sábado, 23 de novembro de 2013

O caminho de volta (ou "O caminho sem volta")



Peguei o caminho de volta para casa. Não sem antes fazer alguns desvios, que é meu jeito de caminhar por linhas tortas. Admito que, depois de um tempo na Índia, voltei um pouco anestesiada para me emocionar ou me surpreender com o mundo ocidental. E foi justo em Burano, uma pequenina ilha da Itália, que ele voltou, o encantamento.

Era um lugar de casinhas simples de cores vivas, com flores nas janelas e vassouras nas portas. Poderia ser apenas um cenário, aquele apanhado de casas coloridas, não fossem as roupas estendidas diante das fachadas. Balançavam ao vento, as roupas, como bandeiras. Podia-se ler o lema nas entrelinhas: "Aqui vive gente".

Peguei-me perguntando onde estariam os varais no meu mundo de hoje. E automaticamente já sabia a resposta: nas áreas de serviço dos condomínios, escondidos da vista.

E, assim, subitamente soube traduzir a condição em que vivo: um vazio de varais.

É uma falta de me sentir gente, gente plena, que vive com gente, que deixa a porta aberta e que entra na casa dos outros sem bater. É a falta de me sentir gente incontida, que não cabe entre paredes e se expande para fora dos limites das fachadas. O vazio de varais é, antes de tudo, um vazio de vida. Ou melhor, um vazio de vida misturada. 

Não foi sempre assim. Cresci em um prédio de apartamentos pequeninos, de dois quartos. Não tínhamos quintal, mas era como se tivéssemos, porque brincávamos no térreo, em uma área que chamávamos de verdinho. Naquela época, os pais de todas as minhas amigas eram socialistas e, de certa forma, era assim que vivíamos: nada era apenas meu ou seu. Todas as crianças eram meio filhas de todos. A mãe da Carol cortava as minhas unhas quando decidia que elas estavam grandes demais. A mãe da Camila me levou ao hospital quando machuquei a cabeça roubando amoras. Minha mãe preparava mingau para todas as crianças. 

Depois cresci e me mudei para um apartamento maior, onde eu e minha irmã levávamos bronca dos síndicos, porque éramos selvagens. O que quer dizer que não havíamos aprendido a separar tudo, a minha vida da sua, o meu espaço do seu. O que quer dizer que não nos contínhamos entre as paredes do apartamento e ainda queríamos descer para o térreo e assustar o porteiro com bonecas e gravadores e subir nos muros e escorregar nos corrimões e espalhar a areia dos canteiros. 

Hoje vivo em uma vila em que os moradores regulam de quem é cada calçada. E meus pais vivem em um condomínio onde são proibidos muros entre as casas, mas a vizinha presta queixa porque Miki, nosso gato, às vezes entra em sua casa, vejam só.

Eu aprendi a me conter e aceitar o vazio de varais. Mas secretamente invejo o Miki, que desconhece limites, enquanto o observo correr pelos quintais vizinhos.

Há, em Laranjeiras, um edifício que parece ser como meu prédio de infância. Lá as pessoas se amam e se odeiam e voz alta e penduram roupas e toalhas nas janelas. Não à toa, ele foi apelidado de Favelão. Poderia ser um nome pejorativo. Mas acontece que me agradam as favelas, exatamente no ponto em que lá vive gente incontida e misturada, que se expande pelos varais e que te convida a entrar em suas casas, e você rola no chão com as crianças. Em nenhum outro lugar do Rio de Janeiro já fui recebida assim, senão caminhando por uma favela.

Então, quase sem querer, escorrego de volta dos varais de Burano ao meu prédio de infância e de volta às cidades que visitei na Índia, em que toda gente era incontidamente humana, de portas abertas e roupas penduradas. E não sei mais se agora estou mesmo voltando ou se a ida ao oriente foi, ela sim, o retorno.

O fato é que eu gosto dos índios e dos indianos. Gosto dos que se sentam de cócoras e dos que comem com as mãos. Dos que andam descalços. Dos que não adotaram plenamente os instrumentos que nos separam do mundo e uns dos outros. Dos que ignoram paredes.

No fundo, é aos varais que retorno sempre.

(texto de 19 de novembro de 2013)

Um comentário:

Leilane disse...

Sinto essa falta de varais também... espero que o mundo faça logo a gente morar perto de novo para que possamos ter o nosso quintal lotado deles.