terça-feira, 11 de março de 2014

A voz que grita



Eu fui uma criança de poucas palavras e muita cambalhota. Estava sempre pendurada em alguma coisa: em cima das árvores, nos muros, na varanda. A grande façanha foi conseguir pular de cima do prédio (sim, de cima do prédio) para a janela do apartamento logo abaixo, junto com a Sandinha, amiga igualmente destemida.

Lembro de uma infância silenciosa, e talvez não seja bem assim. Minha tia, Stella, costuma dizer que gostava de me escutar, e que eu contava várias histórias engraçadas. Acho que houve mesmo um momento em que eu era a engraçada da família, mas me é uma lembrança tão distante, que é como se não fosse eu. Eu me lembro é do silêncio. E de muitas palavras, mas nunca minhas. Sempre tive apreço às palavras, desde que, cedo, aprendi a ler e folheava afoita o volume de poemas e rimas do Mundo da Criança. Até hoje suas imagens e versos povoam minha memória.

E desde cedo minhas aulas preferidas eram as de redação. Era quando eu dizia o que quase nunca dizia com a voz.

O fato é que só depois de crescida comecei a falar, falar mesmo. Em alguns momentos, passei a falar até bastante, até mais do que deveria. Em outros, como boa taurina, ruminava e guardava tudo ali, no não-dito. Mas a idade faz dessas coisas e, de repente, me vi dizendo coisas das quais só me dava conta no milésimo de segundo seguinte: "Ei, você está furando fila!"

Falei. Antigamente sofria mais.

Curioso é que, quando passei a falar, me dei conta de que não tinha tanto a dizer. Não de mim. E que tinha mais é que escutar do mundo, que tem tantas e tantas histórias que devemos ouvir. E me veio esse senso de urgência de um mundo que precisa ser escutado, de histórias que precisam ser contadas. E percebi que, quando Galeano ou Rubem Braga contam causos pequenos de pessoas pequenas, eles falam na verdade de nós: esse ser universal e humano que se equilibra entre o amor e o poder.

Sexta e sábado passados participei do ato dos garis por direitos. Quis me somar para ampliar a voz daqueles que há muito não a têm. Gritei muito, porque queria que a cidade nos escutasse. Mas também escutei, escutei demais. Trabalhadores que se aproximavam para contar espontaneamente sobre suas vidas e suas condições de trabalho:

- Sou gari há vinte anos. Antigamente as condições eram melhores, mas foi decaindo cada vez mais. Hoje eu tenho vergonha de entrar no mercado, porque não consigo comprar o que preciso. O arroz e o feijão ainda consigo, mas uma carne, uma coisinha a mais, já não consigo. Como vou levar as crianças ao mercado?

- Nosso gerente não se importa com nossa humanidade, só com as tarefas cumpridas. No outro dia um companheiro nosso morreu em trabalho, esmagado por um caminhão. Ele mandou retirar o corpo, imediatamente colocou alguém para substituí-lo e ordenou que voltássemos a trabalhar. Mas como eu posso voltar a trabalhar, se meu companheiro acabou de morrer?

- Antigamente os garis eram ignorantes, às vezes trocavam sua força de trabalho por uma garrafa de cachaça. Mas hoje não. Hoje somos estudados, temos formação. - vários fizeram questão de me dizer.

E houve o que profetizou:

- Preste atenção no que eu digo: Daqui a alguns anos você contará a seus filhos sobre 2014. Este é um ano histórico, este momento será para sempre lembrado.

Escutar o que eles têm a dizer, mesmo pelo que não dizem. Escutar o lixo todo amontoado pelas ruas durante sua greve. O lixo que contava da importância da profissão, mas não só. O lixo que contava da indignação, mas não só. O lixo que conta de nós.

Confesso que achei bonito aquele lixo catártico espalhado pelas ruas. Porque fomos obrigados a vê-lo: isso que somos. Porque estamos acostumados a que nos tirem da frente, para que sigamos brincando que ele não existe. Mas lá estava a montanha de lixo. Nós a produzimos. E, mesmo que seja Carnaval, é possível que uma sociedade produza tanto, tanto lixo assim e saia impune?

Como é bonito quando o mundo diz o que o mundo tem a dizer.

E é preciso ter voz para não adoecer: foi o que a vida me mostrou, de forma alegórica. Foi logo depois que saí do ato dos garis. Gritei muito e perdi a voz. Necessitava de muita energia para soprar cada palavra, até que me calei. E, junto com a voz, perdi a energia vital. Passei dois dias de cama. Ou melhor, de sofá. Na segunda-feira os compromissos já chamavam, mas permaneciam fracos, a voz e o corpo. De vez em quando eu usava uma energia a mais, para fazer festinha a algum gari que porventura eu encontrasse na rua.

Passei a vê-los com alegria, enquanto varriam as calçadas.

Mas confesso que continuo desejando o lixo, com suas montanhas imensas a se impor à nossa vista. Sinto que não escutamos o suficiente sobre quem somos e para onde vamos. Sobre nossos excessos e nossos descaminhos. Sobre nosso papel e nosso impacto no mundo. Mundo que não tem voz adoece, e o lixo ainda tem muito o que gritar.

Que saibamos escutar.

Amém.



2 comentários:

Clarice disse...

Nossa! Muita coisa nessa montanha de palavras! hihihi!

Fui uma criança em camadas. Tempo de me destacar dizendo poesias em público, tempo de me vestir de celofane e girar e tempo de ficar encolhida. Também criei um mundo de palavras escritas. E cantei. O que cantei! Minha casa era um bangalô que as pereiras superavam e eu ia até a pontinha catar as mais rechonchudas peras. E soltava a voz. Torci pés e braços e pernas. Nunca pulei de prédio. Ave!
Talvez as crianças venham com um desenho e algumas puxam o traço para onde querem. Algumas se identificam com outras. Viva nós, que temos ouvido e viva você que traz essas histórias tão bem contadas.
Abraço.

Leilane disse...

Amém.