Levantei de mau humor pela noite insone. Coloquei a casa na mochila amarela e saí. A missão era a de quase todos os dias: parar em um degrau qualquer para escrever, estudar, meditar. A caminhada pelos ghats cura. E o rio lava o que tiver de ser levado, ainda que só se ande ao longo.
Sentei-me em uma murada que serve de corrimão em uma escadaria. Peguei meus textos para ler, mas frequentemente tirava os olhos dos papéis para ver o mundo. Às vezes apenas observava com o olhar periférico. Reparei o garoto sentado na outra extremidade da escada que, como em um filme, arrastou-se para o lado, fingindo que nada acontecia, até ficar bem perto de mim. Quando ele, timidamente, tentou falar alguma coisa, fingi não ouvir.
Depois se aproximou um homem mais velho. Fez algumas perguntas, que eu respondia sem de fato lhe dar atenção. Até que, em um momento, ele me apontou:
- Não é bom apoiar a mochila sob a perna. Dá azar.
Olhei para ele. Não sei bem por quê, mas obedeci, tirando-a de baixo das pernas e colocando-a sobre o colo. E de repente ele me falava sobre os deuses e contava sobre a necessidade de se escolher um deus para cultuar:
- Se você pede uma coisa a todos os deuses, você não vai saber qual deles a concedeu a você. Por isso, nessas condições, eles não atendem a seus desejos.
- Mas se você escolher um só, os outros não ficam enciumados? - provoquei.
- Ficam. Por isso de vez em quando você tem que fazer oferendas para eles também. Os deuses são como as pessoas.
- Como as pessoas?
- Exatamente como as pessoas. Aliás, as pessoas também são deuses.
Perguntei que deus ele escolhera.
- Shiva.
- Por que Shiva?
- Full power.
É assim que eles se referem a seu deus maior, inclusive quando tentam vender drogas aos estrangeiros: "Shiva full power", um amigo me contou. Comigo não acontece, porque sou mulher. Mas aos meus amigos homens sucede de serem abordados por um traficante a cada esquina. Eles os seguem e vão falando os nomes de todos os narcóticos.
- Só se for heroína - meu amigo respondeu certa vez, já que era a única droga que ele não oferecera.
- É pra já. - respondeu o moço.
- Não, não, obrigado.
É essa a ideia que se tem dos estrangeiros: pessoas que vêm para se drogar. Não sem um pouquinho de razão. Apenas o álcool quase não é presente em Varanasi. É no Holi, apenas, que ele surge e todos se embebedam. Eu não quis estar presente para testemunhar.
- Você bebe? - perguntou-me outro dia um indiano.
- Não.
- Mas de vez em quando você bebe um pouquinho de cerveja, né? Eu posso saber sobre você. Vejo que você bebe um pouco de cerveja. - ele jogou no verde, usando seu conhecimento genérico sobre as mulheres ocidentais.
- Não, nem um pouquinho. Nunca.
Pessoa errada.
Mas, voltando ao homem que escolhera Shiva, ele contava-me dos rituais diários para os deuses. E que eu deveria ter um altar para o deus escolhido e dizer "namastê" para todos, com alguma frequência. E que, ao acordar, eu deveria também pegar algum dinheiro, encostar na testa e dizer namastê a ele.
- Eu devo dizer namastê ao dinheiro? Todas as manhãs?
- Isso. Assim você terá prosperidade.
Lembrei que aqui, sempre que alguém recebe algum dinheiro, encosta-o na testa, antes de guardá-lo. E depois me lembrei do dono do restaurante que frequento todas as manhãs, com seus mantras e incensos, cuja fumaça ele espalha em cada canto do local, inclusive na gaveta de dinheiro.
Desde os primórdios, os deuses sempre serviram para nos servir.
- Que pedra é esta no seu anel? - perguntei ao homem dos deuses, apontando para sua mão.
Quase todos os homens usam um anel no dedo indicador, que eles chamam de "guru finger". Na minha primeira vez em Varanasi, conheci um astrólogo que disse que eu deveria usar rubi, para potencializar meu sol:
- Você tem espírito de liderança. O rubi vai aumentar esse poder.
Achei a ideia tão simpática quanto inacessível.
Depois perguntei a este outro homem como eu faria para descobrir a minha pedra.
- Como é seu nome?
- Lian.
Ele pensou durante um segundo e concluiu:
- Neli.
- Isso é uma pedra? Nunca ouvi falar.
- É sim.
- E qual a lógica disso? De onde você tirou que essa é a minha pedra?
- É o seu nome ao contrário.
- Mas nem todo nome tem uma pedra. E se eu me chamasse... Ingrid, por exemplo?
Ele fez um jogo de palavras qualquer e me falou uma pedra.
- E qual seu nome?
- Pi.
- Como em Aventuras de Pi? Mas sua pedra não é seu nome ao contrário.
- Minha pedra foi escolhida pelo meu guru. É assim que funciona, ele lhe dará um anel e colocará um mantra nele. Então todas as manhãs você dá um beijo na pedra, quando acordar.
- Deixa eu ver ser entendi: sempre que eu acordar eu devo beijar o anel, dizer namastê para o dinheiro e fazer uma oração para o meu Deus?
- É.
- E quem é seu guru?
- Meu pai. Se você tem família, pai e mãe, eles são naturalmente seus gurus. Se não, você deve escolher uma pessoa boa para seguir.
Depois que ele foi embora, coloquei a mochila no chão, ao meu lado. Meia hora depois ele reapareceu:
- Não deixe a mochila aí, os cachorros vão mexer. Coloque atrás das costas, como apoio.
Obedeci de novo. Acho graça do jeito mandão dos indianos, especialmente quando aparecem para me mandar sair do sol.
- Minha mãe diria a mesma coisa - penso.
São meus gurus, pai e mãe. Na ausência deles, é a vida. E esses indianos que vêm espontaneamente me mandar pra sombra.
Mais tarde vou tomar um chai apenas para socializar com os babas de verdade. Ouço uma voz às minhas costas:
- É possível ter um chá de limão?
- Você é francês? - pergunto.
- Sou.
Explico-lhe que os franceses sempre perguntam se as coisas são possíveis, porque traduzem pro inglês a sua tão usada expressão "c'est possible?" Passamos a conversar sobre Varanasi e a vida. É a quinta vez que ele vem. O assunto é bom e se estende, mas sigo meu caminho para almoçar.
No Dosa Cafe, encontro a israelense de cabelos selvagens, uma das poucas viajantes que permaneceram, depois que voltei do Nepal. Eu sempre me perguntava por ela nos restaurantes, pois ela era minha irmã de prazeres gastronômicos.
- Esta é minha última refeição aqui - ela anuncia, contando que pegará um trem para o Rajastão, onde fará um Vipassana.
- Então aproveite bem essa refeição! - recomendei-lhe, dando um abraço de despedida. - E me avise quando for ao Brasil.
- Igualmente, quando você for a Israel! - ela respondeu.
O dono do restaurante concluiu que nos encontraríamos de novo na Índia, pois certamente ambas voltaríamos.
Fui embora testando alguns conhecimentos de hindi, por exemplo, pedir licença:
- Sai!
Era assim que me soava, sempre que alguém queria passar. Experimentei dizer isso. O homem que atravancava o caminho fez um sinal, pedindo que eu esperasse.
- Funcionou, ele entendeu! - comemorei a experiência bem sucedida.
Mais tarde, foi outra mulher quem pediu passagem:
- Sai!
Tentei confirmar com ela:
- Você disse "sai"?
- Said! - ela corrigiu.
E, quando percebemos, ela me ensinava esta e outras expressões de sua língua. Achei graça pensando que este é o único lugar em que uma pessoa te manda sair da frente e termina te dando uma aula de hindi.
Depois cheguei ao Baba Lassi. O dono do estabelecimento tem um irmãozinho, criança, que é uma das crianças mais bonitas que já vi. Ele está sempre por ali, vestido como um homenzinho, com seu rosto expressivo. Eu tento me conter para não constrangê-lo, pois não consigo parar de admirá-lo. Desta vez, aparece também seu filho, um bebê de dois anos de idade, aquele que passara pelo ritual do primeiro corte de cabelo.
- Eu nunca havia visto esse bebê antes. Só agora ele começou a aparecer. - observo.
Pensando bem, me dou conta de que nunca vejo crianças recém-nascidas. Talvez elas sejam protegidas até certa idade. Provavelmente até passar por essa cerimônia. Preciso perguntar a alguém - anoto mentalmente.
Mas a criança que aparece, assim como a que já lá está, é igualmente e surpreendentemente linda e expressiva.
- Os meninos da sua família são as criaturas mais bonitas que eu já vi! - falo com entonação exagerada, mas sem exagero, para o moço.
É sempre ele que escolhe o sabor do meu lassi. Desta vez, é uma mistura de romã, coco, banana e abacaxi. Dou-lhe autonomia para me surpreender e nunca me decepciono.
Chego atrasada ao concerto no Tulsi Ghat, que está mais atrasado do que eu. O primeiro espetáculo é um trio de tabla, com três grandes músicos. E, porque são grandes, passam horas demonstrando seus talentos, no que um amigo francês reclama que não é música, mas exibição. Uma bela exibição. Grandes talentos. Mas depois da décima rotação na terra, torna-se um bocado cansativo. Mais tarde, uma apresentação de dança Kathak, igualmente bela e demorada.
- O problema dos indianos é esse, - suspira meu amigo - eles não sabem a hora de parar.
Dou risada sozinha, pensando que é como as matérias da Revista Piauí, quase sempre interessantíssimas, mas que, depois de encerradas, continuam e continuam. Começam a falar do irmão do personagem e depois do primo do personagem e depois de sua cidade...
Então me canso do concerto e descubro um restaurante novo, de comida vegana e crua. Salada na Índia é luxo e oásis.
Respiro pensando que às vezes acontece mesmo de a vida ser demais. E talvez hoje seja um dia desses, em que tudo acontece e você não sabe como editar e sua crônica do dia transforma-se em uma matéria da Revista Piauí.
Nada mal para quem, como eu, gosta de dias longos e páginas grandes.
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