quinta-feira, 2 de maio de 2013

Sangrar


Sangro.

Assim, neste exato momento. Deste sangue que desce por cinco dias, todo mês.

E, enquanto torno isto público, imagino alguns leitores pensando: "Você poderia ter me poupado desse detalhe!" O mesmo comentário que sempre fazem quando alguém, por exemplo, resolve anunciar que vai "fazer xixi".

A sociedade asséptica, que renega a própria carne.

Ironicamente, eu tinha uma colega, na turma de teatro, que costumava me dizer: "Lian, eu não te imagino fazendo cocô. Eu consigo imaginar todo mundo fazendo cocô, menos você, porque você é tão delicada!" Outro amigo completou dizendo que eu fazia bolhas de sabão. Rimos todos da piada.

Logo eu, que sangro tanto.

Mas, se hoje falo em sangue, é porque tenho me deixado sangrar por todos os caminhos. Aprendi a aprender com ele. Especialmente a fluidez.

Passei uma semana convivendo com índios da tribo Yawalapiti, do Xingu. No contato inicial, meu primeiro espanto: a língua deles me soava exatamente como as línguas chinesas. Eu via neles meus parentes, como se seus corpos fossem transparentes e de repente toda a verdade transparecesse. Então somos um só povo. Eu já sabia. Soube de novo.

O mesmo sangue humano. A mesma seiva terrena.

E fui vivendo lá, tomando banho no rio, dançando, brincando, comendo milho assado na fogueira e ralando mandioca pra fazer beiju. Também comecei a aprender sobre seus costumes, entre eles, a sangria. Funciona assim: eles têm um objeto, uma arranhadeira, feita de cabaça com dentes do peixe cachorra, se não me engano. Com ele, arranham o corpo inteiro ou partes específicas. Ao sangue que sai, misturam extratos de raízes diversas, cada qual com uma finalidade. Os garotos, quando entram na puberdade, passam por um período de reclusão, que pode durar até cinco anos, para se tornarem lutadores. Neste período, podem se arranhar mais de uma vez ao dia, utilizando raízes que os fortificam. Uma delas, brava, arde e dá febre durante dias. O índio que ousa enfrentá-la sai um grande lutador.

Mas, mais do que passar medicamentos efetivos por entrarem diretamente na corrente sanguínea, a prática da sangria tem também um sentido espiritual. A purificação do sangue que sai. A proteção do mundo que entra. O atravessamento, mais uma vez.

Então eu me recordo de uma noite de lua cheia, em dezembro do ano passado. Eu fora recebida no Pantanal por um casal: Marcelo, indígena da tribo Kadiwéu, casado com Mirjam, uma bela suíça que me explicava sobre a terra e as forças da natureza. Era ela que, em torno de uma fogueira, me falava sobre o privilégio de ser mulher e poder sangrar todo mês. Ela chegou a mencionar que os homens, que não tinham o mesmo dote, acabavam tendo que provocar a sangria, mas eu, que àquela época não conhecia a prática, não entendi. Foi isto que ela me explicou: que mensalmente nosso corpo se abria. Com essa abertura, também a outra, espiritual, ocorria. E também isto: que nós, mulheres, mesmo quando não estamos grávidas, estamos. Somos sempre essa potência de terra. Daí eu intuo que, mesmo sem filhos, somos sempre mães.

E acho bonito poder pensar e dizer isso logo agora, que é mês das mães. E, por acaso, também é o dia, o dia exato da minha mãe. E também é meu mês. Aliás, eu também nasci no dia das mães. E por aí vão os milhares de fios que me tecem à essência da maternidade.

A gente gesta. A gente gera. A gente sangra.

Parte do mesmo ato.

Todo do mesmo parto.


9 comentários:

Gengibre Multimídia disse...

Lian, passei por aqui para brincar com algumas bolhinhas... Adorei! Obrigado. Beijos, Munir.

Dani Barbosa disse...

Já um tempinho que não visitava as suas bolinhas! Adorei!Como sempre seus textos são profundos e belos!
Beijos!
Dani

Lian Tai disse...

Eba, Munir e Dani! Adorei a visita de vocês por aqui!

Julia Lemos disse...

Lindo!!! Lembrei de um poema da Elisa Lucinda:

"Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
Cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
Às vezes parece erva, parece hera
Cuidado com essa gente que gera
Essa gente que se metamorfoseia
Metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades".

Lian, eu queria ter feito "a passagem" com você nessa convivência com a tribo Yawalapiti mas, como nào deu, já fico feliz com a transformação que seu texto gera em mim. Eu costumo pensar seus textos como obra de arte. Mas hoje acho que são mesmo Sangria: sangria em você e sangria em quem lê.

J.C. disse...

Parabéns, você consegue passar uma sensibilidade incrível pela escrita.

Anônimo disse...

Obrigado, moça, pelo aviso! O ridículo é inerente ao ser. E é exatamente aí que a arte faz o seu papel. Mas, logicamente, refiro-me a verdadeira arte.

alicexavier@bol.com.br disse...

Juro que to chorando... que texto lindo, que supreendente, que sincero, que revelador!!!! Obrigada, Lian.
Ah... também lembrei desse poema, Julia. rsrs
Bjo no coração, mulher de maio!

Mim, Delcio disse...

Muito bom Lian! Realmente somos todos parte do mesmo povo, basta termos um lembrete de vez em quando. Foi muito bom poder compartilhar desse momento com vcs! bjao!

Liliane Garcia da Silva disse...

Que lindo Lian, te encontrei no face e resolvi ler sua postagem... sou aquela menina que foi compartilhar com vocês as experiências do voluntariado na Aldeia Multiétnica e a experiência com a arranhadura, e depois foi embora! :)

Seu texto fico fantástico: profundo, sincero e belo como vc ! Gratidão por compartilhar !