domingo, 19 de abril de 2015

5 de março

Acordei e era Holi.
O plano era, junto com meu amigo português, alugarmos uma moto e irmos para Bhaktapur. No café da manhã, ele sugeriu:
- Talvez seja melhor irmos de táxi.
Fiz minha contra-proposta:
- Talvez seja melhor não irmos.
Eu não queria perder um minuto da celebração. Ainda teríamos que juntar cada um suas coisas, fazer check out, viajar, encontrar um novo albergue.
- Podemos ir amanhã. Mas vamos aproveitar o dia inteiro de Holi por aqui mesmo, assim não perdemos tempo - propus.
Então acabamos de comer, nos trocamos e fomos às ruas.
- Aonde vamos?
- A gente sai andando e segue os blocos que encontrar - respondi, supondo que seria parecido com o Carnaval carioca.
Nas ruas, grupos de jovens esfregavam pigmentos coloridos uns nos outros, desejando alegremente: "Happy Holi!" Comprei, eu também, meu pacotinho de pigmentos e fui colorindo as pessoas pelo caminho. Em pouco tempo já estava vermelha, rosa, verde, lilás e amarela. As pessoas aproximavam-se para me sujar com seus pozinhos e eu recebia as cores de peito aberto, embora com a boca e os olhos bem fechados. O espírito era alegre e bom. A maioria das pessoas era jovem, meninos e meninas. Pensei mais de uma vez que não gostaria de estar em Varanasi em um dia como este.
Passamos pela praça central e seguimos andando. Paramos em uma barraquinha de frutas, para tomar um suco. Jogamos pigmentos no garoto que nos atendeu e vice-versa. Saindo de lá, vimos uma fila de soldados do exército e eu provoquei meu amigo:
- Pinta o soldado!
Ele foi. É claro que sabíamos que não se brinca com a polícia ou o exército. Mas é que a graça é brincar com quem não se brinca. Então ele passou uma camada de pigmento alaranjado no rosto do soldado. Este olhou espantado, quase incrédulo. Quando se deu conta do que lhe passara, deu uma cacetada no lombo do meu amigo.
Por um segundo, fiquei tensa. Da reação do amigo viriam as próximas conseqüências, e eu já imaginava espancamentos e prisões. Ele levou na esportiva. Não havia sido uma cacetada tão forte, embora o suficiente para lhe deixar uma boa marca de lembrança. Fomos embora dando risada dos soldados, que levam a própria seriedade tão a sério.
Depois voltamos à praça central, onde já se acumulara uma multidão imensa. Conseguimos um espaço no alto de uns degraus e nos pusemos a observar de cima. Era muita gente. Era como ver o Cordão do Boitatá das escadarias da Assembleia Legislativa. Eu mal acreditava que vivia aquela festa imensa em plena Kathmandu. No final, acabara na maior festa do Nepal, na praça central da capital do país.
Os jovens dançavam ao som da música. Jogavam pigmentos que formavam nuvens cor de rosa e amarelas no céu. E estavam mais felizes do que bêbados. Mais coloridos do que sóbrios.
No meio daquilo tudo, sentimos fome e decidimos almoçar em um terraço, de onde poderíamos continuar observando a agitação. Comemos, bebemos e conversamos muito, enquanto tomávamos sol no rosto e nos divertíamos com a bagunça lá embaixo:
- Olha aquele garoto dançando! - apontávamos.
- Ele não quer saber de nada, só quer fazer sua coreografia em paz.
E depois, quando tomamos coragem para voltar à festa, ela já tinha terminado. Ocorreu-me de achar bonito que as pessoas aceitassem com dignidade o fim da festa. Há sempre o momento dos que não aceitam, aquele prolongamento decadente e desesperado dos que não vão embora.
Cheguei em casa e tomei um banho demorado, para tirar as cores do dia. "Todo Carnaval tem seu fim", já dizia a música. Cabe a mim aceitar com dignidade o fim da festa. Desta festa.
Mas que jamais aceitemos as leis dos sérios, dos que não brincam. E sobretudo que nunca, jamais aceitemos as leis daqueles que não se deixam colorir. Porque dignidade mesmo é aceitar o fim da festa sem que a festa tenha fim.

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