Ele convidou-me para um chai e eu aceitei.
- Você pode me entrevistar pro seu doutorado - disse, sem saber que a entrevista começara no primeiro contato. E acabaria durando um dia inteiro, contando com caminhada, chai, mais caminhada, mais chai, parada para almoço e bate-papo no terraço do restaurante até escurecer.
A primeira vez que ele veio à Índia foi na década de 90. Assustou-se com Varanasi. Não pretendia voltar. Voltou cinco anos depois para espargir as cinzas de sua falecida mãe no Ganges. E não conseguiu ir embora. Ficou três anos aqui, estudando sânscrito e vivendo. Desde então, vem todos os anos por alguns meses.
Acontece com quase todos.
A gente sempre volta.
Está acontecendo comigo, também. Vim há pouco mais de um ano para passar cinco dias. Voltei agora para ficar três meses. E sigo colecionando referências para as próximas vezes, que provavelmente virão.
Há algo que nos segura neste lugar.
Nunca entramos duas vezes no mesmo rio, eu sei. Nada se repete e ao mesmo tempo se repete sempre, como é possível? O tempo daqui é outro.
Paramos na frente do Ganges.
- Está vendo ali? É onde nasce o sol, o leste. O que significa que ali é o norte e do outro lado é o sul. Não te parece estranho?
Desorientada que sou, tudo me parece estranho, só não entendi o quê.
- Percebe? O rio está correndo do sul para o norte.
- Ué, mas o Ganges não vem do norte? Como é possível?
Ele então desenhou no ar o rio com as mãos, explicando-me que ele fazia curvas.
- Estamos neste pedaço aqui - mostrou-me no mapa imaginário - entre as curvas do rio. Exatamente onde ele corre em sentido contrário.
Ficamos alguns minutos ali, olhando para o Ganges, abismados. Então ele quebrou o silêncio:
- Água é vibração. Nós somos água. Há algo que vibra diferente em Varanasi. Você sente?
Eu sinto.
Seguimos caminhando, como que cientes de um segredo precioso. Que não entendíamos bem, mas que estava ali, conosco. E vibrava.
Ao longo dos ghats, vinham mendigos abraçá-lo:
- Você voltou! Quando chegou?
- Cheguei ontem.
- E quanto tempo fica?
- Eu fico.
Vinham babas, barqueiros e crianças. Faziam-lhe festinhas. Ele fazia-lhes cócegas e chamava-nas Hanuman.
- É o deus-macaco. Eu as chamo assim, e elas ficam contentes, orgulhosas.
Depois me contou, sobre um menino que veio cumprimentá-lo:
- Eu o conheço desde que era pequenino. A cada ano, o encontro maior. Um dia vou chegar, e ele estará mais alto do que eu.
E era bonito estar ao seu lado e vê-lo chegar, sendo recebido por toda gente. Era bonito o carinho que lhe era devotado.
Há algo que vibra diferente nesta cidade.
Desconfio que se chamem: pessoas.
No terraço do restaurante, ele divagava:
- Eu estive aqui há meses. E me sinto agora como se continuasse estando. Como se não houvesse esse entre-tempo. E eu houvesse apenas dormido e acordado ainda aqui, neste terraço.
Mais tarde ele me acompanhou à minha casa. No caminho, encontramos Kjala, a menininha da sorte, que sempre me aparece. Ajoelhei-me para falar com ela e lhe entreguei uma fotografia sua, que havia mandado imprimir.
- O que é isso? - ela perguntou com sua vozinha doce.
- É você. É para você.
Ela ficou se olhando com surpresa. Agradeceu-me não com palavras, mas com uma alegria pura.
- Essa menina é muito doce - expliquei ao meu novo amigo, enquanto andávamos para casa.
- Você também é - respondeu-me, contando que acabara de ver a comunicação de duas crianças puras. Energia satva, explicara-me.
E eu fiquei a imaginar-me voltando a Varanasi. Um, dois, três anos seguidos. Reencontrando a menininha da sorte. Pensei que um dia ela seria maior do que eu. E como seria engraçado encontrá-la, grande e doce. E tornar-me, eu, cada vez mais pequena.
Aqui o rio corre em sentido contrário. Nada se repete e ao mesmo tempo se repete sempre.
Eu sei que vibra diferente.
Acho que são as pessoas.
Essas, que de tanto ser água, transbordam.
- Você pode me entrevistar pro seu doutorado - disse, sem saber que a entrevista começara no primeiro contato. E acabaria durando um dia inteiro, contando com caminhada, chai, mais caminhada, mais chai, parada para almoço e bate-papo no terraço do restaurante até escurecer.
A primeira vez que ele veio à Índia foi na década de 90. Assustou-se com Varanasi. Não pretendia voltar. Voltou cinco anos depois para espargir as cinzas de sua falecida mãe no Ganges. E não conseguiu ir embora. Ficou três anos aqui, estudando sânscrito e vivendo. Desde então, vem todos os anos por alguns meses.
Acontece com quase todos.
A gente sempre volta.
Está acontecendo comigo, também. Vim há pouco mais de um ano para passar cinco dias. Voltei agora para ficar três meses. E sigo colecionando referências para as próximas vezes, que provavelmente virão.
Há algo que nos segura neste lugar.
Nunca entramos duas vezes no mesmo rio, eu sei. Nada se repete e ao mesmo tempo se repete sempre, como é possível? O tempo daqui é outro.
Paramos na frente do Ganges.
- Está vendo ali? É onde nasce o sol, o leste. O que significa que ali é o norte e do outro lado é o sul. Não te parece estranho?
Desorientada que sou, tudo me parece estranho, só não entendi o quê.
- Percebe? O rio está correndo do sul para o norte.
- Ué, mas o Ganges não vem do norte? Como é possível?
Ele então desenhou no ar o rio com as mãos, explicando-me que ele fazia curvas.
- Estamos neste pedaço aqui - mostrou-me no mapa imaginário - entre as curvas do rio. Exatamente onde ele corre em sentido contrário.
Ficamos alguns minutos ali, olhando para o Ganges, abismados. Então ele quebrou o silêncio:
- Água é vibração. Nós somos água. Há algo que vibra diferente em Varanasi. Você sente?
Eu sinto.
Seguimos caminhando, como que cientes de um segredo precioso. Que não entendíamos bem, mas que estava ali, conosco. E vibrava.
Ao longo dos ghats, vinham mendigos abraçá-lo:
- Você voltou! Quando chegou?
- Cheguei ontem.
- E quanto tempo fica?
- Eu fico.
Vinham babas, barqueiros e crianças. Faziam-lhe festinhas. Ele fazia-lhes cócegas e chamava-nas Hanuman.
- É o deus-macaco. Eu as chamo assim, e elas ficam contentes, orgulhosas.
Depois me contou, sobre um menino que veio cumprimentá-lo:
- Eu o conheço desde que era pequenino. A cada ano, o encontro maior. Um dia vou chegar, e ele estará mais alto do que eu.
E era bonito estar ao seu lado e vê-lo chegar, sendo recebido por toda gente. Era bonito o carinho que lhe era devotado.
Há algo que vibra diferente nesta cidade.
Desconfio que se chamem: pessoas.
No terraço do restaurante, ele divagava:
- Eu estive aqui há meses. E me sinto agora como se continuasse estando. Como se não houvesse esse entre-tempo. E eu houvesse apenas dormido e acordado ainda aqui, neste terraço.
Mais tarde ele me acompanhou à minha casa. No caminho, encontramos Kjala, a menininha da sorte, que sempre me aparece. Ajoelhei-me para falar com ela e lhe entreguei uma fotografia sua, que havia mandado imprimir.
- O que é isso? - ela perguntou com sua vozinha doce.
- É você. É para você.
Ela ficou se olhando com surpresa. Agradeceu-me não com palavras, mas com uma alegria pura.
- Essa menina é muito doce - expliquei ao meu novo amigo, enquanto andávamos para casa.
- Você também é - respondeu-me, contando que acabara de ver a comunicação de duas crianças puras. Energia satva, explicara-me.
E eu fiquei a imaginar-me voltando a Varanasi. Um, dois, três anos seguidos. Reencontrando a menininha da sorte. Pensei que um dia ela seria maior do que eu. E como seria engraçado encontrá-la, grande e doce. E tornar-me, eu, cada vez mais pequena.
Aqui o rio corre em sentido contrário. Nada se repete e ao mesmo tempo se repete sempre.
Eu sei que vibra diferente.
Acho que são as pessoas.
Essas, que de tanto ser água, transbordam.
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