terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A Serpente



"Deus chamou cada bicho e atribuiu-lhe uma função. Alguns poderiam voar e espalhar sementes pelo mundo. Outros deslizariam no fundo das águas. Havia ainda aqueles que, sem asas ou guelras, seriam designados para cantar e contar histórias. Então, por último, chamou a Serpente: 

- Para você eu tenho uma função especial. É uma função que nenhum dos outros seres aceitou. E ela será sua, porque você tem coragem: a você cabe mostrar aos seres os caminhos escuros. Não será uma tarefa fácil, porque eles não os querem enxergar. Você será odiada por isso. 

A Serpente pergunta:

- Mas eu terei força para essa tarefa?

- Por isso te dei o veneno. Para se proteger do ódio dos que não querem enxergar. E para isso, também, te dei o veneno: para a cura."

Foi essa a estória que Mirjam nos contou, quando começou o ano de 2013. Éramos seis, no máximo, em torno de uma fogueira, em meio ao Pantanal. Tínhamos uma lua linda e brilhante no céu. E, à frente, uma estrada escura a percorrer.

Não faz muito tempo que tenho começado a compreender meus anos pela simbologia do ano chinês. O Dragão, que em 2012 passou como um furacão, transformando tudo. A Serpente, que em 2013 tem nos guiado pelos nossos caminhos escuros, esses que não queríamos - mas fomos forçados a ver. 

A gente tem infinitas e dinâmicas camadas. A mais superficial é também, por conseguinte, a mais cristalizada: o nosso espaço de conforto. É por ela que transitamos sem sustos. Mas somos muito além. E temos tantas e tantas camadas enterradas. Não queremos encontrá-las, porque elas podem nos ferir. Elas revelam as nossas verdades: aquelas que tanto velamos. 

Não se enganem: a camada mais funda não é mais verdadeira ou legítima que a mais superficial. É outra, apenas. Acontece que somos tudo. Uma e outra. E elas se justificam e se complementam. É que, às vezes, para sustentar a luz é preciso percorrer a escuridão, que não é boa nem má, apenas tão necessária quanto. O yin e o yang. 

(Abro um parêntese para me desviar um pouco do texto inicial, embora permaneça. Não um desvio: outra camada. Enfim. Gosto do viés oriental e costumo explicá-lo com um exemplo, composto por duas histórias contadas por amigos diferentes, no mesmo período. 1) Um amigo me contou que seu médico lhe dissera que, quando acordamos, é o momento em que a boca está mais cheia de bactérias. Sujíssima. E que, portanto, a primeira coisa que devemos fazer é escovar os dentes, antes mesmo de beber água. Assim não ingerimos toda aquela sujeira. 2) Outra amiga, que passou alguns meses em um retiro espiritual na Tailândia, contava-me sobre sua rotina de disciplina no ashram. Acordavam às quatro da manhã e a primeira coisa que deveriam fazer, antes da primeira meditação, era tomar dois litros de água. As bactérias da boca ajudariam o intestino a funcionar melhor. Acho interessante como esses dois relatos são simétricos e ilustram o paradigma ocidental, de eliminação do "escuro", que é considerado mau, versus o paradigma oriental, de agregação e complementaridade.)

Neste ano aconteceram algumas coisas engraçadas, como dormir na casa de uma amiga e amanhecermos com uma jiboia enorme na porta. Sonhar com cobras e cobras. E bem além: ser guiada por elas. Porque é difícil a gente se enfiar por iniciativa própria nos caminhos escuros e estreitos. A gente quer luz e vento e banho de mar. E só quando, de repente, uma onda te carrega para o fundo mais fundo... Então subitamente você está lá. E é assustador, porque você não enxerga. E você tem que apalpar seres estranhos, esquecidos há tanto tempo, que você nem mais sabia que existiam. Assim foi meu ano. Foi intenso. Foi doloroso. Mas, como eu previa o parto, eu aceitava a Serpente. 

Acontece que os caminhos escuros são solitários, em sua incomunicabilidade, mesmo que eu tenha vindo à tona tantas vezes, para tentar expressá-los. E as estradas solitárias são coletivas. E houve muito de coletivo no escuro, em um ano recheado de manifestações, tantas vezes certeiras e tantas vezes desencontradas. Um ano recheado de desencontros. De violências. De tapas de mundo na cara. E de espelhos, vários. Um ano de mergulho nas águas do Ganges, que são escuras e opacas. 

O buraco negro é negro porque absorve toda luz. A luz em excesso ofusca. Um no outro, sempre. Yin e yang. 

"Ninguém me avisou que neste ano o mundo também acabava", pensei outro dia, lembrando o alardeado fim do mundo no ano passado. Mas, que besteira, o mundo acaba sempre. E seguimos de olhos vendados, rumo ao próximo, de luz e sombra. 

Também começamos sempre.

Um comentário:

Daniel Gnattali disse...

esses amigos ocidentais... :)