domingo, 29 de janeiro de 2012

Um Mágico


Eis que um dia me falaram desse médico: um homeopata mágico. Mágico? É disso que preciso. Lá fui eu marcar consulta. E, quando me perguntavam para que, exatamente, eu ia ao médico, eu respondia que, se ele era mágico, não precisava de uma razão específica, eu apenas lhe pediria que resolvesse todos os meus problemas. Porque na medicina ocidental eu não acredito muito, mas em mágica eu acredito. Cegamente assim.

De preferência que ele tivesse uma grande cartola e tirasse um coelho de dentro. E, se ele me pedisse para levar para casa e cuidar de um coelho branco, então todas as minhas questões seriam magicamente resolvidas. Talvez eu só precisasse de um ser menor e mais frágil para amar incondicionalmente. As outras pessoas que se consultaram com ele saíram grávidas. Pra mim um coelho bastava.

Liguei para sua secretária e consegui consulta para três meses depois, apenas. No dia esperado, agenda em mãos, toquei a campainha. Ela me abriu a porta.

- Oi, marquei consulta com doutor fulano de tal.

- Não. - ela me respondeu secamente.

Essa mulher é louca - pensei - E agora, que devo fazer numa circunstância dessas?

- Marquei sim. - respondi sabiamente.

- Não. Qual seu nome?

- Lian.

- Sua consulta era de manhã.

- Minha consulta é às 16h.

- Eu até te liguei semana passada para confirmar!

- Não interessa, essa consulta está marcada para 16h há três meses!

- Olha, eu vou te mostrar na minha agenda.

- Não, eu vou te mostrar na minha agenda!

E, toda cheia de razão, aponto-lhe minha agenda, na qual está escrito: "10h". Levanto a cabeça, desconsolada, e lhe digo:

- Desculpa, moça. Eu estou louca.

Acho que ela sentiu pena ou medo da minha loucura, pois logo tornou-se dócil:

- Está tudo bem, isso acontece.

Marcamos outra data. Desta vez só para o ano que vem, que já virou o ano de hoje.

Volto de férias um dia antes, resmungando por ter de voltar à cidade maravilhosa, que nessa época nunca me parece tão maravilhosa assim. Pego um ônibus e um táxi, para chegar ao seu novo consultório, no Recreio. Fico hipnotizada por uma escultura em sua mesa: uma mulher sendo puxada de um lado pela figura da morte e de outro por um médico. É meio assustadora a escultura. Procuro o consolo infantil do mágico com cartola, mas não o encontro.

Ele pergunta por que o procurei. Esperança é uma resposta válida? Se eu lhe disser que tenho esperança no mundo e nos homens e que quero que tudo fique bem... será que isso ele pode fazer por mim? Em vez disso, começo a enumerar os problemas de saúde: a rinite alérgica, o cansaço. Ele quer saber quem eu sou. Faz pergunta atrás de pergunta e deve estar confuso com minhas respostas nada objetivas.

- Você é autoritária?

- Olha, o teste do Adorno que a mulherzinha aplicou na aula falava que eu era a pessoa menos autoritária da turma. Mas as pessoas me entendem mal, sabe? Elas pensam que eu sou autoritária porque sou muito seca e direta. Por outro lado, não sou nada autoritária em termos de valores, sou muito relativista...

- Então quer dizer que você manda, mas não suporta ser mandada.

- Hum... é....quer dizer...

- Quais são seus medos?

Como lhe falar da solidão que não tem a ver com falta de companhia, mas com o abismo da incomunicabilidade? Como explicar os abismos?

Fico em silêncio. Ele tenta facilitar:

- Vou te dizer uma lista de medos, aí você me diz se tem algum: Medo de altura? Medo do escuro? Medo de bichos? ...

- Não, não, não e não. É outro o meu medo de escuridão.

Acabo me passando por uma mulher valente, apenas porque meus medos não seguem listas. Mas gosto de espaços abertos, de lugares amplos, de ar fresco, tento acrescentar.

No fim da consulta, ele me receita um papelzinho: argentum titanium. E pede que eu não o aproxime de aparelhos celulares e outras coisas com eletricidade.

- Por quê?

- Porque ele tem energia.

Alguns dias depois, me percebo sem crises alérgicas e enxaquecas. Bendito médico mágico sem cartola, mas com energia!

Então de repente uma tarde de inverno em pleno verão carioca. Porque chove e o céu é de um escuro nublado. E eu percebo que não fui curada da melancolia da tarde sem luz. Tire isso de mim! - eu quero pedir ao médico. Será que eu me esquecera de lhe contar que o que eu mais quero é luz? Que não há nessa tarde fria. E, porque a chuva me prende em casa, sem parques, mares ou bicicleta, eu começo a chover por dentro também. E eu tento conter as lágrimas e me distraio com um livro de Lygia Fagundes Telles na China. Ela do outro lado do mundo, em plena década de sessenta. E eu hoje em casa. E, porque há movimento na cozinha, eu me lembro de repente de alguém que nunca lembro, em uma tarde assim, na cozinha de uma casa em uma cidade qualquer, muitos anos atrás:

- Deixa que eu lavo a louça - eu lhe disse - enquanto você vai arrumar as malas.

Ele me entregou a esponja com um beijo no rosto e disse, como que despercebido:

- Obrigado, linda. Eu te amo.

Pela primeira vez ele falava em amor. E quando meses depois o meu acabou, eu justifiquei contando sobre essa frase que ele nunca me dissera. Ele respondeu:

- Disse sim. Aquela tarde, na cozinha, você deve ter ouvido alguma coisa.

Eu fingira que não, porque cismei que um "eu te amo" dado assim, entre louças e malas, não valia.

Será que algum médico há de curar minha melancolia de chuva? E meu medo do amor, essa escuridão?


6 comentários:

Clarice disse...

O teu texto escorre pelos olhos. Direto.Gosto demais de ler tudo o que você escreve.
Para escuridão com jeito de pergunta e amor pronto para ser entregue só tem um remédio: deixe a janela aberta.
Abraço.

Mr. G disse...

vc ta se tornando minha autora preferida!
saudades, bjs

alicexavier@bol.com.br disse...

Ai Lian... como suspirei hoje lendo seu texto! Lindo demais, me fez pensar em tanta coisa...
Que sua vida seja só de luz! Bjo!!
Alice

Anônimo disse...

Mais um lindo texto Lian.
Você verbalizou dois sentimentos que, às vezes, nos faz sofrer e que não nos damos conta da presença deles em nossas vidas: "solidão que não tem a ver com falta de companhia, mas com o abismo da incomunicabilidade" e a escuridão que é o medo de amar.
P A R A B É N S !!!
Pucci

Unknown disse...

A busca por um médico de almas, das dores, do destino...
Por tudo isso que eu me abrigo nas palavras! Refúgio e destino e um par de linhas!..
Belo texto!
\o/

Solange Maia disse...

sensacionallllllllllllllll, maravilhoso, incrível....

que texto bom !!!!!!!
estou arrepiada !!!!

que bom os ventos virtuais terem me trazido por aqui ! valeu o domingo !!! vierei fã.

beijo