- O filho mais velho raspa a cabeça quando o pai morre – me contaram – e fica só com aquele rabinho atrás, para representar o terceiro olho.
- Mas o terceiro olho não é na frente?
- É. Mas na frente não tem cabelo.
Tudo aqui me intriga. O moço do restaurante, que apareceu de cabelo raspado, faz inúmeras perguntas sobre minha vida pessoal, como fazem todos. Eu me sinto em uma armadilha e tento me desvencilhar. Ele quer dinheiro trocado, mas o outro grande mistério, sobre o qual me pergunto todos os dias, é de onde brotam as notas pequenas. Todos exigem trocado, enquanto os caixas eletrônicos só fornecem notas grandes. De onde vêm as pequenas? E de onde vêm as moedas, meu deus?
É tudo tão misterioso.
E eu juro que ficava olhando os rituais à beira do rio e pensando: Mas é um ato religioso ou culinário? Havia sempre um líder, que falava coisas que eu não compreendia. E as pessoas que o seguiam, fazendo bolinhos em pratos de metal. Há sempre muitos bolinhos. E muitos pozinhos. Temperos? Até que um dia um moço me explicou que se tratava de pessoas realizando rituais funerários para seus parentes.
As mulheres em sáris. Os homens com um tufinho de cabelo em meio à careca. Seguidos pelo líder, eles dizem alguma coisa qualquer e encostam o rabo da vaca (sim, eis que surge uma vaca na história) na testa. No terceiro olho, pra ser mais precisa. O da frente. Também encostam o terceiro olho nas paredes dos templos. Para eles, o “ver” é essencial em sua relação com os deuses.
E, já que estou na Índia, abri mão de vez de qualquer atitude blasé. O que vejo eu vejo. Não finjo que não. Permito-me ficar parada, observando. Sou curiosa, sim. Às vezes alguém se senta ao meu lado. Explica-me qualquer coisa daquilo que me intriga. Em seguida explica, também, a que vem:
- De onde você é?
- Do Brasil.
- Então você veio de lá, pagou avião, pagou trem, hotel, roupas, etc. Você tem dinheiro. Pode me pagar trezentas rúpias para eu ler sua mão.
- Não, obrigada.
- Vai te trazer muita felicidade, glória, fortuna. Não quer?
- Não.
Quem liga para fortuna quando se tem o mundo inteiro?
Eu aceitaria talvez um pouco de sol. As ruas escuras, frias e enlameadas me dão preguiça de sair. Faço o trajeto básico. O mais curto. Sair de casa só para comer, no restaurante do outro lado do túnel. Comprar água na esquina. Cancelo algum compromisso em que tenha de ir mais longe.
- Remarco outro dia, quando tiver sol.
E, mesmo que as horas sejam lentas, os dias passam como raios. Como chuva. Eu olho o calendário:
- Semana que vem já é fevereiro.
E tento me lembrar quantas fui, antes de chegar aqui. Mudou tudo, só não sei o quê.
A gente só vê com clareza depois. Talvez não veja nunca.
Eu sei que nunca comi tanta fruta na vida. Bananas. Laranjas. Maçãs. Romãs. Outra laranja. E mesclo as refeições. Faço brunch. Depois almojanta. Bebo muito chá de gengibre com limão, e tenho certeza de que o garçom não entende por que não o peço logo, se ele sabe que vou pedir.
Os indianos acham curioso eu usar brinco de um lado só. Perguntam:
- Você perdeu o outro?
Eu respondo que sim e o engraçado é que não é mentira.
Eu nunca uso brinco nas duas orelhas. Eu nunca uso dourado. Eu nunca uso argola.
Então um dia olho no espelho e uso.
A gente não tem clareza do que e nem de como aconteceu. Mas tem algo nesta cidade que um dia nos transforma.
- Mas o terceiro olho não é na frente?
- É. Mas na frente não tem cabelo.
Tudo aqui me intriga. O moço do restaurante, que apareceu de cabelo raspado, faz inúmeras perguntas sobre minha vida pessoal, como fazem todos. Eu me sinto em uma armadilha e tento me desvencilhar. Ele quer dinheiro trocado, mas o outro grande mistério, sobre o qual me pergunto todos os dias, é de onde brotam as notas pequenas. Todos exigem trocado, enquanto os caixas eletrônicos só fornecem notas grandes. De onde vêm as pequenas? E de onde vêm as moedas, meu deus?
É tudo tão misterioso.
E eu juro que ficava olhando os rituais à beira do rio e pensando: Mas é um ato religioso ou culinário? Havia sempre um líder, que falava coisas que eu não compreendia. E as pessoas que o seguiam, fazendo bolinhos em pratos de metal. Há sempre muitos bolinhos. E muitos pozinhos. Temperos? Até que um dia um moço me explicou que se tratava de pessoas realizando rituais funerários para seus parentes.
As mulheres em sáris. Os homens com um tufinho de cabelo em meio à careca. Seguidos pelo líder, eles dizem alguma coisa qualquer e encostam o rabo da vaca (sim, eis que surge uma vaca na história) na testa. No terceiro olho, pra ser mais precisa. O da frente. Também encostam o terceiro olho nas paredes dos templos. Para eles, o “ver” é essencial em sua relação com os deuses.
E, já que estou na Índia, abri mão de vez de qualquer atitude blasé. O que vejo eu vejo. Não finjo que não. Permito-me ficar parada, observando. Sou curiosa, sim. Às vezes alguém se senta ao meu lado. Explica-me qualquer coisa daquilo que me intriga. Em seguida explica, também, a que vem:
- De onde você é?
- Do Brasil.
- Então você veio de lá, pagou avião, pagou trem, hotel, roupas, etc. Você tem dinheiro. Pode me pagar trezentas rúpias para eu ler sua mão.
- Não, obrigada.
- Vai te trazer muita felicidade, glória, fortuna. Não quer?
- Não.
Quem liga para fortuna quando se tem o mundo inteiro?
Eu aceitaria talvez um pouco de sol. As ruas escuras, frias e enlameadas me dão preguiça de sair. Faço o trajeto básico. O mais curto. Sair de casa só para comer, no restaurante do outro lado do túnel. Comprar água na esquina. Cancelo algum compromisso em que tenha de ir mais longe.
- Remarco outro dia, quando tiver sol.
E, mesmo que as horas sejam lentas, os dias passam como raios. Como chuva. Eu olho o calendário:
- Semana que vem já é fevereiro.
E tento me lembrar quantas fui, antes de chegar aqui. Mudou tudo, só não sei o quê.
A gente só vê com clareza depois. Talvez não veja nunca.
Eu sei que nunca comi tanta fruta na vida. Bananas. Laranjas. Maçãs. Romãs. Outra laranja. E mesclo as refeições. Faço brunch. Depois almojanta. Bebo muito chá de gengibre com limão, e tenho certeza de que o garçom não entende por que não o peço logo, se ele sabe que vou pedir.
Os indianos acham curioso eu usar brinco de um lado só. Perguntam:
- Você perdeu o outro?
Eu respondo que sim e o engraçado é que não é mentira.
Eu nunca uso brinco nas duas orelhas. Eu nunca uso dourado. Eu nunca uso argola.
Então um dia olho no espelho e uso.
A gente não tem clareza do que e nem de como aconteceu. Mas tem algo nesta cidade que um dia nos transforma.
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