sábado, 19 de fevereiro de 2011

Falta um

Hoje subi no elevador com ela e um casal de jovens. Pela intimidade com que falava com o garoto, deviam ser o filho e a nora. Casal bonito, vivo, forte. E foi inevitável pensar que faltava um.

Vizinhança tem dessas coisas. Uma quase intimidade entre estranhos. A gente vê a rotina do outro, sua movimentação, seus horários, suas companhias. No meu prédio, com três blocos e tantos moradores, acho difícil acompanhar, reconhecer quem é quem. São alguns poucos rostos familiares. A mulher que passeia toda manhã com dois cachorrinhos cinzas. A que tem um garotinho lindo, que se esconde entre as pernas dela. O que coleciona carros antigos.

A de hoje, em especial, eu reconheço sempre. E vê-la me dá a sensação estranha de que eu sei mais do que deveria. Deve fazer mais de um ano, quando ela passou a existir para mim. Era uma manhã qualquer, eu entrei no elevador, e ela do nada perguntou:

- Você vai para Laranjeiras?

Levei um susto. Como ela sabia? Não sabia. Naquela manhã específica, ela ia levar o carro para uma revisão em Laranjeiras e, por algum motivo cósmico, resolveu perguntar para a primeira pessoa que entrou no elevador. Eu, no caso.

- Vou. - respondi, ainda confusa.

- Estou indo pra lá. Quer carona?

Quis. E seguimos as duas, conversando sobre banalidades. Ela explicou que tinha acabado de trocar o carro, mas que o vidro dera problema e por isso ela ia para a concessionária, na Rua das Laranjeiras. Estávamos tendo um desses papos de elevador, mas desta vez dentro do carro, em um percurso mais longo e, portanto, com mais riscos. Podia-se derrapar e, num acidente, trombar com a intimidade de uma pessoa inocente. Éramos transeuntes uma para a outra.

E entre conversas sobre o tempo, o trabalho, os estudos, eis que eu solto a pergunta:

- Quantos filhos a senhora tem?

- É a primeira vez que me perguntam isso.

Houve um momento de ruidoso silêncio. Depois dessa pausa, em que eu tentava entender, confusa, como seria a primeira vez em que ela ouvia pergunta tão banal, ela respondeu:

- Um. Tenho um filho. - depois de outra pausa - Eu tinha uma filha, mas ela morreu de leucemia há dois meses.

E estava feito o estrago. Agora eu a conhecia mais do que deveria, eu sabia muito mais do que se deve saber de alguém que às vezes passa, cruza seu caminho, dá bom dia. Eu sabia sua dor mais profunda. E esse excesso de intimidade criou entre nós um abismo inexorável. Falamos mais algumas banalidades, dessa vez com um constrangimento crescente. Então chegamos, aliviadas, ao nosso destino.

Hoje subimos juntas no elevador. Ela deu um cumprimento seco, sem me olhar nos olhos. Eu vi seu filho e sua nora, grandes e vivos. E me veio esse pensamento: falta um. Existem faltas que faltam sempre, eu sei. Para não constrangê-la, eu fingi que não sabia. Ela não me olha nos olhos. Ela nunca me olha nos olhos.

Temos este pacto implícito de fingir que aquela manhã rumo a Laranjeiras nunca existiu.

5 comentários:

alicexavier@bol.com.br disse...

Que lindo texto, Lian. Nessas situações, não se tem mesmo o que dizer né. Apesar de tudo, bom que esse diálogo foi com vc, coração tão grande! BjooO!

Daniel Carneiro disse...

Maravilhosamente emocionante! Vc escreve como ninguém as coisas cotidianas e belas!

Maria Cristina disse...

Nossa, estou ainda digerindo... q situação!

Assessoria de Comunicação disse...

Realmente diariamente deparamos com cituações, e temos que ter uma certa jabilidade pra lidar,, mas isso tambem é um dom.. pelo que vi e li, você tem esse dom.. prazer em ter lido sua passagem,, abraços Robson Messias

Ana disse...

A ausência as vezes pode ser tão cruel!