terça-feira, 12 de março de 2013

Quando fui mãe



Todos os meus amigos conhecem essa história. Muitos a acompanharam naquela época. Ou leram aqui no blog, ou me ouviram falar. E por que trago-a de volta, agora, que tanto tempo já se passou? É que as histórias precisam ser contadas. E recontadas. E lembradas. É o que tenho me dito nos dias de caos. Dias em que parece que sempre tem alguma coisa fora do lugar. As intolerâncias. As desumanidades (ou seriam superumanidades?). Há o pasmo com que vejo o dia de hoje. O desenrolar das notícias. E há o pasmo maior, de saber que cada dia da história é também um dia de hoje. 

Esses dias parei para assistir ao documentário "Timor Leste - a história que o mundo não viu", produzido e dirigido pela amiga Lucélia Santos. Terminei o filme ainda em estado de choque, como já me aconteceu tantas vezes, ao ter contato com determinadas realidades. Na minha época de vestibular, a questão timorense estava em alta. Aprendíamos na escola. Mas, como na escola, aprendemos sempre a ter distanciamento da vida. E, quando o mundo me joga aquela vida na cara, e que eu vejo pessoas reais, com suas dores, seus amores, sua história... pessoas matando e morrendo... eu sempre tenho esse primeiro choque. E penso: as pessoas precisam ver, as pessoas precisam saber. E penso novamente que as histórias precisam ser contadas, pois são sempre atuais. E somos sempre nós, as personagens.

Mas, por ver guerras e intolerâncias e covardias, é que quis falar sobre Amor: essa história que precisa ser recontada sempre, para que lembremos quem somos. 

E eu quis contar do dia em que fui mãe. 

Eu estava de férias em Goiânia, e minha irmã, que é veterinária e trabalhava com animais silvestres, trouxe para casa uma bebê tamanduá. Eles tinham esse projeto de rastreamento e preservação de tamanduás-bandeira, espécie em risco de extinção. Como tantos outros, essa tinha ficado órfã, após a mãe ser atropelada. Quando os filhotes ainda eram pequenos, precisavam de atenção integral, daí um dos integrantes do projeto levá-los para casa. Ao ganharem um pouco mais de autonomia, voltavam para o local do projeto, para, mais tarde, serem soltos na natureza.

Eu achei um acontecimento ter um tamanduá em casa, mas minha irmã me informou que já havia levado vários. Ela a chamava de tamanduinha e pediu que eu ajudasse a escolher um nome para a bebê.

- Eu gosto de Tamanduinha.

- Mas, Lian, todas que trago são tamanduinhas. Tem que ter um nome diferente.

Eu, que tinha acabado de ler “O amor nos tempos do cólera”, só conseguia pensar em “Fermina Daza”. Mas achei que não combinasse esse nome com uma tamanduinha, que pra mim já era Tamanduinha mesmo.

- Mafalda – minha irmã decidiu – eu gosto de Mafalda.

Mas pra mim ficou Tamanduinha pra sempre.

Então minha irmã contou sua história: A bebê já havia passado por outras duas casas diferentes, antes de chegar às nossas mãos. Era uma bebê problemática. Tinha medo de seres humanos. Não aceitava a mamadeira por nada. Quando forçada a se alimentar, acabava vomitando. Não podia continuar assim, senão acabaria morrendo.

Lembrei da minha infância e dos momentos de profundo desamparo. Tentei imaginar-me no lugar dela, que perdera a mãe e agora era passada de casa em casa, em meio a seres estranhos. E quis confortá-la. Quis protegê-la. E, mais que isso, quis muito que ela vivesse. Que ela crescesse, tivesse filhos. Em nome dela, em nome da espécie, em nome da vida.

E aí nasceu uma mãe em mim.

Eu a levava nos braços de um lugar a outro. Ela se agarrava em meus ombros e, quando eu tentava soltá-la, cravava as unhas em mim. Eu tomava banho com ela ao lado, chorando a falta de colo, no banheiro. Eu e minha irmã nos uníamos para dar a mamadeira. Uma segurava as patas, a outra a alimentava à força. Mas ela não mais vomitava. Outra vitória. Quando a ensinei a beber leite na tigela, foi o dia de glória. Esperei ansiosamente a chegada da minha irmã para contar a novidade.

Cada passo era uma festa. Era vida aprendendo a viver. Quando eu a soltava no chão, ela desesperava-se, novamente órfã. Então passei a levá-la ao quintal todos os dias. Eu sentava-me na grama, embaixo de uma árvore, com ela ao colo. Aos poucos, ela passou a sentir confiança: eu estava sempre lá. Descia do meu colo, cutucava a terra um pouquinho, voltava correndo. No dia seguinte, ousava um passeio mais longo, antes de subir correndo em minhas pernas.

Minha irmã não a deixava dormir comigo. Era preciso que ela não se apegasse tanto aos seres humanos, pois o medo a protegeria, quando ela estivesse solta na natureza. Mas todas as manhãs minha irmã levava a Tamanduinha à minha cama, enquanto ela cuidava de outras coisas. Eu, de férias, dormia até tarde com seu focinho sobre meu pescoço. Posteriormente, na volta ao Rio, eu acordaria com frio no pescoço durante um mês inteiro.

Eu conversava com Tamanduinha e lhe dizia sempre que esperava que ela vivesse, que ela fosse forte, que ela tivesse filhos. E desejava mais ainda que o mundo fosse bom. É que, quando se é mãe, a gente descobre que é também mãe do mundo. E de repente somos responsáveis pelo futuro da Vida.

Então eu aprendi várias coisas sobre o amor. Sobre a doação. Sobre o sentido da vida residindo na própria vida. E sobre como tamanduá nos dá uma real dimensão do que é ser mãe. Enquanto criamos gatos e cachorros para nos fazer companhia e, de certa forma, nos servir, criamos tamanduás para o mundo. Só queremos deles que eles vivam. Assim é, ou deveria ser, com nossos filhos. Não são nossos.

Com Tamanduinha aprendi esse amor muito puro. E depois voltei ao Rio, com uma lição e uma responsabilidade imensa pelo mundo.

Tamanduinha ficou mais um mês em casa, com minha irmã. Depois foi solta na natureza. E depois soubemos que ela havia morrido, afogada.

Alguns anos se passaram e essa lição permanece viva. Eu sempre me lembro dela, quando o mundo parece caos. E quando eu vejo o ódio, a guerra, a miséria e a intolerância, eu lembro do amor. Ele em sua forma pura, despertado assim, tão inocentemente por uma bebê tamanduá. E penso que as histórias devem ser contadas. E recontadas. E lembradas sempre.

Para nunca esquecermos que somos pais e mães do mundo.


11 comentários:

WBLog disse...

Viva a vida. Viva Lian.

Apontador disse...

Uma solução simples e perfeita para o mundo, mas difícil, muito difícil. Muito significativa a história!!!

Lian Tai disse...

É. Não sei se o mundo tem solução, mas cada vez mais penso que pelo menos temos que contar nossas histórias. E lembrar quem somos e do que somos capazes.

Julia Lemos disse...

Lian, você com suas histórias de fato sempre me lembra o quanto o amor é necessário e possível.

alicexavier@bol.com.br disse...

que história linda e que experiência fantástica. Experimentar o amor, na sua forma mais pura, é realmente sentir-se viva e capaz de grandes feitos por um mundo cada vez mais carente de nós! Um beijo e obrigada pelo texto!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Clarice disse...

Sou fã de carteirinha de documentários do tipo. Mas coro para o controle remoto quando se anuncia uma caça(nem que seja do predador natural)ou morte por causas naturais, de bichinhos resgatados ou não. Juro que entendo que não deva haver interferência para preservar o natural, mas não vejo nada de natural assistir um bichinho perdido da mãe ser caçado enquanto alguém filma.
Com meus gatos tenho tido duras lições de perdas e embora cada partida doe de um modo indescritível, meu cérebro vai aceitando melhor a delicadeza do tempo que passa e muda o nosso mundinho, que como você diz, de vez em quando parece ainda mais desarrumado.
Que privilégio essa tua experiência com Tamaduinha.
Por acaso você tem visto aqueles episódios de amizades insólitas entre animais diferentes?
Noooosa! Escrevi demais.
Abraço

Lian Tai disse...

Clarice,
Falando em amizades insólitas entre animais diferentes, ontem mesmo minha irmã me contou uma história linda, sobre uma capivara chamada Tobias, resgatada de um incêndio por uma família. Acho que vou postar sobre isso em breve. Essas histórias sempre me emocionam.
Um abraço!

Unknown disse...

É... Às vezes a sujeira do mundo pesa, mesmo, sob nossos ombros.
Só um amor, puro como esse, pra nos dar força pra seguir leve, amando e tentando mudar as coisas (fica aqui minha referência e homenagem ao post da Julia Lemos sobre o Belquior! Mto bom!)

Ana Carolina Ribeiro disse...

Lian, eu estudei com a sua irmã na Ufg, mas ano é por isso que estou comentando o post, eu participei de um resgate recentemente e também tive a imensa felicidade de cuidar de um filhote de tamanduá, a minha tamanduinha chamava- se Maria, mais conhecida como mariazinha.
Ela ficou 8meses conosco, nesse período a sensação de maternidade transformou meu mundo, era nosso bebe que achamos quase sem vida na BR e que a vi crescer, mas mais que isso cresci junto com ela... Teve a sheila (um filhote de tatu galinha) e o Andy um recaem nascido de bugiu que não resistiu... Ele morreu e morri um pouco bom ele naquele dia...
Foram muitas vidas na minha vida durante todo o trabalho, e quis compartilhar isso com vc aqui, a incrível sensação de ser mãe de algum Silvestre.
Linda sua história me fez reviver a minha.

Lian Tai disse...

Ana Carolina,
É mesmo um privilégio muito grande ser mãe de um silvestre e ser transformada por ele. Obrigada por compartilhar sua história! =)