domingo, 19 de abril de 2015

26 de março

- Amor cabe em contexto? - perguntaram-me certa vez.
Não sei muito sobre quase nada. Mas de Amor eu sei.
Eu vejo Varanasi do avião, com suas luzes acesas, na noite que já entrou. Eu vejo o Ganges de cima e ele em nada se parece com o Ganges que conheço. Visto do céu, até parece que tem margens.
Não tem.
O Amor que descobri em Varanasi não cabe em uma cidade, todo ele transbordante. É tão bonita a vida que corro o risco de escrever palavras bregas, doces bobagens. Faço má literatura com verdades.
Meu coração acelerou logo que acordei, logo que me dei conta. Tem sido assim há alguns dias, mas agora a dor é pequena em meio à alegria do que foi. Não. Do que é. Tudo continua sendo, mesmo que a gente não veja.
Mas, sabe, eu vejo.
Hoje era a semi-final do campeonato de críquete, cidade em festa. Veio sentar-se comigo, no café da manhã, um senhor alemão, para acompanhar a partida. E depois um garoto francês que vive em New York. Em poucos minutos, esquecemos o jogo e começamos uma animada conversa.
Eu tive vontade de dizer ao garoto que ele parecia um búfalo. Pensei melhor e preferi não correr o risco de ser mal interpretada. É que ele tinha a pele negra e brilhante. E tinha músculos fortes e ossos salientes. Mas ele mal chegara a Varanasi e, em menos de vinte e quatro horas, já iria embora. Como explicar um búfalo a alguém que não os vivera diariamente pelo rio?
O búfalo nos contou que iria estudar no Brasil, no meio do ano. Seu pai vivia na Bahia. E sua mãe era chinesa.
- Jura?
Depois que ele falou, fez sentido.
Já o alemão, eu não entendia muito o que ele dizia. Sei que ele comercializa cristais: quartzos, ametistas...
- E onde você arranja essas pedras? Na Índia?
- Não, no Brasil.
Ele explicou que os cristais são extraídos no Rio Grande do Sul e de lá seguem para Hong Kong, para serem polidos. O destino final era a Europa.
Todos nós pegaríamos um voo hoje para sair de Varanasi.
- Pena que nossos horários são diferentes, senão poderíamos dividir um táxi pro aeroporto - lamentei.
E depois fui embora correndo, porque o dia era curto. Fui comprar incensos para levar, mas não vi a loja e acabei indo parar na porta do alfaiate:
- Este vestido pendurado é de alguém ou está à venda?
Estava à venda. Era um vestido branco e assimétrico, de seda crua. Pedi para que ele o ajustasse até às três da tarde e corri para casa. Ia acabar de fazer as malas, mas havia marcado de almoçar com um amigo e já estava em cima do horário. Acabei saindo sem de fato ter entrado.
Como encontrei o restaurante fechado, fui esperar o amigo na estrada principal, enquanto me despedia de minhas bebês caninas, Ek e Do. Meu amigo chegou - esse, que me traz uma familiaridade carioca. Ele acabava de voltar do Nepal e trazia ares frescos, montanhosos. Decidimos experimentar um novo restaurante nepalês, que abrira. Eu estava feliz de reencontrá-lo, mesmo que sejam breves os encontros.
Depois eu fui arrumar a mala e ele me encontrou, em seguida, em casa. Trazia uma caixa de doces e me chamou do corredor.
- Eu perguntei pro moço lá embaixo qual era seu quarto, e ele respondeu que eram o 103 e o 104 - contou-me ele, confuso.
Eu vivia no 104, em realidade. Mas faz sentido que a gente se expanda. Com o tempo, passamos a pertencer a todos os espaços.
- Eu fico tão feliz cada vez que vejo a placa anti-fumo no meu canto do restaurante! - eu dissera ao companheiro de jornada outro dia - Está aqui até hoje, e as pessoas obedecem!
- Isso é um milagre, um milagre mesmo. Nunca pensei que fosse funcionar. E confesso que, quando você teve essa ideia, na época, achei-a até um tanto tola. - admitiu.
Pois milagres acontecem. E só acontecem no Amor. Eu me expandira em uma cidade sagrada, e ela se abrira para mim. E foi através dos seres, da comunicação cotidiana entre as coisas vivas.
- Cuidado com o carneiro, ele é muito perigoso! - dissera-me um rapaz há uns dias, quando me aproximei do bicho.
- Ele não é perigoso. - respondi - Ele é meu amigo.
Os milagres.
Deu uma pena quando vi, sobre a cama, todos os objetos que não caberiam na bagagem, que ficariam para trás. O pijama com que eu dormira em tempos frios, o poncho, a camiseta manchada do Holi. Então eu tive que dizer a mim mesma que ficaria, sim, uma vida linda, de caminhos miraculosos, para trás. Mas ela não consistia nos objetos que eu deixava. E que o essencial, o essencial mesmo, permanecia comigo.
Aprendi um pouco do desapego, mas só através do apego profundo. Aprendi a deixar o ego um pouco, que seja, de lado. Pois Varanasi é o lugar onde se enxerga, a cada mínimo instante, que não temos o controle de nada. Mas que, quando se deixa fluir com o mundo, o que vem é mais belo do que qualquer plano. É que os milagres vêm do plano do inimaginável.
Então fui, junto com a irmã que encontrara na noite anterior, agradecer à Mãe Ganges, antes de ir embora. Fiz minha oração e deixei que ela fluísse.
Depois peguei minhas malas e, em meu novo vestido branco de seda crua, percorri, mais uma vez, aqueles labirintos por onde eu perdera alguém que já fui. E onde eu encontrara muito mais. Fui arrastando a mala e me despedindo das pessoas. Todos paravam para falar comigo, para me desejar coisas boas. Eu via verdade e afeto naqueles olhos.
- Quando você volta?
- Só sei que volto.
E peguei, sem um lágrima, um tuk tuk motorizado até o aeroporto. E de lá um avião, de onde Varanasi pareceria quase uma cidade real, vista assim de cima.
E assim acaba esta oração.
Que o mundo saiba o quanto de Amor é possível.
Amém.

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