quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Um grito


Se eu disser que éramos grandes amigos, estarei mentindo. Em realidade, nem chegamos a ser amigos. Éramos colegas, conhecidos. Ele passava no corredor da faculdade e era boa sua presença. Boa porque presente. Não como aquelas presenças que quase se ausentam. Ele não. Ele estava lá e era. E é sempre bom quando alguém é.

Eu cursava Jornalismo. Ele, Radialismo e Televisão. Seu nome era Lucas. Era moreno e alto. E, talvez pelo constante brilho nos olhos, seu rosto tinha um ar infantil. Naquele início de faculdade em que grande parte das pessoas ainda estava se definindo, ele era homossexual assumidíssimo.Militante. Fundou um grupo, dirigiu ONGs, organizou paradas do orgulho LGBT.

O contato mais forte que tive com Lucas foi em um congresso de Comunicação Social, que aconteceu em Maceió. Depois de dois dias apertados em um micro-ônibus da faculdade, todo mundo acampado em uma quadra. Lembro dele vestindo uma longa saia branca. Linda saia. Lindo ele. Animada, resolvi criar uma nova moda. Abri minha mala e saí distribuindo minhas saias para os rapazes. E saíamos em bando, homens e mulheres, gays ou não, todos de saia pelas ruas. As pessoas da cidade faziam piada. Diziam provocações. Não ligávamos. Éramos esvoaçantes e livres.

Naquele congresso, os estudantes criaram e votaram algumas categorias, fizeram medalhas de papelão. Eu ganhei uma medalha de "mais bicho-grilo". Lucas ganhou uma medalha de "mais gay". Ambos em saias. A dele, longa e branca. Eu tenho essa imagem dele: um anjo alegre de olhar infantil.

Não mantivemos contato. Não éramos amigos, embora irmãos.

Na madrugada de ontem, antes de pegar o avião de volta ao Rio, tive notícias suas: "Jornalista goiano é encontrado morto em praia de Pernambuco". Um soco no estômago. Eu novamente vomitando todas as esperanças que me forçava a engolir. Porque preciso de força. Porque preciso me alimentar, por isso me obrigava a engolir tantas esperanças, a crer em alguma parcela de amor. "Mas você ainda crê em alguma coisa?" - perguntou uma grande amiga há algum tempo, também desiludida com o futuro do mundo. "Pelo menos no amor, no amor em pequena escala, eu tenho que acreditar, senão..." Senão o que. Eu me pergunto agora.

É que às vezes não parece fazer sentido mesmo.

Os detalhes do crime, eu li. Encontrado de cueca na praia. Ele que era moreno e alegre. Assim, ensanguentado. Olhos brilhantes infantis. Sinais de espancamento, foi isso. Ele que era vivo, presente. O corpo jogado. Ele não se calava. Crime de cunho homofóbico. Um soco. Um soco. Um soco.

Pode?

Eu tento acreditar todos os dias na possibilidade do amor maior, esse amor que é olhar mundo e se ver inteiro. Quando não dá, eu tento me agarrar ao amor pequeno, pelo menos neste. O olhar o outro e ser junto. Algum amor tem que ter. Mas e se não? E se nem isso?

Às vezes não. Mas hoje tenho nojo do mundo e sinto vergonha de ser gente, se gente é essa coisa que não se enxerga em amor. Hoje eu tenho nojo de fazer parte desse mundo de intolerância. Nojo de tudo que se diz maior que a vida.

Lucas era vida.

Que hoje ele seja grito.




quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Carta para alguém



"Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria..." (Rubem Braga)

... Então eu quis te escrever. Eu quis te escrever porque é o terceiro dia em que chove, e eu não tenho vontade de fazer outra coisa senão de chover palavras... porque esse tempo branco e frio me deixa melancólica... talvez angustiada, falei outro dia e alguém me disse que tínhamos que descobrir o motivo, eu falei que angústia é a própria angústia e que não há além. Só a chuva, talvez. A chuva traz à tona o vazio, que dialoga comigo diariamente. Eu quis chorar palavras, mas  se você estivesse ao meu lado talvez eu vomitasse silêncio. Talvez eu até colocasse esta carta em um envelope, como faço sempre para meus amigos que têm nome e endereço. Mas desta vez resolvi escrever esta carta para alguém, e alguém é tão amplo. 


Segunda-feira fez sol, veja só. Eu mergulhei no mar e voltei preta, ardendo. Terça amanheceu chovendo, eu amanheci muito cedo, fazendo cinema. É sempre bom fazer cinema, e eu tenho uma história bonita com este filme, cheia de sincronicidades. À tarde o frio doeu em mim tão fundo, eu tendo que fazer mala para viajar e carregando essa melancolia que não me soltava. E terminei o dia gravando para publicidade, entre pessoas boas e uma preocupação com o voo na manhã seguinte, que acabei perdendo. Devo ter assustado o taxista, com meu rosto de maquiagem borrada, fazendo-o voar pela Avenida Brasil. Depois andei por todas as companhias aéreas do aeroporto, procurando voo para o mesmo dia em vão. Voltei para casa, comecei a trocar mensagens com amigos e, quando me dei conta, já não fazia sentido o que eu escrevia. Apaguei em um profundo sono flutuante. Quando acordei, resolvi ir pra Barra cortar meu cabelo com Claudinho, um querido. "Fofo de tirar do lugar". Depois fui almoçar e, na saída do restaurante, meu telefone tocou. Paguei a conta falando e saí ao telefone. A alguns metros da saída, um senhorzinho me cutucou: "Com licença, essa salada é minha." E me dei conta de que carregava uma sacola do restaurante, tão distraída estava. Pedi desculpas e devolvi sua salada. 


Confesso que continuo como que adormecida, mas é um adormecimento que dói, machuca. Faz frio aqui. Fizesse sol, eu iria subir pedra e mergulhar no mar. Mundo muda tudo e cura sobretudo adormecimentos involuntários. Escaladas e mergulhos são escavações. É pegar a matéria de que somos feitos e misturar com terra. Sendo terra, fica tudo bem. Parece que durmo há três dias. Durmo e tenho sonhos desconexos e às vezes penso em você. Mas pensar em você é tão amplo... Como se pensa em alguém? Mas penso. E sonho. Acho que envelheci. O sol de segunda-feira envelheceu minha pele, vejo-a toda marcada. Mas sei que é chuva que envelhece o avesso da pele.


Perdi o voo e as expectativas que tinha para a viagem. Mas sou mestre de reconstrução e amanhã recomeço tudo de novo. Vou, inclusive, refazer a mala, que já não cabe nos planos iniciais. Todo mundo que me conhece sabe que adoro viajar. Talvez até você saiba, mesmo que eu não saiba ao certo quem você é. O que eu não costumo falar é que sempre penso na viagem como uma possibilidade de morte. Tem uma frase que diz que devemos sair como se fugíssemos de casa. Eu saio de casa como se morresse. Juro. Não é por causa da chuva, não. Nas minhas últimas férias, viajei acompanhada. Talvez por isso não pensasse na morte e não sentisse a passagem sólida do tempo. Estranho viajar sem morrer. Na maioria das vezes, eu encaro esse destino possível com tranquilidade. O que sou até agora basta, mesmo que eu busque o infinito. 


Agora a chuva deu uma trégua, embora o céu permaneça todo cinza. Vou aproveitar e sair para comer, de preferência algo quente. E, já que escrevi para alguém, e alguém é tão amplo, imagino que alguém seja leve, talvez as nuvens brancas que andam sobre os morros. E, já que esta carta não vai para os Correios, que suas palavras se dispersem, como se fossem, também, nuvens. E que amanhã venha o sol.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Jonas e a Baleia

Joninhas fotografado por Pietro Feliciano


Tudo que eu sabia, a vida veio imensa e engoliu. Hoje só sei que a vida engole. Qual baleia. Grande, ela, nesse mar. Tudo que eu sabia eu não sei mais.

Às vezes fico olhando pro Jonas, espantando-me com sua vidinha de gato. Jonas sendo engolido pela baleia. Ele também.

Eu o adotei em maio do ano passado, ele tinha então aproximadamente dois meses de idade. Fora resgatado, junto com seus irmãos, por uma menina, dessas que dá gosto saber que existe. Ela, que eu não conhecia, compartilhou foto dos gatinhos, que outra pessoa compartilhou e, na rede, chegou a mim. Pegamos o Jonas porque queríamos uma companhia para o Serafim, o gato cinza de olhos amarelos que tínhamos em casa, e que era sempre tão só.

Jonas chegou assustado, pequenino. Escondia-se sob a pia, o sofá, a máquina de lavar. Eu lhe dei colo e carinho, para que ele encontrasse aconchego. Nas primeiras noites, montei acampamento na sala, para dormir com ele e amenizar o desamparo da casa estranha.

Serafim não o recebeu bem. Rodeava-o hostilmente. Ameaçava atacá-lo. Quando dormíamos juntos, eu e Jonas, o outro se aproximava encolerizado, no meio da madrugada. Ficava ao redor, emitindo sons de raiva e angústia.

Na terceira noite, decidi que Joninhas tinha que se virar. Voltei a dormir no meu quarto.

Na manhã seguinte, um dos amigos que mora comigo apareceu com uma foto: Jonas e Serafim juntinhos, compartilhando cama. Tenho até hoje essa cena como fotografia mental. Mágica. Desde então, os dois tornaram-se amigos. Mais que isso. Irmãos. Serafim era líder. Jonas, como bom irmão caçula, seguia seus passos, seus pulos. Serafim tinha necessidade de independência, ficava na porta a miar, pedindo para sair. Jonas sentava-se a seu lado, lambia-o, como a lembrá-lo de sua presença. Os vizinhos não gostavam, mas às vezes tínhamos dó de Serafim e abríamos a porta. Jonas não saía, mas passava a noite na janela, a esperá-lo. Serafim passava a madrugada fora. Quando resolvia voltar, já quase de manhã, Jonas estava em alerta. Ia miar em frente ao meu quarto, para que eu abrisse a porta para o irmão.

Os dois andavam juntos pela casa. Era uma parceria bonita. Jonas sentia-se tão protegido por Serafim, que não queria saber de amor humano. Fugia de nossos abraços e mãos grudentas. Era muito amoroso, ele. Mas todo amor que ele tinha era direcionado a um só ser: o gato cinza de grandes olhos amarelos, seu guia e protetor.

Éramos, em casa, quatro pessoas livres e dois gatos presos. Um ao outro, inclusive. E, como éramos livres e cada qual tinha seu caminho, chegou a hora de discutir separações, bens e dessas coisas de divórcio, que nada têm a ver com amor. No meio disso tudo, surgiu a questão: quem ficaria com os gatos? Entramos numa quase unanimidade de que, não importava onde eles ficassem, não deveriam ser separados. Uma das pessoas não concordou. Foi ela quem, ao ir embora, levou consigo o Serafim.

Jonas sendo engolido pela baleia, e eu espantada, tão impotentes que somos perante a vida.

Ele que construiu sua vidinha de gato em torno desse irmão mais velho, companheiro de brincadeiras e explorações pela casa. Ele que se viu diante da ausência súbita. As despedidas felinas não são preenchidas de cartas, visitas, telefonemas para matar a saudade. Serafim tornou-se vazio, apenas.

Mas também não são assim as nossas despedidas humanas, aquelas reais?

Foi nesse período de um Jonas cabisbaixo e constantemente escondido que fui viajar. Passei quase quarenta dias fora e, quando voltei, tudo em casa parecia mudado. Quando abri a porta, apareceu Ringo, um cachorro simpático e orelhudo, latindo pra mim. Subi as escadas e me deparei com outro novo morador: Xavier, um gato que se pensa cachorro, com boca arfante constantemente aberta.

Vi Jonas hostilizar Ringo, por sua natureza canina, e tentar encontrar Serafim neste novo gato que chegava. Mas Xavier é Xavier. É sempre outro, mesmo que com doçura.

Às vezes Jonas aproxima-se de Xavier, procurando a mesma proteção. Este o morde, simplesmente porque neste momento não está a fim. Depois caminham juntos, depois se lambem. Penso que também é amor, porém outro. Ambos se unem contra Ringo, o cachorro. Inicialmente, sentiam-se ameaçados. Acredito que hoje sejam inimigos por esporte. Talvez também seja amor. Mas outro. Sempre outro.

Eu, que tanto fui Jonas, observo-o com espanto. É assim assustadora a inevitabilidade das mudanças e a inexorável falta de controle que temos perante essa baleia imensa.

De tudo que se tem, hoje só tenho esse pasmo.

Só sei que a vida engole...