Coloquei o despertador para seis da manhã e comecei a rolar na cama a partir das cinco. Comi três bananas e saí de casa pouco depois das seis, achando que estava arrasando. Mas parecia que a vida lá fora começara bem antes. O céu já estava claro e as ruas movimentadas.
Caminhei em direção ao Assi Ghat. Todas as manhãs, cedinho, acontece a cerimônia diária, seguida de um concerto e uma meditação. Há um tempo fui ao concerto. Ainda era inverno, estava escuro e ventava muito. Lembro de correr para aquecer o corpo e de ter dor de ouvido. Depois surgiu um solzinho de nada. Saí para me esquentar e deixei a meditação de lado. Vendo-a de fora, achei aquilo tão interessante. Era uma meditação ativa, com muitos pranayamas e movimentos físicos. Era yoga, pra ser mais precisa. Naquele momento, falei a mim mesma que começaria a frequentar os eventos da manhã depois que esquentasse. Quando esquentou, esqueci.
Pois hoje fui decidida a participar ao menos da yoga. Como não lembrava a que horas começava cada evento, saí correndo para chegar a tempo. Cheguei quase no final do concerto. Sentei-me ao lado da mulher do espanhol. Que bem deve ser espanhola também. Mas é que ele se tornou uma das referências das quais eu mais ouvia falar: um barbudo que toca tabla e, há mais de dez anos, passa seis meses anuais em Varanasi. Hoje eles têm um bebê pequeno, com menos de um ano. O bebê estava ali, com ela, engatinhando à vontade. Tive uma invejinha deles.
Éramos os únicos estrangeiros, entre os indianos. A meditação era guiada em hindi. Eu entendia palavras soltas. Olhava pros lados, imitava os outros. "Vou começar a vir todos os dias", pensei. E depois achei aquilo uma idéia besta, já que parto depois de amanhã.
Mas e se...
E se eu sempre fingisse que era meu primeiro dia? E se eu pudesse começar a todo instante? E se todos os caminhos me estivessem abertos?
Não estão?
Nem sei. Sei que passei o dia inconsolável. Talvez por sono. Talvez porque olhasse pra frente. Talvez porque olhasse pra trás. Vaguei pelos ghats e pelas ruas. Fui aos restaurantes de sempre. Evitava olhar nos olhos das pessoas, para que elas não enxergassem através de mim. Mantinha silêncio para não embargar a voz. E, se alguém perguntava se eu estava bem, cuidava para não começar a chorar.
- Quero uma paratha, uma salada grega sem cebola e uma limonada - pedi no restaurante.
O moço esperou eu acabar de falar, para fazer sua observação:
- É só dizer que quer o de sempre, não precisa falar tudo.
Mas como de sempre, se sabia tão diferente?
Forcei-me a comer, porque detesto desperdiçar. Quando eu havia engolido a paratha quase toda, uma mendiga me acenou da janela. Levei-lhe meu último pedaço e lamentei ela não ter aparecido antes.
Já no Dosa Café, ficamos os dois em silêncio. Como se, abrindo a boca, algo se pudesse quebrar. Lembra muito meu pai, esse senhor. Por isso conheço bem essa empatia calada. É um modo de querer bem com medo de se mostrar.
Lembra muito eu, esse senhor.
- Então você vai dia 26?
- Vou.
Mais silêncio. Engraçado que desta vez eu sentia que não era só eu que perigava chorar.
Depois fui encontrar minhas cachorrinhas.
- Agora que sei diferenciá-las, preciso de um nome para elas. - dissera ao meu amigo outro dia - Qual sua sugestão?
- Ek e Do.
Um e Dois. Aceitei.
- Ek tem uma verruguinha sobre o olho esquerdo. Do tem verruguinhas no corpo todo - expliquei.
- Não são verrugas, são carraças, conhece?
- Carrapatos?
- É. E você aí se esfregando nelas - me disse ele, com nojo.
Pois hoje estavam ambas na estrada principal. Ek, ao me ver, contorce-se de alegria. Então pula em mim, tenta arrancar minha saia, morde minha mão. Do está sempre dormindo. Ek esbarra em Do, que fica brava e rosna. Essa cena se repete diariamente.
- Do é apelido de Dorminhoca! - concluí.
Então fui tomar um banho de rio. Eu precisava me desprender de alguma coisa que talvez só o Ganges conseguisse levar. Fiquei ali mesmo, no ponto mais próximo de casa. Havia dois velhinhos, pele escura e longa barba branca, a lavar roupa. Outros dois homens por perto, a construir um barco.
Entrei na água. Ela parecia mais suja do que o normal, provavelmente porque ficava em um recuo.
- São só flores, Lian - eu me dizia. Mas depois vi pedaços de ossos, tenho quase certeza. E pequenas larvas, sabe-se lá de quê. Fui pro meio, onde a água corre melhor e é mais limpa, mas a correnteza me levava. Eu, que não sou grande nadadora, resolvi voltar pra margem. Sentei-me ali, na beirinha do rio, enrolei-me na toalha e comecei a meditar. Batia sol, mas eu estava fresca pelo corpo molhado. Meditei. E meditei.
Depois abri os olhos e comecei a cantar essa música, que tem sido meu mantra: "Que será será. Whatever will be will be. The future is not ours to see. Que será será". Era minha mãe quem a cantava, quando eu era criança. Mas acho que agora ela é oficialmente uma das canções de Varanasi, que tanto cantei pelos ghats. Sobre mim voavam impressionantes revoadas de... que pássaros são esses? Rolinhas, acho. No meio, duas aves brancas infiltradas entre as cinzas. E houve um momento em que vi uma águia.
Eu girava a cabeça para acompanhar as revoadas e cantava, cantava. E doía. E eu cantava mais. Os velhinhos não se importavam comigo. O barqueiro tentou me chamar uma vez e logo desistiu. Deixei cair algumas lágrimas, até esvaziar alguma coisa que... não, não se esvaziou.
Voltei pra casa, tomei um banho, lavei a calça e a toalha, mas joguei fora a blusa que usava. Vestira-a naquele momento propositadamente, já planejando largá-la. Era uma pena. Era a roupa mais antiga que eu tinha e eu me orgulhava de ainda usá-la. Acho que minha mãe a trouxe quando eu tinha doze anos de idade. A minha era branca, a da minha irmã era bege. Na época era grande em mim. Hoje a manga é curta. Larguei-a apenas porque fora rasgada pelos macacos que me atacaram, semanas atrás.
- E já tenho tanta coisa! - pensei, depois, olhando perdida para as roupas sobre a cama.
Como fazer caber em uma mala?
Não cabe. Foram três meses descabidos, transbordantes. Não cabem em um contexto. Não cabem em uma vida. E logo em uma mala, meu deus!
Quisera eu saber deixar para trás. E começar.
Acordar amanhã como se fora meu primeiro dia em Varanasi.
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