terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Como não endurecer em um lugar onde todo mundo precisa, pede e demanda tanto?
E como endurecer sem perder a ternura?
Aqui a gente quase sempre ignora os mendigos, porque são muitos, um atrás do outro. Então de vez em quando tem que poder não enxergar. Mas e a ternura, meu deus, como mantê-la? Também é preciso não se cegar.
Tive uma amiga cuja filhinha tinha estrabismo desde bebê. Um olho voltado para cada lado. Como ela via duas imagens, o cérebro eliminava uma delas. Por isso o médico recomendou que ela mantivesse sempre um dos olhos tapados. Caso contrário, o cérebro acabaria por cegar um deles definitivamente. Assim é. Qualquer excesso é cegueira. É preciso sempre luz, sombra e algum foco.
Aqui é preciso não enxergar demais. Ou ao menos não querer ajudar a todos. Todos são tantos. E tantos são tão sofridos.
Mas de vez em quando lembro de parar. Assim fiz, diante da senhorinha que pedia dinheiro em vão. Cumprimentei-a olhando nos olhos, tirei minha carteira e lhe entreguei uma moeda de cinco rúpias. Ela pegou o dinheiro e chorou. Sua latinha estava completamente vazia e imaginei o quanto de angústia podia-se acumular ali, dentro das horas de solidão e invisibilidade.
Fiquei parada por um segundo à sua frente. Ela desmontou-se, para logo em seguida se recompor e me agradecer, com um aceno de cabeça.
Deixei-a e fui procurar um lugar para meditar. Lembrei de um canto no alto, ao lado do Shivala Ghat. Era lá que eu costumava ir quando precisava encontrar o primeiro amigo que tive em Varanasi. Ele sempre ficava lá, compondo suas canções. Achei terna a ideia de que eu herdara aquele espaço. Era um lugar tranquilo por onde as pessoas não passavam, pois havia degraus imensos para saltar.
Meu professor de meditação (ainda tenho certa relutância em usar a palavra "guru") recomendou que eu repetisse diariamente cada mantra cento e oito vezes, ou seja, um mala completo. Como aprendi em torno de quinze mantras, achei a quantidade exagerada e decidi começar com apenas dois.
Dois me foi o possível e já foi o suficiente para um pouco de leveza. Para que eu voltasse às ruas igual, mas com alguma suavidade. Porque depois, nas ruas, a miséria é tanta. E a vida concreta é tão dura. Mas poder enxergar uma, uma pessoa que seja, já é um pouco de ternura.

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