Domingo de sol. Acordei pensando em várias coisinhas para resolver, pequenas compras a fazer. Mas, perdoem-me, era domingo. E era de sol.
Fui andar por aí. E fui para o lado de lá. Fica depois do ghat das cremações e fica cada vez melhor. É como se depois da vida e da morte houvesse muito mais vida. Os turistas nunca estão por ali. Tampouco os vendedores. Mas as pipas. As crianças. Os peregrinos com sacos imensos à cabeça. E a vida cotidiana de um lugar em que mal se fala inglês.
Duas meninas puxaram-me para pular corda com elas. Tirei os chinelos, o poncho, a bolsa e fui. Elas brincaram com meu cabelo. Deixei-me brincar e ser brincada.
Depois um grupo de mulheres me acenou. Fui sentar-me com elas na escadaria. Vieram suas crianças, curiosas, rodear-nos. Elas falavam comigo e não nos entendíamos na língua. Eu usava meu recurso de balançar a cabeça. Um rapaz veio traduzir um pouco da conversa. Uma mulher perguntou de onde eu era. Uma outra disse que queria voltar ao meu país comigo, pois não gostava dali. Uma terceira convidou-me a almoçar em sua casa. Eu, que não sei receber tanto, menti que já havia comido.
Então , como elas me olhassem com curiosidade e eu não falasse a língua, comecei a contar em voz alta. Era tudo que eu sabia em híndi, os números. Elas balançavam a cabeça, a confirmar. As crianças contavam comigo, acompanhando-me.
Pela primeira vez me veio o pensamento a sério: é urgente fazer aulas de híndi.
Despedi-me para continuar minha caminhada, mas a poucos metros dali um homem começou a me chamar. Ele gritava e acenava de sua casa, mas, como era homem, não lhe dei atenção.
Até que.
Ouvi uma voz infantil. Olhei. Percebi-o rodeado de crianças. E fui. Subi as escadas que davam para sua casa, lá no alto. Cheguei à murada e ele convidou-me a entrar. Sua esposa estava sentada ali, no quintal. As crianças, suas e da vizinhança, todas à volta.
Há uma porta pela qual se entra e não se volta nunca.
Havia esse homem que era simpático e ávido por comunicação. Havia essa mulher. E, nessa mulher, um mundo. O pensamento sobre as aulas de híndi, a essa altura, tornaram-se obsessão. Dei-me conta de que a língua era a chave pela qual acessaria o mundo das mulheres, que quase nunca falam inglês. E havia as crianças. E era engraçado ver crianças pequeninas, quase bebês, da vizinhança, engatinhando soltas por ali.
O que fazia eu? Nem sei. Sei que passei a tarde toda naquela casa, naquele quintal. A mulher quis pintar minhas unhas. Eu detesto esmalte, mas deixei. Ela pintou meus pés e minhas mãos de vermelho com florzinhas. Bebi chai com eles. Colocaram a bebê de quatro meses no meu colo. Fiquei carregando-a, incrédula com o tamanho de sua mãozinha, a agarrar meu dedo. E com aquela confiança que subitamente me fora entregue.
Às vezes ficava de bobeira, perseguindo as crianças e fotografando os macacos. Às vezes contava sobre mim, sobre minha família. Ele traduzia à esposa. Mostrou-me seus álbuns de fotos. Todas do seu tempo de solteiro. Fotos de viagens: Ladakh e Kashmir. E só. Do seu tempo de morar na casa do barco.
- Naquela época o Main Ghat era tranquilo. Não havia essa cerimônia enorme, com tanto barulho e pessoas.
Ofereceu-me comida.
- Já almocei - menti.
- Só um pouquinho - ele insistiu.
Então aceitei e lá foi ele cozinhar.
E a comida estava tão boa.
Há momentos que são especiais e a gente só vê depois. Ali eu via tudo. Eu vi acontecer: a porta. Eu me vi nocauteada por um povo que, de súbito, me ganhara de vez.
Só não vi o tempo passar. De repente era quase escuro e achei melhor ir embora.
- Volte sempre - ele me disse, enquanto a família acenava.
Mas eu nunca fui.
Fui andar por aí. E fui para o lado de lá. Fica depois do ghat das cremações e fica cada vez melhor. É como se depois da vida e da morte houvesse muito mais vida. Os turistas nunca estão por ali. Tampouco os vendedores. Mas as pipas. As crianças. Os peregrinos com sacos imensos à cabeça. E a vida cotidiana de um lugar em que mal se fala inglês.
Duas meninas puxaram-me para pular corda com elas. Tirei os chinelos, o poncho, a bolsa e fui. Elas brincaram com meu cabelo. Deixei-me brincar e ser brincada.
Depois um grupo de mulheres me acenou. Fui sentar-me com elas na escadaria. Vieram suas crianças, curiosas, rodear-nos. Elas falavam comigo e não nos entendíamos na língua. Eu usava meu recurso de balançar a cabeça. Um rapaz veio traduzir um pouco da conversa. Uma mulher perguntou de onde eu era. Uma outra disse que queria voltar ao meu país comigo, pois não gostava dali. Uma terceira convidou-me a almoçar em sua casa. Eu, que não sei receber tanto, menti que já havia comido.
Então , como elas me olhassem com curiosidade e eu não falasse a língua, comecei a contar em voz alta. Era tudo que eu sabia em híndi, os números. Elas balançavam a cabeça, a confirmar. As crianças contavam comigo, acompanhando-me.
Pela primeira vez me veio o pensamento a sério: é urgente fazer aulas de híndi.
Despedi-me para continuar minha caminhada, mas a poucos metros dali um homem começou a me chamar. Ele gritava e acenava de sua casa, mas, como era homem, não lhe dei atenção.
Até que.
Ouvi uma voz infantil. Olhei. Percebi-o rodeado de crianças. E fui. Subi as escadas que davam para sua casa, lá no alto. Cheguei à murada e ele convidou-me a entrar. Sua esposa estava sentada ali, no quintal. As crianças, suas e da vizinhança, todas à volta.
Há uma porta pela qual se entra e não se volta nunca.
Havia esse homem que era simpático e ávido por comunicação. Havia essa mulher. E, nessa mulher, um mundo. O pensamento sobre as aulas de híndi, a essa altura, tornaram-se obsessão. Dei-me conta de que a língua era a chave pela qual acessaria o mundo das mulheres, que quase nunca falam inglês. E havia as crianças. E era engraçado ver crianças pequeninas, quase bebês, da vizinhança, engatinhando soltas por ali.
O que fazia eu? Nem sei. Sei que passei a tarde toda naquela casa, naquele quintal. A mulher quis pintar minhas unhas. Eu detesto esmalte, mas deixei. Ela pintou meus pés e minhas mãos de vermelho com florzinhas. Bebi chai com eles. Colocaram a bebê de quatro meses no meu colo. Fiquei carregando-a, incrédula com o tamanho de sua mãozinha, a agarrar meu dedo. E com aquela confiança que subitamente me fora entregue.
Às vezes ficava de bobeira, perseguindo as crianças e fotografando os macacos. Às vezes contava sobre mim, sobre minha família. Ele traduzia à esposa. Mostrou-me seus álbuns de fotos. Todas do seu tempo de solteiro. Fotos de viagens: Ladakh e Kashmir. E só. Do seu tempo de morar na casa do barco.
- Naquela época o Main Ghat era tranquilo. Não havia essa cerimônia enorme, com tanto barulho e pessoas.
Ofereceu-me comida.
- Já almocei - menti.
- Só um pouquinho - ele insistiu.
Então aceitei e lá foi ele cozinhar.
E a comida estava tão boa.
Há momentos que são especiais e a gente só vê depois. Ali eu via tudo. Eu vi acontecer: a porta. Eu me vi nocauteada por um povo que, de súbito, me ganhara de vez.
Só não vi o tempo passar. De repente era quase escuro e achei melhor ir embora.
- Volte sempre - ele me disse, enquanto a família acenava.
Mas eu nunca fui.
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