domingo, 19 de abril de 2015

21 de março

Está aberta a temporada de despedidas.
Hoje partiu a primeira pessoa que deixou um buraco fundo. Preferi assim, é verdade. Que tenha sido ele a ir embora primeiro. Que tenha sido eu a ficar.
Ele foi um marco na minha estadia em Varanasi. Foi meu protetor e família.
Tenho pra mim que foi o belga gigante que o nomeou meu guardião. Os dois caminhavam juntos, eu passei por eles, mas não lembrava seu nome:
- Oi, português! - cumprimentei-o.
Eu ia ao Manikarnika, o principal ghat de cremação. Eles resolveram me acompanhar. Eu estava fascinada pela história do belga, que resgatara uma águia ferida no dia anterior. Ele era grande e falante. Nunca havia ido ao Brasil ou a Portugal, mas falava um pouco da nossa língua:
- Por causa do Santo Daime - explicou empolgadíssimo.
Sabia cantar os hinos do movimento, dizia que precisava conhecer o Brasil, falava na vacina do sapo e repetia, em português mesmo:
- Sincretismo! Sincretismo religioso!
E depois contou, com orgulho, como alguém o definira: "violento cordial". Era bem isso. Talvez pelo porte e pela energia de fogo, havia violência em seu falar, mesmo falando de coisas boas e belas.
- Mas amanhã me mudo pra Sarnath. - contava - Pra cuidar da águia e ficar em paz. Varanasi me deixou mais agressivo do que o normal.
Ele contava que estivera vários dias com uma amiga, protegendo-a.
- Varanasi é muito hostil para mulheres. - continuou - E como eu entendo hindi, sei a intenção de todos que se aproximam. Não deixava ninguém chegar perto dela e estava constantemente em posição de ataque. Hoje ela foi embora. E eu preciso me aposentar dessa função, já me tornei agressivo demais.
E completou, apontando para o português:
- Mas ele pode assumir esse papel. Você vai precisar de alguém que te acompanhe.
Assim foi.
Marco, seu nome. Pra mim ele foi o marco de muitas coisas. Foi quem me levava aos concertos de música e me acompanhava em segurança até minha casa. Foi quem me apresentou a barraquinha de rolos de ovos com legumes e com quem, mais tarde, decidi ir ao Nepal. E era quem me obrigava a comer muitas frutas, de manhã:
- Come uma banana.
- Não quero.
- Só uma.
- Banana é seca.
- É molhada!
Nós tínhamos crises de risos e eu acabava por comê-las. Acho que ele foi a única boa influência alimentar que eu já tive, já que, entre meus amigos, costumo ser eu a de hábitos mais saudáveis.
Ele gostava de elementos da cultura brasileira que eu desconhecia. Escutava Grupo Revelação. Falava-me de um grupo de humor chamado "Os barbixas ". Eu lhe explicava que muita gente no Brasil torcia o nariz para tudo isso, e que era interessante que ele, por ser de fora, viesse sem preconceitos. Mas não, não consegui gostar d'Os barbixas.
Mostrei-lhe Caetano, Belchior e Zeca Baleiro. Expliquei-lhe que em Varanasi ninguém se importava se desafinávamos ou se éramos ridículos. Nos permitimos ser. Cantávamos alto pelas ruas e ensinávamos um ao outro nossas canções de infância.
Escolhemos o mesmo mestre: ele aprendia sitar, e eu, meditação com mantras. Íamos juntos, dividindo tuk tuk. E voltávamos comentando:
- Esse guru trapalhão!
Passei-lhe referências de meus escritores preferidos: Clarice Lispector, García Marquez, Milan Kundera, Eduardo Galeano. Ele me enviou uma mensagem quando leu o conto "Os desastres de Sofia".
- Você tem sensibilidade para ser tocado por Clarice - constatei.
Falávamos mal do sistema. Compúnhamos músicas, escrevíamos textos coletivos e poemas. Coloríamos, montávamos quebra-cabeças e ensinei-lhe a fazer mandalas.
Ele deu sentido à canção que aprendi na infância: "Indo eu, indo eu a caminho de Viseo..." Ele vinha de lá, de Viseo.
- Ah, nunca soube que era o nome de uma cidade! - espantei-me - E me diga... O que significa "indueu"?
- São duas palavras: "indo" e "eu".
- Ah!
Eu aprendera essa canção quando pequena, nas aulas de iniciação musical, e a letra me parecia um amontoado de palavras sem sentido.
- Nunca conheci outra pessoa que também soubesse essa música! É tão da minha infância!
Eu imitava suas expressões do português de Portugal. Ele ria do meu sotaque brasileiro.
- Quem diria que eu viria a Varanasi para aprender português! - dizíamos ambos.
E os dias se passaram tão rapidamente quanto intensos.
Ele estava adoentado desde que voltara do Nepal. Iria encarar mais quarenta horas de trem. Colocou tudo dentro da mochila, as pedras só pesando, e fomos almoçar juntos. Eu cismei que ele precisava conhecer Vinicius de Moraes e Toquinho. Mostrei-lhe Aquarela: "Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo... que descolorirá... E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo... que descolorirá..."
Enquanto não dava sua hora, ficamos jogando xadrez no restaurante. Incomumente, ganhei as duas partidas. Normalmente era sempre ele quem ganhava. Sua cabeça doía.
- Quando entrar no comboio - eu imitava seu sotaque português - faça uma meditação com luz violeta. Prometo meditar daqui e te enviar essa luz também.
Segui um pouco com ele pela rua e depois o deixei seguir sozinho. Quando virei as costas, minha garganta apertou, mas não chorei. Fui andar pelos ghats e saí caminhando rápido e leve, com meus novos pés descalços. Andei para um lado, voltei, andei de novo. Não quis me permitir ser atacada pelo sentimentalismo e por isso era tão necessário: andar.
Parei apenas quando encontrei uma cerimônia gigante. Não sei do que se tratava, mas eram homens jovens, enrolados em panos, que liam um livrinho e colocavam uvas passas em um prato. Havia caixas e caixas de passas. E eram muitos homens. Eles acompanhavam um mantra que saía da caixa de som.
Sentei-me ali mesmo e fiquei a escutar o mantra. Deixei a cabeça esvaziar, quase hipnotizada. Então me lembrei do meu amigo e visualizei-o em luz violeta. Mandei-lhe as minhas vibrações. Era fácil, porque ao longo do rio tudo vibrava.
Depois senti fome e quis ir aos restaurantes de sempre, porque o mundo continuava. No caminho, entretanto, vi um homem vender uma comida de rua - nunca aprendi o nome. É um bolinho de batata amassado com vários molhos e vegetais e uma casquinha crocante por cima. Comi uma e saí de lá sem saber se estava tonta da pimenta ou da ausência.
Fui ao restaurante mesmo assim:
- Uma salada grega. Sem cebola e sem paneer (o queijo bom e leve indiano).
- Sem paneer? - estranhou o moço.
- Só por hoje. É que hoje eu preciso de vegetais.
E depois, em vez de comer sobremesa, fui direto ao Baba Lassi. As crianças da família estavam por ali. Fiquei um tempão só falando e brincando com elas, antes de voltar para casa. Levava bananas, para não passar fome à noite. Molhadas.
Está aberta a temporada de despedidas. E em breve serei eu a partir.
Tento conviver com os buracos e aceitar os vazios e suportar o tempo e transmutar as energias com luz violeta, como aquarela.
Que um dia, enfim... descolorirá.

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