terça-feira, 3 de setembro de 2013

Tudo que muda



Sabe esse nosso país lindo, colorido e plural?

Pois é. Passo por racismo desde que me entendo por gente. Não há um dia da minha vida em que alguém não me aponte na rua, gritando: "Arigatô! Sayonara!", rindo e fazendo piadinhas. É estranho viver em um lugar em que as pessoas se sentem no direito de rir da sua cara. 

Comigo pode. Porque aqui se pensa que só existe racismo contra negros. Se é que existe. É o que dizem. Ou melhor. É o que não dizem.

Outro dia, em Niterói, cruzei com um preto cheio de crianças pretinhas, saltitantes. Voltavam de uma pescaria. Passei sorrindo, porque eram lindos e alegres. O pai (acho que era) me gritou algo assim, como sempre me gritam. As crianças saíram rindo. Me deu pena de vê-las reproduzindo preconceito e me dá mais pena de ver que um povo não se enxerga no outro. 

Estou cansada de ouvir que sou uma "oriental bonita", o que equivale a dizer "oriental, mas bonita". O que não me soa como elogio. 

E coisas piores.

Quando eu era criança doía mais. 

Mas talvez exatamente por isso, hoje qualquer tipo de racismo ou segregação dói em mim. Talvez por isso eu me sinta meio negra, meio índia, meio cigana, cubana, boliviana, moradora de rua. Talvez por isso eu sinta tanto o ser dos outros. Ou talvez por isso eu saiba com tanta clareza que "outros" não existe. É sempre comigo.

Bem. Até aí eu pensava saber tudo sobre racismo. Mas então uma pessoa conhecida postou em sua rede social algo sobre na China se comer cachorro e que horror que desumanidade os cachorros são fofos etc. Eu nunca teria a intenção de dizer que isso é certo, mas achei que faltava um olhar relativista aí. Se você é vegetariano é uma coisa. Se você acha certo comer vaca, acho complicado querer julgar uma cultura a partir da sua. E, apesar de todo mundo me dizer que não compensa me envolver com o que as pessoas pensam, eu creio que não faz sentido querer viver em uma bolha. Então eu me intrometo. É fato que só entro nesse tipo de debate na internet quando considero que o interlocutor vale a pena. Neste caso valia. Era uma companheira de luta, do bem, indígena. Estávamos no campo dos debates necessários.

Acontece que, quando fui comentar, vi que um Fulano havia comentado logo acima: "ESPERAR O QUE DESSE POVO NOGENTO (sic)..." etc etc etc. 

Então descobri que eu não sabia na pele tudo sobre racismo. Estava aprendendo. O ódio.

Entrei na discussão, ignorando-o. Mas ele permaneceu escrevendo discursos de ódio, vociferando contra as pessoas que vinham defender meu ponto de vista e agredindo-os. Escrevia sempre em letras maiúsculas, o que já considero invasivo e uma necessidade absurda de se impor. 

Nesse dia chorei. Chorei porque fora o mesmo dia do massacre no Complexo da Maré. Chorei por desesperança. Chorei pelo ódio que, pela primeira vez na vida, fora raivosamente assim me dirigido ("ESSE POVO NOGENTO... AINDA TEM CORAJEM DE VIR AQUI SE ESPRESSAR"). Chorei pela maneira covarde com que seu discurso atingia outras pessoas. E por haver quem o apoiasse.

A uma das pessoas que ele atacava, que aqui chamarei de João (pois quero que ele tenha um nome), Fulano dizia que ele não sabia nem escrever e que deveria ir plantar mudas, que era tudo que sabia fazer. 

E talvez tenha sido isso o que me machucou mais e por mais tempo. A crítica de uma pessoa simples contra outra pessoa simples. O ódio de um pobre contra outro pobre, que se revelava na escrita "errada". E mais do que isso. A atitude de humilhar alguém pelo seu ofício: "VAI PLANTAR MUDAS, QUE É TUDO QUE VOCE SABE FAZER!"

Via-se que Fulano era um oprimido que carregava todo o discurso do opressor. O discurso da destruição e do ódio. Sem saber que "plantar mudas" é o trabalho mais nobre que pode existir.

A gente precisa de quem plante. A gente precisa de vida, de nutrição. A gente precisa de quem cultive amor e de quem saiba cavucar a terra. O mundo quer é isso: gente que plante mudas, gente que use a mão.

Eu comecei o texto em mim. 

E me expandi em João.

Polinizemos a paz.




8 comentários:

www.pedradosertao.blogspot.com disse...

O pior preconceito é aquele que se reproduz pela linguagem, com ideias e pensamentos que só contribuem para a dor. Vejo isso constantemente. Penso que a cultura e o acesso aos bens culturais poderiam ajeitar as coisas, mas isso leva tempo demais...enquanto isso, vemos casos assim! Bom, só não quero perder a fé de que um dia mudaremos isso. Força...

Abraço do Pedra

www.pedradosertao.blogspot.com.br

Julia Lemos disse...

Nossa, Lian! Você tocou num dos pontos mais tristes do mundo. A reprodução do discurso do opressor pelo próprio oprimido é uma das coisas que de fato mais me deixam sem esperança. Precisamos chorar sim, porque não tem outro jeito pra lavarmos a dor. E depois levantar e seguir em frente de novo. Porque precisamos combater tudo isso plantando sementes ali e acolá. Como suas bolhas, sementes que são!

Clarice disse...

Lian, nossa, esse é um assunto sempre tão sensível e delicado!
Eu entendo a sensibilidade, o susto, a dor, a decepção, mas também entendo a tentativa de conexão. Você conseguiria entender que chamar você de oriental linda está apenas formalizando um elogio, porque você é linda e é oriental, é especial e não como depreciação? Você seria linda mesmo se não fosse oriental. Não sendo assim o fato de me chamarem de morena ou italiana linda(eu era há muito tempo,rs)deveria me causar dor também.
Quando descobriam minha origem italiana vinham lá as palavras com pronuncia errada, quase sempre, mas eu achava graça, acredite.
Não há como suavizar as experiências de infância, mas gostaria de acreditar que todas as vezes que abri um sorriso e disse alguma palavra como as que você ouviu, foi sempre, juro, para tentar me conectar, nunca para estigmatizar. Assim como se houvesse necessidade de mostrar que havia um interesse em saber alguma coisa da língua, dos costumes, tão especiais e tão diferentes de outros, mas nem por isso menores ou esquisitos, muito pelo contrário, sempre admirados e vistos com respeito. E sempre essa confusão entre chineses, japoneses, coreanos, não é? Aí é falta de cultura mesmo, não de preconceito.
Abraço e desculpe o discurso.

Lian Tai disse...

Oi Clarice,
Quanto aos elogios, você está certa, na maioria das vezes a pessoa está tentando se conectar. Mas é engraçado como às vezes ela, sem querer, revela certos preconceitos arraigados. Já ouvi várias vezes versões mais explicadas também, como "Normalmente os orientais são feios, mas você é bonita". Você não imagina o número de vezes que já ouvi isso. E, como falei no texto, também já ouvi coisas piores.
Quanto a não saber diferenciar se sou chinesa, japonesa ou coreana, não me ofendo nem um pouco com isso e nem penso que alguém deva ter a obrigação de saber.
Na verdade o que magoa não é nada disso. É as pessoas te apontarem na rua e fazerem piadinhas. Isso é agressão. Hoje sei lidar muito bem com isso. Mas imagina uma criança que cresce sendo apontada na rua por ser diferente das outras. A ignorância está na naturalidade com que isso acontece sem que se saiba que isso também é racismo.
Não é o mesmo de chegar alguém com curiosidade, perguntar de onde sou e sobre minha cultura. Nesses casos, tenho o maior prazer em conversar. A abordagem com mais ou menos respeito faz toda a diferença, afinal, não somos bichos em zoológicos.
E sempre gosto de dialogar com você! =)

Maria Cristina disse...

Nossa Lian, doeu esse texto. Devia ter mostrado a língua pras crianças, hunf kkk brincadeira!

PS: recebi a cartinha, fiquei muuuito feliz com as novidades!

Anônimo disse...

Lian,

Desculpe se estiver sendo invasivo, nunca me manifestei aqui, nunca achei que fosse o caso.

Mas neste ultimo post eu fiquei realmente condoído, é como se eu tivesse escrito, porque também sou descendente de chineses, de pais nascidos e criados na China. Já passei por tudo isso que você descreveu, cansei de ser abordado sobre cachorros, macacos, pingente de animais, pés amarrados e etc. Como se eu tivesse a obrigação de justificar ou explicar essas coisas todas.

Quando criança, não sabia o que era preconceito, quando vim a saber, assim como os outros me recusava a aceitar. Fato é que sempre senti um pesar muito grande, com o tipo de humor das pessoas que aqui vivem, um senso de humor chucro, pastelão, do tipo que ri quando um amigo tropeça e cai.

Nunca entendi, mas as pessoas acham que pelo fato de sermos chineses, elas tem o direito de nos abordar na rua sem nos conhecer, de brincar com a nossa cultura, com a nossa origem ou simplesmente com a nossa cara mesmo. E esta aí uma grande demonstração do preconceito que existe, mesmo que nunca tenham nos visto antes, só pelo fato de sermos orientais, é como se todos nos conhecessem, temos até nomes universais/genéricos – "japa, china ou ching ling" tanto faz.

E quando nos pedem pra falar chinês? Hoje em dia prefiro mentir, digo que não sei falar, que esqueci, é só começar a falar que todos começam a rir, como se estivesse contanto uma piada, não é engraçado, é só uma língua diferente, como várias outras, para comunicar, dialogar, e não para entreter.

Não chegamos a nos conhecer, mas entramos na UFG na mesma época, sempre escutava "piadas" do tipo, olha la a sua irmã, você não vai falar com ela? E eu pensava, qual é a graça? Por que deveria falar com ela? o que é que nos liga?

Hoje em dia, procuro não me chatear muito, não preciso “salvar” o mundo, se eu conseguir salvar a minha filha, já terá valido a pena. E ela que tem apenas 3 anos e já escuta, mas que mesticinha linda...

Fábio C.

Lian Tai disse...

Obrigada pelo comentário, Fábio. É interessante compartilhar esse tipo de experiência, porque quem passa por isso na pele sabe o que é. Hoje em dia tenho o maior prazer em conversar sobre a cultura e a língua chinesas, quando alguém se aproxima com curiosidade. Mas desrespeito é outra coisa. Rir da sua cara é coisa absolutamente diferente. E ouço todo mundo dizer "Imagina, não existe racismo contra orientais!" Por isso acho importante falar no assunto.

Leilane disse...

Eu lembro de te encontrar nesse dia do debate no facebook e eu tambem estava cansada do mundo. Sentamos pra comer, voce chorou e eu também e ficamos por um tempo exaustas e melancólicas. Isso tem acontecido tanto, e esse ano está tão pesado. Você está certíssima, tem que divulgar sim. Lembre-se de te contar do preconceito que a Rose passou quando nova, coisas que ela ouvia nos negros da escola que ela estudava. Fiquei triste, nao consigo entender esse ódio, essa necessidade de desvalorizar um irmao. Mas saber que você existe tão perto, e que fala a minha lingua, me fortalece. A gente vai conseguir sim encarar toda essa hipocrisia de frente.