mais curtidas. Mas não constava meu ano.

Ele não percebeu que a essência de 2014 foram as "medidas impopulares".

Pouco antes do meu aniversário, minha terapeuta tirou tarô para mim. A primeira carta a sair foi a da morte.

A morte - a grande impopular - reinou. Eu tive que morrer diversas vezes, para perder padrões que carregava. Tive que deixar morrer um modo específico de estar no mundo. Matei em mim pessoas que eu amava. Não o Amor, que ele vive sempre.

Foi um ano de mortes em todos os sentidos. Aquelas de fim de ciclo e aquelas inexplicáveis. Foi um ano de suicídios: os que não conseguiram confrontar a própria sombra. Foi um ano de separações: os que não conseguiram confrontar a sombra do outro. Ou melhor: a própria sombra que se vê no espelho do outro.

Mas só depois de morrer muito a gente entende que a vida é muito forte.

Por isso o mais bonito foi a redescoberta das amizades.

Porque quando cada um abaixou suas espadas e seus escudos e suas máscaras e suas vestimentas, aí pudemos nos enxergar. Cada um com sua luz e sua sombra. E enxergar a sombra do outro - e ser enxergado - confirmou a solidez do encontro. E de repente minhas amizades de anos ganharam, em um ano, quilômetros de profundidade.

E é por causa desses - os verdadeiros amigos - que não consegui lamentar as mortes. Elas eram apenas a sombra que dava contorno à luz. Ficou mais fácil enxergar: a vida. Há muita vida.

Então eu digo aos meus amigos: Agora nós vamos juntos, nós vamos de mãos dadas. Eu aceito a sua sombra, que te faz pessoa inteira e humana. E eu lhe permito ver, também, o oceano que sou. Com as minhas profundezas.

Neste ano aprendemos que não temos o controle de nada. Mas temos uns aos outros.

E isso é tudo.


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Da experiência do Sagrado



Era uma tarde de outono em Verona. Chuviscava de leve, mas fazia muito frio. Eu andava a esmo. Havia decidido que minha missão naqueles dias era comer, só isso. Mas àquela altura já havia almoçado e acabei ficando meio perdida. Como fico perdida sempre que não tem sol.

Resolvi que precisava entrar em um lugar, qualquer lugar - para me aquecer e escrever no meu caderninho.

Então entrei em uma igreja: a Chiesa di San Lorenzo.

Havia um som que vinha de sua lateral. Vozes femininas. Repetiam algo como uma oração ou um mantra. Eu não podia vê-las, mas, em minha falta de experiência com igrejas, pensei que fosse uma missa.

Perguntei-me, por um instante, se eu poderia estar ali, em minha maneira pagã, só para me aquecer e escrever. E logo me respondi que sim: "Se essa é a casa de Deus, então tudo é permitido". E imediatamente me dei conta de que meu raciocínio era praticamente o inverso de Dostoievski, que anunciara que "se Deus não existe, tudo é permitido". Achei graça disso.

É que eu, que me declaro ateia, só poderia conceber um Deus que não tivesse leis humanas. Que não escolhesse uns em detrimento de outros. Que não bradasse regras. Que não exigisse ser cultuado.

Eu só aceitaria um Deus que recebesse qualquer um em sua casa, ainda que fosse uma pessoa perdida em meio ao frio, que não acreditasse nele e só quisesse um lugar para escrever ideias mundanas.

Então me sentei em um banco lá no fundo, abri meu caderninho e tentei escrever.

Mas aquele som que me soava como um mantra, aquelas vozes femininas repetindo as mesmas frases continuamente, aquela vibração em palavras que eu não compreendia... De repente tudo aquilo me hipnotizou. Larguei o caderno e fiquei ali, só estando ali.

Até que, não sei quanto tempo se passou, aquelas vozes se calaram. Ouvi uma movimentação de pessoas se levantando. Pensei que fosse terminar a missa. Mas não. Agora que ela começaria. As freiras, donas daquelas vozes, apareceram à vista. Também um padre, que se pôs no altar. E pessoas. Fiéis.

Fiquei sem saber o que fazer. Pensei em levantar, ir embora. Mas fiquei.

Assisti à missa inteira. Estava eu, também, inteira.

Acho que me ajudou ouvir uma missa em outra língua, sem entender as palavras e as regras demasiadamente humanas.

Naquele momento, aceitei Deus.

Mas só aceitei aquele Deus que me aceita.





sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Guariroba



A guariroba é uma espécie de palmito amargo, bem amargo, lá da minha terra.

Aqui no sudeste pouca gente a conhece, a não ser pela breve referência na música do Gil. Mas meu pai, como bom chinês goiano, sempre soube apreciá-la. Foi ele quem, na minha infância, me apresentou à guariroba. Pra falar bem a verdade, ele dispensou apresentações. Eu cheguei à mesa do almoço e lá estava ela, cortada em grandes rodelas, em uma travessa. Pensei que fosse palmito e, encantada pela sua abundância, pus logo um pedaço imenso na boca. Meu pai não disse nada. Ficou olhando, divertido, para minha cara de pavor, assim que senti seu sabor amargo.

Foi assim que descobri a existência da guariroba. Uma decepção (ou, sendo mais dramática, um trauma) grande o suficiente para que eu nunca tenha esquecido aquele dia.

Durante toda a minha vida, desde então, passei a recusá-la, até que, cerca de dois anos atrás, vi minha mãe colocando um pouquinho em seu prato.

- Ué, mãe, você come guariroba?

- Resolvi comer. Estou aprendendo a gostar aos poucos.

Simples assim. E, inspirada pela minha mãe, resolvi aprender a gostar de guariroba também. Mais: resolvi aprender a aceitar o amargor. Pois me dei conta disso: que eu colocava uma comida na boca e, ao perceber o amargo, imediatamente desqualificava a comida.

Mas e se não fosse errado ser amargo?

É claro que não passei a amar guariroba de uma hora para outra. Mas, sempre que tinha oportunidade, comia um pouquinho. E então passava pelo processo, esse diálogo interno tão frequente:

- É ruim.

- É ruim por quê?

- É amargo.

- Qual o problema em ser amargo? O amargo é um sabor como todos os outros.

- É mesmo.

E pronto. De lá pra cá, aprendi a gostar de guariroba. Assim, com um questionamento e uma decisão.

É que o amargor nunca é só da guariroba. E a vida nunca é só doce. E nem deve ser.

Eu nasci gostando da luz e me forcei a desbravar o escuro. Nasci gostando do conforto, mas tive que aceitar a dor. Nasci gostando do doce, mas aprendi a encarar o amargo. Por isso hoje gosto mais ainda da luz, do conforto e do doce, em sua forma óbvia e em seu contrário. E a vida passou a ter mais intensidade, desde que aceitei todos os seus sabores.

Junto com a guariroba, passei a apreciar também o jiló. E, graças à aceitação do amargor, tive essa deliciosa descoberta:

- O jiló é doce!