Meu cabelo cresceu três metros durante a noite. Juro. Levei um susto quando o desembaraçava em frente ao espelho. Encontrei uma mecha que eu não sabia de onde vinha, pensei que fosse cabelo solto. Mas era cabelo meu mesmo, grudadinho na cabeça e já quase passando do quadril.
Ocorreu-me que a primeira pessoa que desejo encontrar, quando voltar ao Brasil, será Claudinho, meu cabeleireiro e amigo. O único que corta meu cabelo exatamente como gosto: com o V bem pontudo, que é a forma de dar leveza a uma cabeleira lisa e pesada.
Hoje peguei o voo de volta a Varanasi. É tão perto: o voo leva menos de uma hora. Mas, sendo internacional, tive que chegar ao aeroporto com três horas de antecedência. Dormi profundo na sala de embarque. Quando finalmente nos chamaram, havia toda uma estrutura montada na porta do avião para nos revistar. A terceira revista no mesmo aeroporto, mas desta vez da própria equipe do Air India. Havia um simpático casal de monges (casal, mas não casal casal, vocês entendem) que aproveitou a demora para tirar fotos com o avião. Até me alegrou um pouco ver a animação deles. Mas eu, que não sou monja, fiquei é um pouco chateada de ter que esperar mais e ainda abrir minha mochila tão cuidadosamente compactada para caber. A moça olhou meu passaporte, revistou tudo com a maior seriedade e, no final, falou-me em português: "obrigada". Com um sorriso incontido de criança sapeca. Então não teve jeito, entrei no avião sorrindo também.
Decolei com a vista das montanhas nevadas e aterrissei com a visão do Ganges. Nada mal. Depois de pegar minha mala, a última que sobrava na esteira parada, o homem da alfândega me parou:
- O que tem nessa mala?
- Roupas, acho...
- Abra-a.
Abri.
- Ah, são roupas mesmo. Pode fechar. Peraí, o que é aquilo ali no canto?
- Isso?
- Ah, roupa também. Pode ir.
Entrei no táxi pensando em onde comeria primeiro. Nem era bem saudade das comidas, mas ansiedade de voltar aos lugares, rever as pessoas, anunciar que voltei. Durante o trajeto, olhava as pessoas nas ruas, tragicamente belas. Desci do táxi e a primeira cara conhecida foi a do fruteiro. Depois comprei uma água com a velhinha de sempre, que sorriu surpresa, ao me ver. Acenei para o homem do Baba Lassi, em frente:
- Namastê! Eu voltei!
- Quando você voltou?
- Agora. Estou voltando.
- Você vem mais tarde tomar um lassi?
- Venho sim.
E fui seguindo pelos labirintos, cansada da viagem e da mala pesada. Mas feliz em reconhecer e ser reconhecida. Em uma curva, um homem me abordou com um grunhido. Acelerei o passo e cheguei ao hotel. Entrei no quarto e tinha um cheiro familiar. Era um lar. A cama desfeita e meus objetos à espera. As roupas que haviam ficado secando na fita amarela que servia de varal. Já estavam manchadas da própria fita. Abri a janela e acendi um incenso. Dali a um pouco o recepcionista veio me chamar:
- Tem alguém que quer falar com você.
Era ele, o homem do grunhido. Fiquei olhando desentendida.
- Ele diz que a seguiu até aqui e agora você tem que lhe dar dinheiro.
- Por quê?
- Porque ele a seguiu até aqui.
Ao moço da recepção parecia fazer sentido, a mim parecia um teatro do absurdo. Interroguei-o com o olhar e ele, com a mesma naturalidade com que fora bater à minha porta, expulsou o homem com um empurrão que quase fez com que eu me arrependesse.
Subi novamente, troquei de roupa e desci para o restaurante. No caminho me lembrei de que reveria minhas cachorrinhas pretas e fui andando quase apressada, quase correndo, quase saltando. Cheguei na frente do restaurante e estavam as três, mãe e duas filhas, dormindo juntas no meio da rua. As filhas, já quase do tamanho da mãe. Como podiam ter crescido tanto enquanto estive fora? E cada vez que as vejo maiores, tenho mais esperança. Estão vingando. Estão vivas. Lembro de uma frase de Clarice, em "A hora da estrela": "Cada dia é um dia roubado da morte". É o que enxergo nessas cachorras, que vejo crescer.
Fiquei um tempo ali, conversando com elas em português, não importava que toda a gente passasse olhando. Depois entrei no restaurante e sentei-me à minha mesa, ao lado da janela de vidro, de onde podia continuar a vigiá-las. Se alguém parecia ameaçá-las, eu dava um grito lá de dentro e o dono do restaurante vinha ver se eu o estava chamando. Com seu sorriso sempre doce, perguntou como foi no Nepal.
- Foi muito bom. Mas eu gosto tanto de Varanasi!
E depois fui ao Dosa Cafe para comer idli de chocolate e beber um black masala tea, que é o melhor chá do mundo. É como o chai deles, porém sem leite. E além de todos aqueles condimentos que dão nuances e aquecem, lá se coloca também uma mistura de chá ayurvédico que nos leva direto ao paraíso.
Mas admito que mesmo sendo o melhor chá e a melhor sobremesa, em realidade não era por eles que eu ia. Mas para dizer que voltei. Para estar ali. Para confessar, talvez, que eu não estudara nada de hindi enquanto estive fora. Fiquei conversando com o senhor do restaurante e quase não nos entendíamos no inglês, mas nos reconhecíamos como sempre. Era tão familiar aquilo tudo.
Depois comprei um monte de frutas e, mesmo que estivesse mais do que satisfeita, fui tomar um lassi.
- O lassi já acabou - o moço me informou.
Fiquei até aliviada.
- Mas não vá embora, fique sentada aí! - ele convidou.
Depois ele me contou que no dia seguinte também não abriria, pois haveria uma celebração em família.
- Que celebração?
- O primeiro corte de cabelo do meu filho pequeno, de dois anos.
Um dia alguém me explicara sobre esse ritual. Confesso que não entendi. Sei que tinha a ver com o cabelo que vinha da barriga da mãe e com pesadelos. Saí desejando-lhe boa celebração e recomendando que me garantisse o lassi de depois de amanhã.
- Te garanto dois!
Sem entrar, dei uma espiada na porta do meu outro restaurante. As placas anti-fumo, que eu colocara no meu cantinho, continuavam lá. Então segui para minha casa, tomei um banho e liguei o computador para ver as fotos da viagem.
Fora tão suave, o Nepal. A Índia e os indianos me incomodam mais. Me intrigam mais. E ao mesmo tempo... Sim, eu encontrei suavidade mesmo em Varanasi. E a suavidade, quando no caos, é ainda mais doce.
Fora apenas alguns dias fora, mas como o tempo de Varanasi nunca fora o tempo dos relógios, sei que se passaram eras. Sei que universos se implodiram e se formaram. Sei que duas cachorrinhas filhotes cresceram e quase ficaram adultas. E que ao mesmo tempo alguns afetos ficaram congelados na eternidade.
Então entendi tudo, meu cabelo que subitamente cresceu horrores. Parecia da noite pro dia, mas de quantas eternidades é feito esse tempo dentro do tempo?
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