quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Cartas antigas

Há alguns dias usei o último envelope da safra "Erika Lettry no Rio", o legado que ela me deixou quando voltou a Goiânia: inúmeros envelopes amarelados, que, se me lembro bem, ela, por sua vez, herdara de sua mãe ou de sua avó. Ficávamos as duas durante horas no quarto escrevendo longas cartas para os amigos e os namorados. Eu comprava envelopinhos coloridos, enquanto ela usava os de seu estoque. Recordo que ela ornamentava as laterais com pequenos desenhos , para disfarçar o envelhecido.

Quando ela voltou a Goiânia, deixou-me de herança seus muitos envelopes. Passei a utilizá-los e nunca me dei o trabalho de tentar esconder o amarelado. A verdade é que as cartas, tão logo nascem, já são antigas. Quando fiz intercâmbio, na adolescência, recusei-me a criar um e-mail. Não queria a praticidade das notícias rápidas. Escrevia longas cartas e passava hora enfeitando-as, para que elas chegassem apenas duas semanas depois, com as novidades já ultrapassadas.

Não importa quão rápido cheguem as cartas, sempre as imagino como vindas de sangrentas batalhas, trazidas à custa de sede e suor, através de infindos desertos. Sempre quis um daqueles carimbos de madeira em relevo, para lacrá-las com cera e o brasão da família. Sempre a minha caneta se sonhava pena, apenas para dar um ar antigo. Enquanto se escreve uma carta, já se cria esse abismo, pois ela torna-se uma memória longínqua.

Cartas são antigas por natureza e nada mais próprio do que chegarem em envelopes amarelados, já com a nostalgia de um tempo distante, em que elas percorriam mundos no lombo de um cavalo ou no bico de uma pomba.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Alguma coisa acontece no meu coração...


Falávamos sobre comunhão, necessidade tão profunda (seria apenas nossa ou universal?) que nos move. Transitávamos entre a arte, o amor e talvez até entre a religiosidade: essa trindade. A busca por algo que nunca é completamente alcançável, mas que se nos insinua com sua perfeita plenitude. E, no meio da cidade barulhenta e desordenada, nós comungávamos. E subitamente estar no ônibus ao lado de uma grande amiga cantando "Se enamora" tornava minha vida plena de sentido.

domingo, 15 de agosto de 2010

Mosaico

Ela criava mosaicos de sonhos, com belas e grandiosas figuras. Eles nasciam assim, já prontos, vindos de fantasias longínquas. Então ela os apreciava reconhecendo de que mitos eram feitas as cores, cada uma delas. Sentia suas texturas, deixava-se deslumbrar, enquanto o tempo tratava de destruí-los, demovendo ladrilho por ladrilho, desbotando cada cor. Então nascia um novo mosaico, de uma nova ilusão. Vinha pronto, como os outros.

Esse era diferente. Ela não conseguiu parir de seus sonhos um lindo mosaico. Teve, pois, de construí-lo, ladrilho por ladrilho, sem saber o que aquilo iria virar. Seria um animal selvagem? Talvez uma triste paisagem, talvez fortaleza ou abstração. Ela analisava cada pedrinha, antes de utilizá-la. Escolhia a tonalidade certa e só colocava um novo ladrilho quando sentia que a figura pedia um contorno a mais.

Talvez aquele mosaico, que nascera da incerteza, ficasse para sempre incompleto. Mas talvez um dia ela terminasse uma surpreendente imagem, que, por ter sido construída com tanto cuidado e espanto, erguer-se-ia com inigualável solidez: eterna.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Dominó




Curioso que meu novo professor de interpretação tem trabalhado conosco sobre nossas bolhas energéticas. São essas as bolhas que dão nome ao meu blog, que fundamentam minha teoria sobre relacionamentos. Eu tenho uma bolha enorme, gigantesca. Não é preciso que se aproximem muito de mim para que eu me sinta invadida, neste espaço que me circunda e que é meu, minha bolha. São poucas as pessoas que conseguem adentrar minha bolha, menos ainda as que me fazem viver nas suas.


Hoje eu voltava para casa de metrô, dentro da minha enorme bolha. Estava sentada e, como de costume, observando apenas com o olhar periférico o que se passava à minha volta. Minha irmã diz que eu rosno quando alguém se aproxima. Pois eu rosnava. Cada vez que a pessoa sentada a meu lado fazia algum movimento que ameaçava aproximação, eu rosnava, ajeitando-me incomodada na cadeira.


Então o rapaz ao meu lado derrubou algo que caiu próximo a minha perna. Afastei-me imediatamente, para que não houvesse o perigo de ele encostar em mim. Ele pediu desculpas, eu olhei para ele e para o objeto caído. Era uma peça de dominó. Ele trazia o jogo em uma lata no colo. Por algum motivo, aquilo me desmontou. Desisti imediatamente de ser grosseira.


Achei terno alguém andando de metrô com um jogo de dominó no colo. Virei-me para o outro lado, achando graça. Então o rapaz puxou assunto e fomos até minha parada conversando animadamente.


Era uma pecinha de dominó, apenas. Mas por um momento caiu ao meu lado, furou minha bolha e me desarmou.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Capadócia

Quando comecei a folhear minhas revistas de turismo, assumi: estou oficialmente de tpm. Então me dei esses direitos: abri meu ovo de páscoa (acreditem, estava intacto até hoje), fiz um chazinho e me permiti ficar acordada até tarde, sonhando com esses lugares que quero conhecer: a Grécia, a Capadócia. Hoje vou sonhar minhas paisagens lunares. Amanhã, a vida mundana continua...

domingo, 8 de agosto de 2010

Pai

Tem uma música do Oswaldo Montenegro que diz: "...mas já não acho a professora a mais bonita e o meu pai o maioral". Eu não me lembro de ter passado por essa fase ingênua, de idealizar os heróis da infância. Não passei por essa fase, em que meu pai era o super-herói, capaz de todas as façanhas e portador de nenhum defeito.

Foi, pois, com a maturidade de certa idade (nem tanta idade assim, não exageremos) e a quebra das ilusões da infância, que hoje tenho certeza de que meu pai é, sim, o maioral. Quanto mais adulta me torno e quanto mais da vida conheço, mais reconheço essa certeza.

Então rejuvenesço a ponto de parecer dessas crianças na escola, contando as façanhas do pai, tão plena de orgulho. E vou enumerando suas tantas atividades, que ele realiza com maestria: meu pai pinta quadros, dá aulas, projeta casas, constrói móveis, escreve livros, faz brinquedos de madeira, artesanatos em papel, cultiva plantas,...

É uma pessoa que se dedica à beleza em suas diversas formas. E quando estou ao seu lado, ouvindo-o contar suas histórias, suas crenças e suas cores, penso que seu mundo me enche de uma grandiosidade que faz com que eu me sinta o mais próximo daquilo que chamo de um Deus.

sábado, 7 de agosto de 2010

Demanda de sorrisos


Um amigo me encomendou um sorriso. Um, não. Vários. Reparara que eu quase não sorrio nas fotos e argumentou comigo que não tiramos fotos para nós, mas para dizer "oi" aos outros. E que esse "oi" deve ser acompanhado de um sorriso.

Discordo. Seja para quem for que tiramos uma fotografia, penso nela como registro de um momento. Algo de nós que é capturado naquele instante. Nada contra sorrir. Porém sou contra a ditadura do sorriso. Penso que o tal de "sorrir para a foto" é uma convenção tão presente que passou a ser considerada como naturalidade. Não é. Com exceção de poucas pessoas sorridentes que conheço, normalmente não se anda por aí mostrando os dentes. Não se senta e não se para com um sorrisão no rosto. Mas, quando alguém lhe aponta uma câmera, o sorriso vem de modo tão automático como se fosse a expressão natural da pessoa. Tanto não é natural que, quando se demora para tirar a foto, o sorriso sempre aparece amarelo. Ficar sorrindo em estátua não é natural. É convenção.

Mas tenho que dar o braço a torcer e reconhecer que comunicação, afinal, se trata de convenção. Palavras e gestos nada mais são do que o comum acordo de um significado por trás. Durante muito tempo ignorei a importância da expressão. Julgava-me transparente e imaginava que o que quer que eu sentisse pudesse ser lido pelos outros. Que tanto meu carinho quanto minha raiva fossem transmitidos pelo simples fato de eu senti-los. Demorei a descobrir que não são. Parece óbvio, mas para mim foi um aprendizado lento reconhecer que, por maior que fosse minha simpatia por alguém, ela não o percebia a menos que eu sorrisse.

Intimidade é conhecer tanto alguém a ponto de ela não precisar se esforçar para comunicar em sinais convencionados o que se passa por dentro dela. Tenho uma grande amiga que, durante o primeiro ano de amizade, eu pensava nunca tê-la visto brava. Tempos depois descobri que, na braveza, ela não gritava, não xingava, não franzia o cenho. Seus olhos brilhavam, apenas isso. Intimidade é conforto, mas, está bem, podemos contar nos dedos de uma mão aqueles que realmente têm intimidade com você. Então concordo que negar a necessidade de comunicação é recusar o próprio princípio do que faz o humano, humano.

Então posto aqui esses sorrisos, embora sejam mais risos e momentos de descontração. Posto-os para dizer "oi" a esse amigo. Mas que ele saiba que, por trás de dentes e lábios e olhares e gestos existe um carinho sincero que, a mim, diz mais do que qualquer convenção.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Ser mãe


Já faz alguns anos, mas tenho essa lembrança retida de forma tão nítida na memória: Era uma recém mãe que me contava: "A sociedade nos passa constantemente a mensagem de que somos dispensáveis. Podemos ser substituídos no trabalho, nas relações sociais, no casamento. Se você não cumprir sua função, não satisfizer seu companheiro, não atender às expectativas, você é substituível, substituível, substituível. Mas, quando se tem um filho, a primeira certeza que se tem é de que você é indispensável".
Isso ficou marcado em mim. Mas voltou mais forte agora, que me tornei mãe. E logo de uma bebê tamanduá. Já convivi com gatos, cachorros, passarinhos, sempre em relação de amor. Mas era a tia. Com a tamanduá, me conferi o papel de mãe. Responsável por seu bem-estar, por seu crescimento, por seu futuro. Carregando-a nos ombros, fazendo piquenique com ela no quintal, vibrando a cada conquista, as primeiras caminhadas e cavucadas na terra, o primeiro leitinho na tigela. E ficando com o coração partido de preocupação por como ela virar-se-ia sem mim, sonhando com ela já grande, carregando nas costas, um dia, seu próprio bebezinho.
Comecei a entender essa grandiosidade da maternidade. Ser mãe é querer um mundo melhor. Um mundo sem sofrimentos, digno de seus filhos e dos filhos destes. E me peguei assim, por amor a essa bebê, mãe de toda a espécie. Com medo do perigo iminente: a extinção. Revoltada com o relato de um amigo, de que o pai dele encontrou um tamanduá adulto em sua fazenda e o matou. Parei pra pensar que essa deve ser a prática corrente entre fazendeiros, encontrar um bicho estranho e matá-lo, sem nem saber o porquê. Concluí que uma educação ambiental se faz necessária. Não destas de teatrinhos para crianças em escolas, não essas de pieguices e romantismos sobre a natureza. Mas um programa de educação ambiental informativo e conscientizante voltado para os habitantes do meio rural.
E foi assim, tornando-me mãe de uma filhotinha de tamanduá, que me dei conta de que maternidade é ampliar os limites de sua individualidade. É ser indispensável, ser maior do que se é. E sonho com aquele outro mundo, esse que eu criaria para minha bebê, um mundo em que eu fosse, sim, dispensável. Onde eu nem ao menos a encontraria, não seria nunca mãe de um filhote de tamanduá, pois ela estaria tranquila nas costas daquela outra mãe: a que a gerou.
PS: Hoje um amigo me encomendou um sorriso, que adianto na foto deste post, embora prometa ainda escrever sobre o assunto.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tamanduinha - parte II

E em pouco tempo eu me assumi assim: mãe. Respirando devagar para não atrapalhá-la em seu sono. Deitando no chão para aproximá-la da terra e dos formigueiros sem tirá-la da segurança do colo. Dando-lhe mamadeira à força e tomando suas dores. Criando teorias sobre sua psicologia infantil tamanduá. Fazendo pactos com ela, pedindo-lhe que sobrevivesse, que crescesse forte e que um dia tivesse filhos. Vivendo esse paradoxo de mãe: a dor e a alegria de ter filhos para soltá-los no mundo.