Foram quase dois dias de viagem para chegar a Kathmandu e eu ainda sinto como se tivesse dormido e de repente acordado aqui. Ou melhor, como se nem acordasse. É como se fosse sonho, tão leve é estar no Nepal.
É que eu já aprendera a ver suavidade até em Varanasi.
Então caminho pelas ruas e sou anônima. Troco olhares com pessoas que me sorriem e não querem saber quem sou, de onde venho, aonde vou. Estou como se não estivesse. E é uma leveza quase insustentável, como saberia Kundera.
Subo ao Monkey Temple no final da tarde.
- A chuva limpou o céu - explica o guardinha, enquanto recebe os bilhetes de entrada.
O templo fica lá no alto e temos uma visão magnífica da cidade, perdida entre montanhas. No céu, nuvens coloridas e uma lua crescente muito branca. A paisagem toda emoldurada pelas bandeirinhas budistas.
O templo é lindo. A vista é linda. Mas não é isso.
- É como eu me sinto, entende? - tento explicar sem sucesso.
É uma plenitude e uma paz.
Tento obsessivamente fotografar um filhote de cachorro que brinca com um gato tigrado. O gato rola no chão, o cão o cutuca com a pata gorda. Dou nome à cena: paz na terra. É isso que sinto e vejo. Até que uma vendedora de artesanatos expulsa os bichos, eu a repreendo e ela dá risada. Seu riso é tão divertido que até me esqueço de ficar brava. Saio rindo também.
Com a mesma obsessão, passo a fotografar uma mãe macaca com seu filhote. Há vários por ali, mas existe algo nessa dupla que me atrai.
- É a maneira como eles se encaixam, vê?
Eu vejo. Ambos se fundem em uma forma arredondada em perfeita harmonia. Depois de tirar várias fotos idênticas, guardo a câmera e continuo parada à frente dessa imagem. Quero orar ou me prostrar diante deles, tão sublime é a cena. Mas tenho ainda esse eu que regula e critica, e ele me lembra do ridículo.
Estou ficando religiosa demais - digo a mim mesma. À minha maneira pagã, claro, de ver deus em tudo e até em macacas mães com seus filhotes. Sempre achei a maternidade uma espécie de milagre.
Depois ficamos eu e o amigo sentados em um degrau qualquer, apenas porque não queremos ir embora. Ao nosso lado cachorros dormem e, um pouco mais pra lá, vemos um rapaz que parece um macaco: sentado de cócoras, com a coluna curvada e longos braços caindo ao chão. Estamos em silêncio e de vez em quando um de nós sai de seu mundo para chamar o outro: "veja o arco-íris!" ou "olha a maneira como o macaquinho pula!"
Então passa por nós um rapaz e provoca um cachorro. Não vejo exatamente o que ele faz, mas o cão fica tão nervoso que engasga. Pois o cão em mim - por acaso meu signo chinês - desperta e fica de olhar e ouvidos atentos, vigiando o rapaz. Ele ameaça chutar outro cachorro. Em um mesmo impulso, eu e meu amigo reagimos. Ele se levanta bruscamente, enquanto eu dou um grito, furiosa:
- Ei! Não se meta com os cachorros!
Todos os olhares se voltam a nós, cuja natureza canina fora tão bruscamente revelada. Minha irmã costuma dizer que em certas situações eu rosno. Acho que ela tem razão. Eu rosnava.
O amigo olhou para mim e explicou: "ele está bêbado", talvez para pedir calma. Olhei melhor para o moço e, sim, estava. E, porque lhe dirigimos a palavra, ele veio, bêbado, falar conosco. Disse que não fazia mal aos cães e olha, gosto deles, mostrava-nos apalpando a cabeça de outro. Mostrava as nuvens no céu e dizia que aquilo era um evento raro, quase impossível. Fazia gestos largos, perguntava de nós e queria saber se compreendíamos qualquer coisa incompreensível. Quando ele não parava mais de falar, resolvemos que estava frio - estava - e era hora de irmos embora.
Àquela altura, eu até já havia começado a gostar do bêbado, em sua trágica agressividade e doçura.
Estou ficando religiosa demais. Que vejo deus até nas pessoas.
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