Acordar em um lugar assim. Sair para comer de manhã e passar pelas casinhas antigas e pelas pessoas que são como você em uma vida que você teria. "Você se parece com a minha tia", me disse uma menininha ontem, no jantar. Muitos nepaleses me dizem que eu pareço um deles, e eu agradeço sempre, porque deve ser uma espécie de benção, ser daqui. E no café da manhã chegam pães, batatas e um pote de arroz doce com pedacinhos de coco. É como festa junina, só não tem fogueira. Mas tem o calor de uma manhã suave depois de uma noite dura. Aí eu olho da varanda e gosto de uma montanha ao fundo. Comento com meu amigo que ela se parece com aquelas ruínas incas nos arredores de Cusco e depois mudo de ideia: parece a Isla del Sol, no lago Titicaca. Proponho caminharmos até ali. Nada de moto, por hoje. Só nossos pés e chinelos e o tempo das coisas pequenas, que é sempre lento e mais bonito. No caminho, percebo que meu pescoço dói e até minha cabeça voltou a doer um pouquinho. "Foi você quem quis vir andando" - ele argumenta contra uma reclamação que eu não fiz. Eu quero - como quero - aquela caminhada. O ar é fresco, mas faz sol. O corpo fica quente logo. E estou tão contente e comemoro que vamos rumo à Isla del Sol. "Vê aquela outra montanha do lado? Aquela é a Isla de la Luna". E fica sendo. Eu gosto de nomear as coisas, porque assim elas são um pouco minhas. As crianças aproximam-se quando nos veem. Pedem doces ou canetas. E eu penso que doce é pedir canetas. Que as crianças rabisquem o mundo, amém. E depois os cachorros nos seguem e até as cabras berram quando passamos. Eu converso com todos porque gosto mesmo é de falar com bichos. Eles, que não se prendem às palavras, entendem melhor. A população local nos cumprimenta com sorrisos e acho que os velhinhos daqui são os seres mais suaves que já vi, andando a passos de formiga, de bengala em uma mão e um maço de lenha no outro braço, como se fogo não fosse urgente. É preciso compreender o tempo das árvores. E eles sorriem sorrisos tão grandes que me sinto encontrada. Depois nos sentamos em uma pedra qualquer e nos pomos a olhar as montanhas ao longe. Porque minha cabeça dói, fecho os olhos e começo a recitar o ohm. Meu amigo junta sua voz à minha e vibrar junto é sempre mais poderoso do que só. Então ficamos leves e passamos o resto do dia a sentir o sol no rosto. Porque nenhum de nós canta, cantamos. Eu aprendo as músicas portuguesas e canto "Faroeste Caboclo" inteira. As crianças do vilarejo nos rodeiam, sempre a observar. Um cão nos escolhe como amigos, esfrega-se na gente e depois estica-se ao lado, a nos vigiar. Quando outro cão se aproxima, o primeiro rosna e de repente somos pivôs de uma briga canina. Saímos andando e explicando que podemos ser amigos de ambos. Eles nos seguem, ainda estranhando um ao outro. Quando nos damos conta, a tarde já está quase caindo e não há um centímetro do caminho em que eu não pare para me espantar com aquele cenário sob a luz amarela. Meu amigo sobe em uma pedra e me chama: "Sobe e vê os campos de arroz!" Eu decido que esse pode ser o verso de um poema e nos comprometemos a escrevê-lo. Discutimos se o poema de cada um deverá ser rimado. Ele quer que sim. Eu lhe digo que rime e me deixe com meus versos livres.
Poesia é a vida.
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