Saí de casa com um destino certo e outro a ser encontrado. O primeiro seria meu cantinho de meditação. A caminhada até lá já faz parte da meditação em si. E era debaixo do sol do meio dia, o que renderia, até hoje, uma bronca da minha mãe. O segundo destino era algum ponto tranquilo no Ganges para me refrescar. Estava à procura de um pedaço de rio onde houvesse mulheres se banhando, de forma que eu me sentisse mais à vontade.
A primeira coisa que descobri é que, nessa vida de ser uma pessoa descalça, a sujeira é o menor dos problemas. Aliás, para quem vai, em seguida, nadar no Ganges em Varanasi (nas cidades ao norte ele é mais limpo), sujeira nem chega a ser uma questão. Mas é que o caminho era longo. E as pedras, àquele horário, queimavam os pés. No fim do dia ele ficaria cheio de bolhas.
Na frente do templo de Shiva, vi um pedaço calmo de rio, com algumas mulheres. Pensei: "vai ser aqui". Mas, mais à frente, vi uma área dominada por búfalos. Meus olhos brilharam. Nadar com búfalos parecia ainda melhor do que nadar com mulheres.
Então subi no meu cantinho e me pus a recitar mantras. O sol estava forte. Fazia dias que eu não meditava e, desta vez, quis enviar luz rosa - Amor incondicional - às pessoas que amo, às que fazem parte da minha vida, às que passaram por ela. Mentalizei luz rosa em cada pessoa que aparecia à minha cabeça. Às vezes apareciam pessoas inusitadas, de quem há muito não tenho notícias, ou que mal conheço. Tudo bem. Um pouco de Amor não faz mal a ninguém.
No final, já estava molhada de suor. Então desci as escadas correndo e me joguei no rio, pedindo licença aos búfalos. Era bonito e um pouco aterrador nadar entre eles. Só saí do rio quando já haviam se acumulado suficientes pessoas em volta, a me observar.
Voltei molhada debaixo do sol, uma das minhas sensações preferidas. Pena que as pedras queimassem meus pés descalços, fazendo com que eu tivesse que correr, saltitar ou simplesmente aguentar a dor, até chegar em casa.
Depois disso ainda tive um dia longo, como se, de súbito, o deus brincalhão devolvesse todas as horas que me roubara nesta cidade.
Sei que no fim do dia saí nova e de banho tomado, decidida a andar quase até o último ghat, onde eu descobrira, havia pouco tempo, um restaurante de comidas vegetarianas e cruas. Meu corpo pedia salada. Eu quis obedecer. Comi com um pouco de pressa, pois não queria voltar no escuro. O que era inútil, porque o sol, aqui, se põe cedo. O ponteiro mal passava das sete, mas já era noite.
Quando comecei a andar pelos ghats, dei-me conta de que era a primeira vez: No escuro. Longe de casa. Sozinha. Era sempre ele quem me acompanhava, aonde quer que eu fosse.
- Mas ele partiu - lembrei.
E, de alguma forma, até achei bom ter que passar por isso. Assumi como missão: a vulnerabilidade. Mas achei melhor quando uma mocinha indiana me abordou:
- Você vai ao Dashawamedh?
- Vou quase lá. Venha comigo.
Ela faz mestrado em Língua Inglesa na BHU. E participa de um projeto independente que se compromete com a limpeza do Ganges:
- Hoje ficamos em reunião até tarde. - explicou - Quando vi, já tinha escurecido. Ainda bem que te encontrei.
Fomos juntas, protegendo uma à outra. Nem são tão escuros, os ghats. E nem vazios. Mas é uma área extremamente masculina. De um masculino agressivo. Hostil. Nós, mulheres, conhecemos bem: andar de olhos baixos, porque qualquer troca de olhar pode ser um convite. Cotovelos abertos para que ninguém se aproxime demais.
Porém, sermos duas nos dava confiança. A humilde confiança de não ser uma só.
Quando cheguei ao Rana Mahal Ghat, nos despedimos. Fiquei com um pouco de pena pelo trecho que ela teria que percorrer sem mim. Subi os degraus pensando nisso. São escadas escuras e labirintos, o caminho de casa, que é na verdade o caminho de quase tudo por aqui.
Nessa primeira escada, tão escura, um rapaz me abordou. Ofereceu-me qualquer coisa, que não entendi o que era. Talvez fosse leitura de mão, pois só compreendia a palavra "hand". Recusei. Ele continuou me seguindo. Recusei duas, três vezes. Já quase na porta de casa, impacientei-me:
- Chaloo! - que é a palavra que se usa para mandar alguém embora.
Então foi muito rápido. Mal entendi, na hora, mas gritei. Ele passou a mão em meu corpo e saiu correndo.
O horror. Toda mulher o conhece.
Olhei, impávida, para a única possível testemunha: um homem a poucos metros dali. Acho que ele não compreendeu nada, senão meu grito. Até eu compreendera apenas o grito.
Enquanto subia as escadas do prédio, só conseguia pensar que não vira seu rosto, no escuro e no olhar sempre baixo que mantemos por aqui. E que jamais o reconhecerei se ele cruzar comigo na rua.
Entrei no quarto e chorei como bebê.
Um dia fujo com os búfalos.
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