sexta-feira, 12 de abril de 2013

A palavra



As histórias precisam ser contadas. E recontadas. E lembradas. Postei isso há pouco tempo aqui no blog. E desde então continuo me alimentando delas, digerindo-as, regurgitando-as. Sinto-me impotente diante das margens do mundo. A palavra não basta. Ponte ilusória. Mas, ainda, é o que tenho.

Ando me alimentando de açaí e Galeano. Juntos, normalmente. Uma colherada e algumas linhas a mais. De vez em quando rio. De vez em quando choro. Normalmente fico engasgada, o choque silenciado na garganta. O ser humano é capaz do maior ato de beleza e também de horror - constato pela milésima vez, com o pasmo original. Leio sobre as vidas das pessoas em um contexto específico - as ditaduras militares na América Latina. O contexto é específico. As pessoas não. Humani nil a me alienum puto - Nada do que é humano me é estranho. - já disse Terêncio, há mais de dois mil anos. As histórias que outros homens e mulheres viveram. Tudo pode ser eu, o amor e o ódio. É preciso que saibamos. Somos isto: monstruosos e divinos.

Pois eu vinha andando pela Rua do Catete e, na minha frente, passava um homem que cheirava a lixo. Alheio a todas as outras pessoas, ele entrou na lanchonete da esquina, procurou algo nas lixeiras e já estava saindo, quando o abordei:

- Oi. Você quer que eu compre um lanche pra você?

Ele não me respondeu. Ele não me olhou. Mas parou.

Entramos juntos. Apontei para a vitrine de salgados.

- Qual você quer?

Ele permaneceu cabisbaixo. Depois de um tempo, fez um gesto vago.

- Um destes, por favor - pedi para o moço do balcão. Você quer um refresco? Tem de maracujá e de caju, qual você prefere?

Desta vez, nenhum gesto.

Escolhi um qualquer e lho entreguei.

Ele pegou o lanche e saiu, enquanto eu pagava. Saí da lanchonete e ele estava encostado na parede, comendo. Dei tchau.

Ele não respondeu. Ele não sorriu.

Mas me olhou, desta vez.

E seu olhar era tão grave, que me deu medo.

Um homem que não tinha sorriso e não tinha palavra. Tão diferente do mendigo que fica na frente das Lojas Americanas e que me disse no outro dia: "Olha, você é muito maneira!" Tão diferente da senhorinha em frente ao Banco do Brasil, que me pediu uma moeda, depois me pediu um lanche e, depois de todos seus pedidos atendidos, pediu que eu lhe comprasse uma caixa de remédios para anemia, o que recusei.

Tão diferente dos que pedem e agradecem. E provavelmente tão igual a tantos outros.

Eu tive medo do seu olhar de bicho. Da sua condição de bicho.

Mas tenho medo, sobretudo, de não conseguir enxergar as histórias que precisam ser contadas. Desses seres humanos que, de tantas e tão necessárias histórias, já não têm palavras para dizê-las.


18 comentários:

Leilane disse...

Fiquei arrepiada com essa história. Ainda mais ao tentar visualizar o olhar do homem. Doeu.

Anônimo disse...

Você é uma pessoa de muita sensibilidade e percepção. Quanto ao texto... sem palavras.

Anônimo disse...

Cada qual reagi à sua maneira. Muitos não conseguem ir além da margem, atravessar a ponte, enxergar além da palavra.

Lian Tai disse...

Leilane, o olhar desse homem era arrepiante. Isso de faltar um elo de conexão, de comunicação humana... Uma coisa muito dura.

Apontador disse...

É essa a sociedade que criamos há séculos, com a ilusão do sujeito, uma impossibilidade de comunicação tremenda, um niilismo absurdo. Esse mendigo me lembrou muito de mim. Muito obrigado!!! Precisamos urgentemente desse choque de realidade para reverter esse caminhos que tomamos...

Apontador disse...

Você é um ser de sensibilidade impressionante! Fico sempre muito feliz de vir aqui! Mesmo quando me relembro da realidade terrível do fim do humanismo. Muito Obrigado!

Lian Tai disse...

Giordano,
Adorei isso: "Esse mendigo me lembrou muito de mim." De certa forma estamos todos assim, separados pelo abismo da incomunicabilidade, né?

Anônimo disse...

O grande problema da humanidade são os "ismos." E os únicos "ismos" capazes de ligar são os da arte.

Julia Lemos disse...

Puxa, tinha escrito um comentário, mas vejo que não foi ao ar! Deve ser porque escrevi pelo celular. Esse texto me emocionou muito. Você a cada dia me surpreendendo mais com a sua capacidade de empatia para além do máximo, com a sua capacidade rara nos dias de hoje de ultrapassar os limites - tanto os seus quanto o dos outros. Este homem era mesmo um bicho e nada mais precisava ser dito. E o que mais vale de humanidade a ele é não só o pão, mas simplesmente o seu gesto. O pão é consequencia do reconhecimento, um reconhecimento que demanda amor ao ser humano. Coisa rara, digo mais uma vez. E que tanto me inspira e me aproxima a você.

Unknown disse...

Sentir... sair da inércia... ultrapassar os limites... apenas SER humano.

Tão simples, mas tão difícil hj em dia.

Parabéns pelo ato e pelo texto!

Unknown disse...

Apesar de conhecer o blog há pouco tempo, agora não mais espero só pelas publicações dos belos textos da Lian Thai, mas, também, pelos ótimos comentários que sempre surgem após. Giordano e Júlia sempre enriquecendo e trazendo mais inspiração e reflexão.

Fico feliz de ter descoberto o blog e vcs, todos!

Duda Mical disse...

Arrepiada... esse distanciamento nos atravessa ou dilacera a humanidade.

Lian Tai disse...

Verdade, Gabriel. Os comentários das pessoas enriquecem e aprofundam os debates. =)

Daniel Gnattali disse...

Se não puderem ser ditas, que sejam ilustradas. :)

Mas elas precisam ser. Bom que você exista pra elas e pra nós.

Vestígios da Essência disse...

Adorei!

Clarice disse...

Pois é, menina. Nem sempre a comida é ponte para a palavra, mas tenho certeza de que de algum lugar surgiu uma ponte.
Abraço.

Unknown disse...

http://www.youtube.com/watch?v=Azig6wodtmI

Artesanatos by Angela Santos disse...

Lian! Prazer em conhece-la,amei o seu jeito de expor a vida,suas postagens são penetrantes espero mesmo sendo mais velha ,aprender coisas novas lendo seu blog,bjs!