Amanheceu.
Depois de um dia muito difícil, quisera eu dizer que hoje fez sol. Mas não. Amanheceu ainda mais nublado e até mais frio. E eu ainda estava no processo de reaprender a me mover no mundo dos homens. A confiar nele.
Forcei-me a sair de casa, porque hoje era o dia do Festival das Pipas, do qual ouvia falar há dias. Eis uma das coisas que acho mais bonitas por aqui: o céu repleto de pipas coloridas. Os meninos e os homens compenetrados, fazendo-as voar.
Pois hoje, que era o dia delas, desci ao rio já olhando pro céu, procurando-as. Mas não. Nunca houve tão poucas pipas no céu de Varanasi.
Apenas neblina...
Saí caminhando e passei por uma multidão que assistia a um espetáculo. Aproximei-me. Um homem cantava e manipulava macacos dançantes, presos por cordas. Não quis olhar ou me avolumar àquela gente. Não quis compactuar, naquele momento, com o mundo dos homens.
Pensei em andar até o último ghat, mas no caminho uma música, meio mantra, me parou. Imaginei que viesse de um templo e subi as escadarias para procurá-lo. Não havia templo ali, apenas aquele som hipnótico, vindo de algum lugar. Então voltei a descer as escadas e me sentei por ali, de frente pro rio, onde ainda podia ouvir a música. Via passarem os barcos, cheios de homens. Via os cachorros andarem pela margem, a procurar comida. Vi um pássaro azul pousado no barco. E depois uma águia, que passou voando. Lembrei a águia de ontem, embrulhada em um tecido. Perguntei-me como pôde alguém aprisioná-la e xinguei, em pensamento, aquele homem.
Depois fechei os olhos e deixei esvaziar.
Então algo aconteceu: fui acordada por uma súbita vontade de levantar e caminhar em sentido contrário, rumo ao ghat de cremação. Em meu caminho, encontrei um português conhecido, junto com um homem enorme, que não me era estranho. Eles mudaram seu rumo e vieram me acompanhando.
Começamos a conversar e esse homem falou sobre uma águia.
- Você é o homem da águia!
Era. Mostrou-me fotos e contou sua história: passara a noite no ghat das cremações – esse que sempre nos chama. Ao amanhecer, encontrou essa águia, mordida por um cachorro. Tinha que salvá-la. Embrulhou-a em um pano e foi arrecadar ajuda pelas ruas:
- Arrecadei mil rúpias. Apenas cem de estrangeiros. Quem me ajudou foram os indianos.
- E eu pensei que você fosse golpista! – confessei.
- Eu percebi. Mas não faz mal, porque, por sua causa, uma família indiana se aproximou e colaborou com cem rúpias. Foi a maior doação.
Depois ele contou que procurara três veterinários até, por fim, levar a águia a um homem de confiança em Sarnath.
- Eu estive em Sarnath, ontem!
- Está vendo? Poderíamos ter dividido o rickshaw.
E explicou que se mudaria para Sarnath, pois sua missão agora era cuidar da águia, até que ela se curasse:
- Então vou soltá-la, para que ela voe livre.
Aqui em Varanasi é assim. Apenas no Festival das Pipas, não há pipas no céu. Mas há a imagem de uma águia atacada por um cachorro. Uma águia salva por um homem. Uma águia livre.
Voltei a confiar no mundo dos homens.
Depois de um dia muito difícil, quisera eu dizer que hoje fez sol. Mas não. Amanheceu ainda mais nublado e até mais frio. E eu ainda estava no processo de reaprender a me mover no mundo dos homens. A confiar nele.
Forcei-me a sair de casa, porque hoje era o dia do Festival das Pipas, do qual ouvia falar há dias. Eis uma das coisas que acho mais bonitas por aqui: o céu repleto de pipas coloridas. Os meninos e os homens compenetrados, fazendo-as voar.
Pois hoje, que era o dia delas, desci ao rio já olhando pro céu, procurando-as. Mas não. Nunca houve tão poucas pipas no céu de Varanasi.
Apenas neblina...
Saí caminhando e passei por uma multidão que assistia a um espetáculo. Aproximei-me. Um homem cantava e manipulava macacos dançantes, presos por cordas. Não quis olhar ou me avolumar àquela gente. Não quis compactuar, naquele momento, com o mundo dos homens.
Pensei em andar até o último ghat, mas no caminho uma música, meio mantra, me parou. Imaginei que viesse de um templo e subi as escadarias para procurá-lo. Não havia templo ali, apenas aquele som hipnótico, vindo de algum lugar. Então voltei a descer as escadas e me sentei por ali, de frente pro rio, onde ainda podia ouvir a música. Via passarem os barcos, cheios de homens. Via os cachorros andarem pela margem, a procurar comida. Vi um pássaro azul pousado no barco. E depois uma águia, que passou voando. Lembrei a águia de ontem, embrulhada em um tecido. Perguntei-me como pôde alguém aprisioná-la e xinguei, em pensamento, aquele homem.
Depois fechei os olhos e deixei esvaziar.
Então algo aconteceu: fui acordada por uma súbita vontade de levantar e caminhar em sentido contrário, rumo ao ghat de cremação. Em meu caminho, encontrei um português conhecido, junto com um homem enorme, que não me era estranho. Eles mudaram seu rumo e vieram me acompanhando.
Começamos a conversar e esse homem falou sobre uma águia.
- Você é o homem da águia!
Era. Mostrou-me fotos e contou sua história: passara a noite no ghat das cremações – esse que sempre nos chama. Ao amanhecer, encontrou essa águia, mordida por um cachorro. Tinha que salvá-la. Embrulhou-a em um pano e foi arrecadar ajuda pelas ruas:
- Arrecadei mil rúpias. Apenas cem de estrangeiros. Quem me ajudou foram os indianos.
- E eu pensei que você fosse golpista! – confessei.
- Eu percebi. Mas não faz mal, porque, por sua causa, uma família indiana se aproximou e colaborou com cem rúpias. Foi a maior doação.
Depois ele contou que procurara três veterinários até, por fim, levar a águia a um homem de confiança em Sarnath.
- Eu estive em Sarnath, ontem!
- Está vendo? Poderíamos ter dividido o rickshaw.
E explicou que se mudaria para Sarnath, pois sua missão agora era cuidar da águia, até que ela se curasse:
- Então vou soltá-la, para que ela voe livre.
Aqui em Varanasi é assim. Apenas no Festival das Pipas, não há pipas no céu. Mas há a imagem de uma águia atacada por um cachorro. Uma águia salva por um homem. Uma águia livre.
Voltei a confiar no mundo dos homens.
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