sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

As águas que vêm de lá



Na China as pessoas se encontram e cumprimentam umas às outras: "Você já comeu?". É menos uma pergunta do que uma saudação. O equivalente a "tudo bem?". A mim, que só fico bem mesmo depois de comer, faz muito sentido.

A gente se saúda de acordo com aquilo que é. Aqui em casa, às sextas-feiras, tudo amanhece do avesso. E quando a gente se cruza na cozinha, ao acordar, já vai comentando: "Hoje é dia de Patrícia!" É o nosso "bom dia". E o dia fica bom mesmo depois que chega Patrícia e desmancha a bagunça acumulada da semana.

Eu nunca soube de onde ela vinha, mas ela sempre veio, sempre às sextas-feiras. Hoje nos pegamos a conversar na cozinha, como fazemos. Banalidades. O tempo. O sol. A chuva.

Então Patrícia me pergunta:

- Como vocês passaram essa grande chuva?

Respondo:

- Nossa, a chuva aqui foi terrível! A frente da vila ficou alagada. Não tínhamos como sair de casa. Mas como estávamos sem comida, passando fome, uma hora tivemos que dar um jeito. Saímos pelo portão de trás, mas até as calçadas estavam cheias d'água. Para não molhar os pés, fomos penduradas nas grades dos prédios.

E, depois de, quase sem parar para respirar, relatar minha grande aventura, volto-lhe a pergunta:

- E lá, onde você mora (mesmo que eu não soubesse onde ela morava), como foi?

- Lá também alagou muito. Também foi horrível. Quando as ruas começam a encher, a gente costuma abrir os bueiros, para que a água desça. Mas desta vez nem isso adiantou. A água continuou subindo e subindo. Ficamos ilhados, sem água e sem luz. Minha sogra perdeu tudo, as compras, os móveis. Muita gente perdeu tudo. A água chegava quase no teto das casas. As pessoas tinham que subir para as lajes, com as crianças assustadas, chorando. Pensei que, se a água continuasse subindo, nós morreríamos afogados. Foi doloroso de se ver.

Eu, que minutos atrás lhe contara sobre meu "grande alagamento", em que eu não queria molhar os pés, de repente engulo tudo aquilo de volta. Por um momento me engasgo de vergonha. Então dou uma inspirada e continuo a querer saber:

- Mas e você, sua casa?

- A gente mora no andar de cima, sobre a casa da minha sogra. Como tudo dela foi destruído, ela agora mora com a gente. Onde eu moro, muita gente foi para a casa dos parentes, porque perdeu tudo. E também por medo de voltar.

- Aliás, onde você mora?

- Em Queimados.

- Ah. - respondo, sem fazer ideia de onde fica (e logo em seguida à conversa, vou procurar no mapa).

Ela continua:

- Estamos apavorados com a ideia de a chuva voltar.

- Parece que vai melhorar.

- Se Deus quiser.

- Deus quer - completo, sem saber o que digo.

E sei, mais uma vez, o quanto sou pequena, com meus problemas pequenos, diante do tudo e dos outros. E me lembro de novo de olhar pro outro lado da rua, pro outro lado da cidade, pro outro lado do mundo. E penso que os chineses estão certos. Às vezes temos apenas que enxergar a pessoa ao lado e perguntar:

- Você já comeu?


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A Serpente



"Deus chamou cada bicho e atribuiu-lhe uma função. Alguns poderiam voar e espalhar sementes pelo mundo. Outros deslizariam no fundo das águas. Havia ainda aqueles que, sem asas ou guelras, seriam designados para cantar e contar histórias. Então, por último, chamou a Serpente: 

- Para você eu tenho uma função especial. É uma função que nenhum dos outros seres aceitou. E ela será sua, porque você tem coragem: a você cabe mostrar aos seres os caminhos escuros. Não será uma tarefa fácil, porque eles não os querem enxergar. Você será odiada por isso. 

A Serpente pergunta:

- Mas eu terei força para essa tarefa?

- Por isso te dei o veneno. Para se proteger do ódio dos que não querem enxergar. E para isso, também, te dei o veneno: para a cura."

Foi essa a estória que Mirjam nos contou, quando começou o ano de 2013. Éramos seis, no máximo, em torno de uma fogueira, em meio ao Pantanal. Tínhamos uma lua linda e brilhante no céu. E, à frente, uma estrada escura a percorrer.

Não faz muito tempo que tenho começado a compreender meus anos pela simbologia do ano chinês. O Dragão, que em 2012 passou como um furacão, transformando tudo. A Serpente, que em 2013 tem nos guiado pelos nossos caminhos escuros, esses que não queríamos - mas fomos forçados a ver. 

A gente tem infinitas e dinâmicas camadas. A mais superficial é também, por conseguinte, a mais cristalizada: o nosso espaço de conforto. É por ela que transitamos sem sustos. Mas somos muito além. E temos tantas e tantas camadas enterradas. Não queremos encontrá-las, porque elas podem nos ferir. Elas revelam as nossas verdades: aquelas que tanto velamos. 

Não se enganem: a camada mais funda não é mais verdadeira ou legítima que a mais superficial. É outra, apenas. Acontece que somos tudo. Uma e outra. E elas se justificam e se complementam. É que, às vezes, para sustentar a luz é preciso percorrer a escuridão, que não é boa nem má, apenas tão necessária quanto. O yin e o yang. 

(Abro um parêntese para me desviar um pouco do texto inicial, embora permaneça. Não um desvio: outra camada. Enfim. Gosto do viés oriental e costumo explicá-lo com um exemplo, composto por duas histórias contadas por amigos diferentes, no mesmo período. 1) Um amigo me contou que seu médico lhe dissera que, quando acordamos, é o momento em que a boca está mais cheia de bactérias. Sujíssima. E que, portanto, a primeira coisa que devemos fazer é escovar os dentes, antes mesmo de beber água. Assim não ingerimos toda aquela sujeira. 2) Outra amiga, que passou alguns meses em um retiro espiritual na Tailândia, contava-me sobre sua rotina de disciplina no ashram. Acordavam às quatro da manhã e a primeira coisa que deveriam fazer, antes da primeira meditação, era tomar dois litros de água. As bactérias da boca ajudariam o intestino a funcionar melhor. Acho interessante como esses dois relatos são simétricos e ilustram o paradigma ocidental, de eliminação do "escuro", que é considerado mau, versus o paradigma oriental, de agregação e complementaridade.)

Neste ano aconteceram algumas coisas engraçadas, como dormir na casa de uma amiga e amanhecermos com uma jiboia enorme na porta. Sonhar com cobras e cobras. E bem além: ser guiada por elas. Porque é difícil a gente se enfiar por iniciativa própria nos caminhos escuros e estreitos. A gente quer luz e vento e banho de mar. E só quando, de repente, uma onda te carrega para o fundo mais fundo... Então subitamente você está lá. E é assustador, porque você não enxerga. E você tem que apalpar seres estranhos, esquecidos há tanto tempo, que você nem mais sabia que existiam. Assim foi meu ano. Foi intenso. Foi doloroso. Mas, como eu previa o parto, eu aceitava a Serpente. 

Acontece que os caminhos escuros são solitários, em sua incomunicabilidade, mesmo que eu tenha vindo à tona tantas vezes, para tentar expressá-los. E as estradas solitárias são coletivas. E houve muito de coletivo no escuro, em um ano recheado de manifestações, tantas vezes certeiras e tantas vezes desencontradas. Um ano recheado de desencontros. De violências. De tapas de mundo na cara. E de espelhos, vários. Um ano de mergulho nas águas do Ganges, que são escuras e opacas. 

O buraco negro é negro porque absorve toda luz. A luz em excesso ofusca. Um no outro, sempre. Yin e yang. 

"Ninguém me avisou que neste ano o mundo também acabava", pensei outro dia, lembrando o alardeado fim do mundo no ano passado. Mas, que besteira, o mundo acaba sempre. E seguimos de olhos vendados, rumo ao próximo, de luz e sombra. 

Também começamos sempre.