Meu pescoço travou logo de manhã. Era emocional, claro, e nem é a primeira vez que me acontece assim. Não sei lidar com despedidas. Meu corpo grita. E dói fora porque dentro não cabia.
Então peguei minha mochila amarela e fui caminhando até o Sparsa, este espaço terapêutico que me fora recomendado pelo amigo francês. Eu fizera uma consulta ayurvédica e um tratamento para limpar as vias nasais. Hoje, precisava urgentemente de uma massagem.
Quando entrei, havia uma moça saindo. Nos cumprimentamos com um aceno de cabeça. Depois expliquei meu problema para a recepcionista. A dor era no pescoço, mas aproveitei para fazer uma massagem completa.
O amigo que recomendara o espaço, que também é massagista, contara-me sobre essa massagem, a abhyanga, que era ótima para a circulação e para o coração. Perfeito. O coração estava mesmo partido.
A massagista era uma mocinha. Pediu que eu vestisse uma calcinha parecida com a cueca-fralda que os homens usam no Ganges, amarrada à cintura. Trouxe um óleo aquecido. Ela era pequena, mas forte. Era boa, a massagem. Quase me resgatou do passado e me trouxe para um novo lugar. Ela mostrava no corpo o que faltava para o espírito: deixar circular. Fazer fluir.
Saí com o pescoço ainda dolorido, mas com o peito mais aberto. Estava exageradamente quente, e eu transpirava toda molhada de óleo. Almocei um thali no Niyati Cafe e resolvi tomar um banho de rio antes da sobremesa. A água era fresca. Dei um mergulho, algumas voltinhas. Depois sentei-me na borda, o corpo molhado, e meditei.
Quando me levantei para sair, vi o macaco deitado. Estaria morto? Olhei para os lados, em busca de explicação. Eu o vira, havia uma semana, tomando banho no rio, junto com seu dono: um baba de
olhar expressivo, que o ensaboava sem delicadeza, mas com carinho.
olhar expressivo, que o ensaboava sem delicadeza, mas com carinho.
- O que aconteceu? - perguntei em voz alta.
O baba me respondeu:
- Ele levou um choque no fio elétrico.
- Mas ele está vivo? Está morto?
Estava vivo. E mexeu, quando perguntei. Tinha uns espasmos de vez em quando, voltava a cair. O olhar muito angustiado. O baba explicou:
- Está melhorando aos pouquinhos. Levei ao médico. O remédio custou duzentas rúpias. Olha, é este o remédio.
Li o rótulo. Era apenas um pacotinho de fortificante. O baba misturou uma colher do remédio com um pouco d'água. Colocou o macaco no colo como um bebê e deu-lhe às colheradas. O macaco vomitou tudo. O baba então abriu uma cápsula de outro remédio, misturou com uma banana e colocou-a na boca do bicho, que voltou a vomitar.
Eu sentei-me ali do lado e fiquei acariciando a cabeça do macaco. Ou melhor, macaca:
- Larki - ele explicou em hindi e eu compreendi.
Era triste, porque muito visível o sofrimento da macaca. Rani, seu nome.
- Eu a ajudo e deus me ajuda. - contava-me o baba.
Mais tarde uma amiga diria que aquele homem era agressivo. Pois eu só vi doçura. Despedi-me dele desejando no meu íntimo que Rani ficasse bem.
A amiga era a moça com quem eu cruzara de manhã, no centro terapêutico. É uma francesa que mora no Sri Lanka, viaja há meses pela Índia e tem nome de mar. Nunca havíamos nos falado, mas nos identificamos. Não é Vinicius de Moraes que diz que não fazemos amigos, mas os reconhecemos?
Ela quis me fotografar e, de alguma forma, queríamos aquele encontro. Atravessamos o rio de barco e fizemos fotos com cavalos, que os meninos alugam na outra margem. Eram os últimos minutos de luz do sol. Depois cruzamos o rio de volta e ficamos conversando no ghat.
- Você vai jantar em algum lugar? - ela perguntou.
- Preciso ir ao Dosa Café. - tinha na cabeça a sobremesa do almoço, ainda, mas já era hora de jantar.
Ela quis me acompanhar e, no caminho, fui lhe contando sobre aquele lugar e aquela comida e aquelas pessoas:
- Esse homem é como meu pai aqui. Preciso me despedir dele.
Quando cheguei ao restaurante, ele contou:
- Minha esposa acabou de perguntar sobre você.
- Eu jamais iria embora sem me despedir.
Ele sabe que parto no dia seguinte às quatro da tarde. Ele não esquece nada que digo, mesmo que eu esqueça. E no dia de minha partida o restaurante estará fechado, porque será a semi-final do campeonato de críquete: India X Austrália.
Conversamos os três sobre lugares, espiritualidade, pessoas. A menina da mesa ao lado entra na conversa. É uma professora de yoga francesa, que vive em Barcelona e está na Índia há seis meses. Estivera lecionando yoga em Goa e está a caminho de Rishikesh. Ela é forte e sensual:
- Você parece uma versão loira da Penélope Cruz - observo.
- Estranho, mas você não é a primeira pessoa que me diz isso.
Convidamo-la a sentar-se conosco. Depois do jantar, dividimos as sobremesas. Somos três mulheres taurinas - descobrimos depois - e nos encontramos. É minha ultima noite em Varanasi.
E nos encontramos.
- E se eu pudesse começar a todo instante? - eu escrevera no dia anterior.
Pois sim. Sabia como um primeiro dia.
Comíamos dosas e doces. Era noite e parecia Natal. Éramos uma irmandade. E havia aquele homem que eu amava como a um pai.
- Ela é uma alma boa - ouvi-o dizendo de mim, para uma das moças, não lembro o contexto.
Vindo dele, que é um homem bom, foi bonito de ouvir. E depois me despedi dele e de sua esposa, "a melhor cozinheira da Índia", e parti. Partimos.
Chegamos nós três, mulheres taurinas, ao ghat. Havia uma lua nova no céu.
- Aqui é um bom lugar para você voar - convidou Penélope Cruz.
Ela deitou-se no chão, esticou os braços e as pernas e me elevou no céu. Testamos algumas posturas de acroyoga - ela viera do circo. Depois ela me virou de cabeça para baixo e massageou meu ombro e pescoço. A moça com nome de mar nos fotografava e ajeitava minha roupa, para que eu não ficasse exposta. Àquela altura já tínhamos público: uma multidão de homens ao redor.
- Hoje já não me importo. - eu dizia - É minha última noite. A partir de amanhã, ninguém vai me provocar.
Fomos caminhar até o templo do outro lado. É um templo belo, afundado no rio.
- Não acredito que a água subiu tanto! Eu entrei aí dentro há uma semana! - espantou-se a fotógrafa.
Fizemos mais fotos. Mais yoga. Atraímos mais multidões. Depois ficamos conversando sob a lua nova. Falamos sobre os amores, sobre os caminhos.
De repente era meia noite. As portas dos albergues estariam fechadas. Voltamos a passos apressados.
- Seu pescoço está melhor? - perguntou a amiga no caminho.
- O pescoço não. Apenas o pescoço.
Cheguei e tive que bater à porta. Tocar a campainha. Gritar. Bater de novo.
Depois de um tempo, o homem abriu a porta, resmungando:
- Está muito tarde.
- Eu sei. Me desculpe.
Não lhe expliquei que às vezes um dia - e era um ultimo dia e também um primeiro - não cabe nas bordas de um dia só.
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