domingo, 19 de abril de 2015

Então acordei mais decidida do que cedo. Para que toda vida coubesse dentro das horas despertas, resolvi criar alguma organização, fazer uma lista das tarefas diárias. Comi frutas, bebi água e passei a manhã dentro do quarto, a estudar. Tive que me dizer que agora o sol fica. E fica cada vez mais. O inverno passou e não preciso correr às ruas para mendigar cada raio de luz.
- Daqui em diante, só vai piorar. – me disse a israelense de selvagens cabelos alaranjados, durante o almoço – Para mim, já está quente demais.
- Pois para mim está perfeito. – respondi.
Eu a encontro sempre pelos restaurantes e digo que é minha irmã de comida: aquela que entende o prazer transcendental de cada alimento. Ficamos as duas suspirando diante dos pratos. Depois aparecem meus filhotes de cachorro, os que escolhi, os que viveram.
- Você soube que o terceiro morreu? – pergunto ao dono do Dosa Café.
Ele sabia.
Pois eu não sabia o seguinte: que os que estão vivos são fêmeas. Saio para conversar com elas e pedir-lhes que cresçam e vivam. Mas elas, que não sabem de vida e morte, preocupam-se apenas com cada segundo. Rolam no chão, fazem festinha e mordem meu dedo, carinhosamente.
Abro meu livro de híndi para tirar dúvidas de pronúncia:
- Larka. É assim que se fala?
Não é. O dono do restaurante decide que eu tenho de aprender direito, desde o início. Aponta a lista de consoantes e me diz para estudar uma por uma. Mais: tenho que aprender a escrita deles. E como se não bastasse eu já não compreender a diferença de sonoridade entre uma e outra consoante, ele me mostra aquelas que nada significam: são mantras.
- Como mantras?
- Mais pra frente te explico.
E mesmo que pareça muito complicado para mim, acho bonito que certas letras sejam feitas de vazio.
E, porque já estudei , já pratiquei híndi e até já comi sobremesa, decido que é hora de cumprir os compromissos da alma. Vou caminhar até o lado de lá. Tenho as fotos impressas dentro da mochila e quero pelo menos visitar uma família querida.
No caminho, eu e uma criança nos encontramos. Ela fica alegre ao me ver. Namastê. Peraí. Paro. Tiro o pacote de fotos de dentro da mochila amarela e ponho-me a procurar. Sim, é uma delas. Entrego-lhe as fotos. Ela sorri grande, segurando-as com as mãos pequenas. Mais gente se aproxima. Quer ver. Um menino reconhece a irmã. Outro alguém reconhece outro alguém. Eles dão um grito de empolgação a cada pessoa encontrada. Eles estão felizes. E eu estou o quê? Não sei como se nomeia isso de fazer feliz. Mas sei que é mais.
Continuo andando e encontro a casa:
- É ali! – reconheço.
A vizinha me vê e acena. Subo as escadas. Logo aparece a família completa, casal, crianças, vizinhos. Aparece um jovem que eu não conhecera. Demoro para entender: é o rapaz americano. Eu vira várias fotos dele, ainda com dois anos de idade. Era a primeira vez que voltava à Índia.
- Ele telefonou e disse que quer me conhecer. – me contara o homem semanas atrás – Daqui a alguns dias ele estará aqui.
Agora está.
Sinto-me privilegiada por testemunhar este encontro. Por encontrar, também.
Eles se arrumam para ir a um casamento e eu resolvo ir pra casa, antes que o sol se ponha. No caminho de volta, uma multidão de crianças me rodeia. A menina do sorriso grande lhes mostrara suas fotos, e elas também querem ser fotografadas. Tento. Mas elas se empurram tanto, que quase não consigo. Saio disparando aleatoriamente com minha câmera, até ir embora de vez.
Chego em casa e não entendo: como pode caber tanto dia em um dia? Ou tanta vida em um dia? Ou tanta vida em uma vida?
- Está vendo? – digo a mim mesma – É só questão de organização.
Mas não é. No fundo acredito mais na desordem e no descabimento: a matéria da vida. Esta, que não se mede por fatos. Acredito que dentro de cada acontecimento resida o não-acontecimento. E que ele seja a vida mesma. E é minha fé nas entrelinhas que faz com que eu siga a consoante-mantra:
- Ela é nada. Não tem som nenhum. – me explicara o senhor do restaurante.
Talvez seja por aí o caminho.

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