sábado, 23 de novembro de 2013

A pureza



Eu me preparava para a Índia antes de saber que viria. Embora de alguma forma eu sempre soubesse, como também sei desde sempre que esta não será minha última visita.

Mas eu me preparava antes dos planos e passagens. Talvez por eu ter horror à atitude de pessoas que viajam procurando no espaço do outro o seu próprio padrão. E reclamam da higiene, da cultura local, do desconforto, da cerveja quente. Talvez por eu ter mania de querer ser durona, talvez por eu ser uma taurina teimosa. Provavelmente por tudo isso e por tantos outros fatores que me são desconhecidos, eu sempre soube que a Índia era para mim. E eu sempre fui ao encontro dela.

Por isso, todas as vezes que alguém me relatava sua experiência, eu me perguntava: "Serei capaz de encara-la com abertura e gratidão?" Ouvi historias de ratos e de baratas e de mosquitos infinitos. Historias de pobreza, de miséria absoluta, de pessoas tentando te enganar o tempo inteiro. E li Shantaram, um livro que conta a história de um australiano que fugiu da prisão, foi viver em Mumbai e acabou em uma favela da cidade. Ele descrevia o constante cheiro de esgoto, as doenças, a violência, as imagens sempre fortes. Eu virava as páginas me perguntando: "Eu agüento isso? E isso?"

Então passei a praticar o que chamei de "exercício Índia". Funcionava assim: todas as vezes que algo me incomodava, eu me dizia: "pensa na Índia". E me concentrava até que o incômodo passasse. Quando levava picadas de mosquito, por exemplo, e ficava enlouquecida tentando expulsa-los e coçando as feridas. Eu pensava na Índia e deixava que eles me picassem, deixava que as feridas coçassem - "está tudo bem, são apenas sensações, eu posso te-las". - até que elas perdessem a importância.

Certa vez, quando fazia uma longa viagem de ônibus pelo Brasil, o banheiro do veiculo entupiu. As janelas, vedadas, não abriam. E durante o trajeto fomos todos fazendo caretas, usando tecidos para tampar o nariz, reclamando e reclamando. De repente pensei no Shantaram e me perguntei: "Se eu estivesse na Índia, a minha reação seria esta?" Imediatamente passou o mal- estar.

É claro que não era isso que eu esperava do país. Mas bondade, beleza, raiz. Por isso precisava estar pronta para o mais difícil. Se eu me preparasse para o bruto, eu sabia, todo o suave fluiria.

E suave foi quase tudo, até então. As muitas pessoas que me cercavam tentando me vender ou me guiar ou me perder. E me fizeram ver que a lente com que você enxerga é o mundo, e que eu podia vê-los com humor - e com amor. Os bandos de crianças sujas que te puxam pelo braço pedindo moedinhas. Mas que - com ou sem moedas - riem, engatam longas conversas e nos ensinam jogos infantis. As ruas com cocôs de gente, de vacas, de cachorros, mas que ainda - diferente do que eu imaginava - tinham mais chão do que
cocô. Portanto, com um pouquinho de atenção, tornavam-se fáceis e naturais os caminhos. A comida, que era menos apimentada do que eu temia. O metrô, em que as pessoas se espremem mais do que no Rio ou em São Paulo, mas encaram com simplicidade e calma. As buzinadas constantes no ouvido - essa foi a parte mais difícil -, para isso eu me preparara desde a China. A água - contra a qual tanto me alertaram - que nunca me fez mal ( e vivam meus anticorpos de quem teve a infância livre ).

Delhi. Agra. Jodhpur. Jaisalmer. Pushkar. Jaipur. Suave Índia. Suave, muito suave.

Então cheguei a Varanasi. E encontrei todo o choque de mundo que me havia sido prometido. Por aqui se calcula cada passo e ainda assim se escorrega em cocô de algum bicho. Tentar andar pelas margens do Ganges é mesmo o desafio que disseram que seria, especialmente nesta época do ano, após as monções, em que não sobra faixa de areia. " Quando chegar lá, você vai sentir se deve entrar" - me disse uma amiga, quase me aconselhando que não. Mas logo que vi o Ganges, eu soube que sim. É isso que me responde o mundo sempre que pergunto: que eu devo mergulhar.

Passei dois dias namorando o rio e observando seus rituais. As cerimônias realizadas, as pessoas que se lavavam dos pecados da vida, as que lavavam suas roupas, as coisas duvidosas que boiavam, os pássaros que bicavam as coisas duvidosas, os excrementos de diversas espécies depositados em suas margens. Os incensos, as velas, as flores.

Estar em Varanasi é entrar na máquina do tempo. E, antes que se perceba, estar completamente envolvido por um século muito distante, de becos estreitos, em que, se a vaca resolve virar a cabeça, você já não consegue passar - passei por isso.

Varanasi me atingiu, em meus próprios becos, como nenhuma outra cidade até então. Por suas ruelas cheguei aos meus poços escuros. Com aceitação. Mais: com beleza.

E foi às margens do Ganges em que me envolvi em uma das cenas mais fortes que já presenciei: as cerimônias de cremação. Corpos e corpos que chegam envolvidos por tecidos vibrantes e são desenrolados até ficar apenas um lençol branco, pelo qual se distinguem todas as formas do cadáver. Então cada um é depositado sobre tochas de madeira e recebem mais lenha por cima. Passam o dia sendo queimados, entre multidões de pessoas, que conversam, andam, se agitam. Chegam vacas para comer uma graminha, passa um bode, dois cachorros começam a brigar. Aparece um barco cheio de jovens cantando canções Hare Krishna. E os corpos não cessam de chegar.

Está tudo ali: vida e morte. E é isso que me agrada mais: o inextricavelmente mundano do sagrado. E vice-versa. Ou melhor: sinônimos. Nunca me agradou a idéia de verticalidade. Iluminação, para mim, é uma maneira de se estar no mundo, não acima. A vida é muito preciosa. A terra é muito preciosa. Os bichos são belos com seus alimentos e excrementos. Só o que é mundano pode ser profundamente sagrado. E o que é sagrado não segrega: esta é a certeza que tenho.

Então hoje me levantei antes do sol, pronta para mergulhar no Ganges: este rio que leva os restos e lava os pecados. Tirei os chinelos e pisei naquele barro indefinido, até submergir na água escura.

É preciso que eu me suje de mundo. Só então sairei pura.


(texto de 26 de outubro de 2013)

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