Parecia fazer séculos que eu não caminhava pelos ghats. Levei os textos na mochila, para parar e estudar em frente ao rio. Meu plano original era me sentar no meu cantinho de meditação, que fica lá no alto, onde tenho vista para tudo, mas ninguém me incomoda. No meio do caminho, pensei: "Qual o mal de ser incomodada?" Passara tantos dias tranquilos no Nepal, que até me fazia falta. Essa invasão.
Então me sentei na escadaria do templo mesmo, aquele enorme. Era o lugar mais movimentado nesta Varanasi que, a esta altura do ano, já está quase vazia. Foram-se os turistas e fica a vida cotidiana da cidade, dos templos e das vacas. Passei uns minutos contemplando as pessoas e depois tirei um artigo de dentro da mochila e pus-me a ler.
Um homem aproximou-se para me oferecer cartões postais. Quando levantei a cabeça para recusar, ele surpreendeu-se:
- Ah, mas eu já te conheço! Você está aqui há muito tempo! - e foi-se embora dizendo que gostava do meu colar.
Depois um outro homem veio conversar comigo. Perguntou se eu falava hindi. Expliquei que tentava aprender.
- Thora thora - ele me ensinou a responder.
Falamos, em sua língua, banalidades. Oi, como vai, meu nome é Lian. Ele perguntou se sou casada. Uma coisa que aprendi, por aqui, é sempre dizer que sim. Ele contou que também é casado e que também não tem filhos. E que é dono da vendinha ali ao lado do templo. Contou-me que aquele era o templo de Shiva e perguntou se eu gostava de Varanasi.
- Muito - respondi - "Sacred city".
Eu sempre digo isso e vejo como o rosto dos moradores se ilumina. É como se eu compartilhasse de seu segredo precioso. Ele sorriu e balançou a cabeça ainda mais. Eu, me espelhando, balançava a cabeça também, de um lado pro outro.
- Onde você está hospedada?
- No Hare Rama Guest House.
- Muito bom! Muito bom!
Achei estranha a animação dele com minha hospedagem, que é boa, sim, e faz com que eu me sinta em casa. Mas que não parece justificar tamanha empolgação. Então entendi: não se tratava de onde eu morava.
Ele começou a cantar:
- Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare...
Juntei minha voz à dele e cantamos os dois:
- Krishna Krishna, Krishna Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare...
Depois ele foi embora sorridente. Eu acabei de estudar meu texto e fui embora também. Passei pelas crianças que estão sempre a jogar - como é mesmo o nome desse jogo? - com uma bola e um taco, bem na minha porta. Fui colocando a mão na frente e pedindo que esperassem:
- Are, are! Are hihim!
Elas riam e brincavam que iam atirar a bola em mim. E eu entrei em casa com um sorriso bobo de quem estava tendo um dia simples e bom. De quem decidira se deixar incomodar. Sem ter percebido, até então, o sentido de in-comodar: dar cômodo dentro, deixar entrar.
Não costuma ser confortável.
Mas foi.
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