quarta-feira, 28 de março de 2012

O ponto onde as ruas mudam de nome


Estou aprendendo a andar em Niterói. Quer dizer, aprender a andar em Niterói é exagero. Estou aprendendo a andar da Estação das Barcas ao campus onde tenho aulas, no Ingá. Tento dar cada vez menos voltas e perguntar menos vezes o caminho. Quem conhece meu senso de direção sabe que não é tarefa fácil. Às vezes preciso prestar atenção às ruas e placas, eu que ando sempre em outro mundo.

Outro dia parei em um cruzamento, a ler os nomes das ruas. Eram duas ruas que se cruzavam, mas, a partir daquele cruzamento, cada uma tinha um nome diferente. Sorri diante da minha constatação, mesmo que aquilo nada significasse: "Então é aqui! O ponto onde todas as ruas mudam de nome!" Era como se fosse um portal, uma senha, um acesso mágico, sabe-se-lá para onde.

Quando crianças, eu e minha irmã saíamos pelas ruas brincando de, quer dizer, brincando não. Sendo detetives. Com uma lupa em mãos íamos analisando as calçadas, as árvores, os edifícios. E de repente nos detínhamos em um detalhe qualquer e gritávamos, triunfantes: "Olha! Uma pista!" Mesmo sem saber o que buscávamos. E foi assim, com o mesmo triunfo, que anos e anos depois eu encontrei aquela pista: O ponto onde todas as ruas mudam de nome.

Voltando um pouquinho no tempo...

Eu tive um professor, no curso de teatro, chamado Lourival Prudêncio, mais conhecido como Lolô. Nunca esqueço sua primeira aula, em que todos meus colegas chegaram cedinho e puseram-se a falar sobre o novo professor: que ele não permitia atrasos, que era assustador, que a aula era pesada, etc. E eu me lembro de recebê-lo com um misto de excitação e de medo: aquela figura tão ímpar, baixa, morena e muito forte, que ditava suas regras com seu jeito imponente. E eu me lembro tão bem do respeito que, já no primeiro dia, eu passei a lhe devotar, não pela imponência, mas pelo entendimento que se fez em mim sobre a arte de atuar, logo naquela primeira aula.

Lolô nos pedia que ficássemos concentrados em determinada posição, incômoda, mas que não desistíssemos: "Vai dar vontade de coçar, vai dar vontade de sentar, vai dar vontade de mexer. Vai doer. Mas permaneça na posição." E explicava: "O corpo do cidadão procura conforto. Se dá fome, ele come. Se dá cansaço, ele descansa. Se a posição está incômoda, ele se acomoda. O ator é o contrário. O espaço do ator é o espaço do desconforto." E dava vontade de coçar. Dava vontade de sentar. Dava vontade de mexer. Doía. E eu permanecia. Em seguida, quando íamos fazer alguma cena, algo tinha acontecido. Porque a disciplina, o desconforto, a concentração tiravam de mim alguma coisa que eu não conhecia. E que era minha. Esse revirar, desenterrar as camadas.

Arte. Lolô me deu esse entendimento. E, junto com suas aulas, em que eu tanto aprendia, tinha também aquela presença bruta, em que fui descobrindo uma doçura e uma humanidade que pulsavam junto com os tambores, trilha sonora em nossas atividades. Dava vontade de ter um Lolô de bolso. Como um bonequinho exótico para colocar na estante e contemplar. E, de vez em quando, tirar da prateleira e dizer: "Me ensina, Mestre?" Um guia.

Um dia descobri que trouxe, sim, Lolô no bolso. Não só para me guiar na arte, mas também para me guiar na vida. Sempre que eu me cansava, sempre que eu tinha vontade de parar, me vinha à cabeça sua voz: "O espaço do ator é o espaço do desconforto." Ele falava de teatro. Mas eu descobri em minha atriz uma pessoa melhor. E levei a artista para a cidadã. Isso me fez compreender as crises como necessárias. Aceitar os vazios. Suportar as dores. Apaziguar-me diante do não-entendimento. Porque o caminho conhecido só te leva a outro caminho conhecido. E o desconhecido é sempre desconfortável. Eis a chave: o ponto onde todas as ruas mudam de nome.

Por isso, quando o caminho é áspero ou íngreme, eu me digo: continua. Quando me dou conta do cansaço ou da dor, eu repito: continua. Quando tenho medo, permaneço: continua, continua. Levo isso para as pequenas coisas: as formiguinhas e insetos que andam sobre a minha pele, fazendo cócegas, e não expulso mais do corpo. E para as grandes coisas: os abismos emocionais. As portas que passei a abrir e que me levam a estradas desconhecidas. Por essa lição sou profundamente grata ao Mestre, Lolô, meu guia de bolso. Pelo aprendizado do desconforto.

Porque é preciso que as ruas mudem de nome, para que a gente se perca e descubra caminhos inexplorados. As nossas matas fechadas.


6 comentários:

alicexavier@bol.com.br disse...

(...) Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar d encher a alma.

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

Clarice disse...

Foi uma viagem esse texto. Mais do que mudar de nome as ruas foram feitas para andar nelas pelo avesso. Sortudo quem teve um Lolô para ficar na memória e servir de guia.
beijo e bom final de semana.

Melissa Gebrim disse...

Saudades também, Lian! Lindo seu texto, estou precisando disso, de reacreditar em estrelas cadentes...de sonhar e persistir! Não estou gostando muito do mundo que vejo. Saudades de conversar com você sobre tudo e sobre nada! rsrs Bjo.

Unknown disse...

Em Brasília as ruas não tem nome. São números.
Mas minha postura sempre foi a mesma. E que bacana que o seu caminho de atriz te levou à humanidade e à preocupação cidadã!

Luis Gustavo Brito Dias disse...

- perfeito!
nada como desvelar os instantes com a nossa alma.
nada como fazer tudo valer a pena, sem hesitar com o desconforto, com os limites.

tudo que somos é criação.

W L disse...

As ruas, como nós, sempre buscam outros nomes. Magnífico seu texto.