domingo, 21 de agosto de 2011

Austrália - última parte: CORAÇÃO


(O retorno)

Certa vez, por ocasião do fim de uma (im)possibilidade amorosa, uma amiga desabafou: "Ainda bem que terminou da melhor maneira possível. Mas meu medo não era por você, era por ele. Você, eu sei que sai ilesa."

É uma amiga que me conhece a ponto de saber minhas margens. As impossibilidades que eu não aceito, ela prevê. E eu entendo bem o que ela quis dizer. Ela sabe que eu me jogo dos precipícios e sobrevivo.

Mas ilesa, ilesa, eu nunca saí de nada.

Nasci para pedra, madeira, argila. Matéria-prima do mundo para que ele me fira e conforme. Eu tenho essas marcas - tantas - dos lugares por que passei, das pessoas que por mim passaram. São elas que dão meu desenho.

E, porque não quero enrijecer em uma mesma imutável figura, é preciso que eu me permita esculpir. E, porque são as horas mais suaves que causam os sulcos mais profundos, é preciso que eu me deixe amar. E, porque são as fontes que me dão polidez, é preciso que eu possa fluir. E, porque são os tombos que me aparam as arestas, é preciso que eu me deixe lançar.

Eu me lancei nos dias, nos sabores, nos caminhos, nos encontros. Eu quis experimentar o possível, porque gosto de banheiros limpos, mas gosto mais de estar aberta para a vida. E de pessoas que também estão. Eu quis o desconhecido, porque ele transforma o que o conforto mantém. Eu me lancei. Agora já não sei.

Já não reconheço os contornos, que são outros. Faltam pedaços e essa falta ainda dói. Dor de saudade e de possibilidades infinitas. Mas é essa ferida que desvela as outras camadas: uma nova escultura dentro da matéria-EU.

Sobrevivente, sim. Ilesa, nunca.

Eu me recuso a sair de casa e voltar a mesma.

8 comentários:

Ana disse...

lindo o texto... É sempre bom pararmos para sentir o nosso mundo.

Unknown disse...

O texto da sua postagem é forte e seco, mas ao mesmo tempo é um pedacinho de todos nós. Somos isso mesmo que você definiu: pedra, madeira, argila. Somos um pedaço de tudo isso que está à nossa volta e um dia tornaremos a esse mesmo pó. Creio que teimamos em caminhar cá nesta Terra porque temos que crescer enquanto pessoa e contribuir para deixar a casa melhorzinha do que a encontramos. Ileso? Não, ninguém sai ileso de nada, nem de si próprio.

Adorei seu texto, voltarei sempre para ler postagens iguais. Um grande abraço para você.

alicexavier@bol.com.br disse...

Que lindo Lian. Adorei isso de se recusar de sair de casa e voltar a mesma. É verdade, isso não pode acontecer. Que bom que a viagem foi tão enriquecedora, em vários sentidos. Que bom viver quando se sabe viver, aproveitando a oportunidade do aprender, do conhecer, do reconhecer e do se redescobrir.
Beijo com todo meu carinhooo!
Alice

Dani Barbosa disse...

Há tempos não aparecia por aqui e quando venho mais uma vez me deparo com um texto de tamanha sensibilidade que me estremece, me faz lembrar das vezes em que quis ficar na pacata rotina do hoje quando novos desafios e experiências insistiam em me chamar!
Continue se reinventando a cada dia e a cada dia nos mostrando o seu mais recente EU!

Beijos

Bergilde disse...

Já provei esse turbilhão de emoções que você conta aqui e como você sobreviví para encontrar algo melhor e que já me esperava.
Abraços,começando a acompanhar os registros daqui.

Lucí disse...

Gostei!

AS pessoas geralmente tem essa imagem de mim, que sou uma pessoa forte, apesar de nao me julgar assim. Ótima definição, sair ilesa, o certo é que a gente sempre aprende com os erros e se adapta!

;)

Eliane F.C.Lima disse...

Querida,
Com a minha idade, posso dizer que a gente nunca sai ilesa de nada nessa vida. Passados anos, diante de uma situação parecida, a gente treme e vê que não tinha esquecido "o esquecido".
Escrever, então, é a melhor maneira de lamber as feridas da alma, como fazem os bichos. Já concluí até que, fazendo isso, eles estão apenas fazendo carinho em si, consolo de solitários. Sábios esses bichos...
Crio personagens no blogue Conto-gotas, que riem e sofrem em meu lugar, e em http://poemavida.blogspot.com trago à tona dores que sei que não esqueci (as outras, as pretensamente esquecidas, afloram sem que eu perceba ou controle e estão também lá).
Um abraçoforte,
Eliane F.C.Lima

tavaresjorgeluiz.blogspot.com disse...

Cada ferida pode ser interpretada como um troféu ou como um degrau rumo ao amadurecer,qualquer uma delas te impede de esquecer,portanto viva.Se possível...Feliz.Byjotan.