Hoje o dia amanheceu um pouquinho mais iluminado.
Eu andei pelo Ganges à procura de um lugar para sentar e ler meu livro, um lugar ao sol. Fui observando os seres, todos radiantes diante daquele solzinho que timidamente surgira. Passei pelo Harishchandra Ghat, o menor dos ghats de cremação. Ao lado, havia uma bandinha tocando, rodeada de pessoas e bichos alegres. E como tenho esse costume de seguir a música, sentei-me ali mesmo e abri meu livro.
Comecei a ler, até que, a certa altura, um senhorzinho pôs-se a espiar o que eu lia, metendo a cabeça entre mim e meu livro. Sorri para ele, que logo puxou assunto. Contou que trabalhava na cremação dos corpos e que aquela banda tocava para que as pessoas ficassem alegres, pois isso ajudaria o morto a ter uma boa passagem. Perguntou se eu queria que ele me explicasse sobre os rituais de cremação. Eu sabia que ele pediria dinheiro por isso, mas aí olhei para o livro, "Banaras - city of light", indicado pelo meu orientador indiano para que eu compreendesse a dinâmica da cidade, olhei de novo para o senhor, que propunha me ensinar sobre um dos rituais mais interessantes da mesma e escolhi ir com ele.
Ele explicou que no ghat maior, o Manikarnika, apenas hinduístas podiam ser cremados, enquanto ali eles aceitavam pessoas de todas as religiões. E que aquela banda e as bandeiras e a movimentação toda do dia era porque hoje seria a cremação de uma pessoa importante, alguém ligado à política. E eu realmente nunca vira aquele lugar assim, tão enfeitado de flores e cheio de pessoas bem vestidas. Subimos a uma construção e fiquei olhando tudo aquilo de cima. Ele ia me apontando as coisas:
- Aquele é o mahabrâman. Ele mora aqui e faz as orações para os mortos.
- Ah, ele é um brâman.
- Maha. Mahabrâman. É o último passo na roda da encarnação, antes de se elevar.
- Ah.
Aquele canto ali é onde as pessoas pobres são cremadas. Há pessoas que não têm dinheiro, então as viúvas me oferecem suas joias, eu cato as madeiras mais baratas e ajudo-as. A madeira mais cobiçada é o sândalo, mas ele é muito caro e vem de longe, de uma região próxima de Goa... E você sabe por que as mulheres não vêm aqui?
- Por quê?
- Existem dois motivos. O primeiro é que tradicionalmente as viúvas se atiravam ao fogo, quando o marido morria.
- E elas ainda fazem isso?
- Não, agora é ilegal. E o outro motivo é que elas choram muito. Mau carma para o morto.
Fiquei mais um tempo ao seu lado, assistindo à preparação do crematório vip. Mas fazia um solzinho. Na cidade, os seres agitavam-se por aí. No mundo não-vip, todos os seres são iguais em sua miséria. Este é o lugar onde bichos e homens se equivalem, em sua selvageria e delicadeza. Quando faz frio, há sempre um fogo que reúne todos: homens, vacas, cães e cabras. E como hoje fazia sol, estavam todos espalhados, apreciando o pouquinho de calor que nos era ofertado. As vacas são sagradas, mas apanham para sair do caminho. Os cachorros levam chutes, mas recebem carícias. As cabras vestem roupas, para sofrerem menos com o frio. E os homens enrolam-se em panos. E é essa a delicadeza sutil dessa gente: um modo de empurrar uns aos outros, de gritar uns com os outros, de proteger uns aos outros. Um modo de equivalência entre todos os seres, dentro de nossa miséria.
Fui andar para apreciar o sol. Era um quase nada. No Rio de Janeiro, nem chamaríamos isso de um dia ensolarado.
Mas, diante da falta, a gente aprende a reconhecer cada gesto de gentileza que o mundo nos oferta.
Eu andei pelo Ganges à procura de um lugar para sentar e ler meu livro, um lugar ao sol. Fui observando os seres, todos radiantes diante daquele solzinho que timidamente surgira. Passei pelo Harishchandra Ghat, o menor dos ghats de cremação. Ao lado, havia uma bandinha tocando, rodeada de pessoas e bichos alegres. E como tenho esse costume de seguir a música, sentei-me ali mesmo e abri meu livro.
Comecei a ler, até que, a certa altura, um senhorzinho pôs-se a espiar o que eu lia, metendo a cabeça entre mim e meu livro. Sorri para ele, que logo puxou assunto. Contou que trabalhava na cremação dos corpos e que aquela banda tocava para que as pessoas ficassem alegres, pois isso ajudaria o morto a ter uma boa passagem. Perguntou se eu queria que ele me explicasse sobre os rituais de cremação. Eu sabia que ele pediria dinheiro por isso, mas aí olhei para o livro, "Banaras - city of light", indicado pelo meu orientador indiano para que eu compreendesse a dinâmica da cidade, olhei de novo para o senhor, que propunha me ensinar sobre um dos rituais mais interessantes da mesma e escolhi ir com ele.
Ele explicou que no ghat maior, o Manikarnika, apenas hinduístas podiam ser cremados, enquanto ali eles aceitavam pessoas de todas as religiões. E que aquela banda e as bandeiras e a movimentação toda do dia era porque hoje seria a cremação de uma pessoa importante, alguém ligado à política. E eu realmente nunca vira aquele lugar assim, tão enfeitado de flores e cheio de pessoas bem vestidas. Subimos a uma construção e fiquei olhando tudo aquilo de cima. Ele ia me apontando as coisas:
- Aquele é o mahabrâman. Ele mora aqui e faz as orações para os mortos.
- Ah, ele é um brâman.
- Maha. Mahabrâman. É o último passo na roda da encarnação, antes de se elevar.
- Ah.
Aquele canto ali é onde as pessoas pobres são cremadas. Há pessoas que não têm dinheiro, então as viúvas me oferecem suas joias, eu cato as madeiras mais baratas e ajudo-as. A madeira mais cobiçada é o sândalo, mas ele é muito caro e vem de longe, de uma região próxima de Goa... E você sabe por que as mulheres não vêm aqui?
- Por quê?
- Existem dois motivos. O primeiro é que tradicionalmente as viúvas se atiravam ao fogo, quando o marido morria.
- E elas ainda fazem isso?
- Não, agora é ilegal. E o outro motivo é que elas choram muito. Mau carma para o morto.
Fiquei mais um tempo ao seu lado, assistindo à preparação do crematório vip. Mas fazia um solzinho. Na cidade, os seres agitavam-se por aí. No mundo não-vip, todos os seres são iguais em sua miséria. Este é o lugar onde bichos e homens se equivalem, em sua selvageria e delicadeza. Quando faz frio, há sempre um fogo que reúne todos: homens, vacas, cães e cabras. E como hoje fazia sol, estavam todos espalhados, apreciando o pouquinho de calor que nos era ofertado. As vacas são sagradas, mas apanham para sair do caminho. Os cachorros levam chutes, mas recebem carícias. As cabras vestem roupas, para sofrerem menos com o frio. E os homens enrolam-se em panos. E é essa a delicadeza sutil dessa gente: um modo de empurrar uns aos outros, de gritar uns com os outros, de proteger uns aos outros. Um modo de equivalência entre todos os seres, dentro de nossa miséria.
Fui andar para apreciar o sol. Era um quase nada. No Rio de Janeiro, nem chamaríamos isso de um dia ensolarado.
Mas, diante da falta, a gente aprende a reconhecer cada gesto de gentileza que o mundo nos oferta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário