Então acordei mais decidida do que cedo. Para que toda vida coubesse dentro das horas despertas, resolvi criar alguma organização, fazer uma lista das tarefas diárias. Comi frutas, bebi água e passei a manhã dentro do quarto, a estudar. Tive que me dizer que agora o sol fica. E fica cada vez mais. O inverno passou e não preciso correr às ruas para mendigar cada raio de luz.
- Daqui em diante, só vai piorar. – me disse a israelense de selvagens cabelos alaranjados, durante o almoço – Para mim, já está quente demais.
- Pois para mim está perfeito. – respondi.
Eu a encontro sempre pelos restaurantes e digo que é minha irmã de comida: aquela que entende o prazer transcendental de cada alimento. Ficamos as duas suspirando diante dos pratos. Depois aparecem meus filhotes de cachorro, os que escolhi, os que viveram.
- Você soube que o terceiro morreu? – pergunto ao dono do Dosa Café.
Ele sabia.
Pois eu não sabia o seguinte: que os que estão vivos são fêmeas. Saio para conversar com elas e pedir-lhes que cresçam e vivam. Mas elas, que não sabem de vida e morte, preocupam-se apenas com cada segundo. Rolam no chão, fazem festinha e mordem meu dedo, carinhosamente.
Abro meu livro de híndi para tirar dúvidas de pronúncia:
- Larka. É assim que se fala?
Não é. O dono do restaurante decide que eu tenho de aprender direito, desde o início. Aponta a lista de consoantes e me diz para estudar uma por uma. Mais: tenho que aprender a escrita deles. E como se não bastasse eu já não compreender a diferença de sonoridade entre uma e outra consoante, ele me mostra aquelas que nada significam: são mantras.
- Como mantras?
- Mais pra frente te explico.
E mesmo que pareça muito complicado para mim, acho bonito que certas letras sejam feitas de vazio.
E, porque já estudei , já pratiquei híndi e até já comi sobremesa, decido que é hora de cumprir os compromissos da alma. Vou caminhar até o lado de lá. Tenho as fotos impressas dentro da mochila e quero pelo menos visitar uma família querida.
No caminho, eu e uma criança nos encontramos. Ela fica alegre ao me ver. Namastê. Peraí. Paro. Tiro o pacote de fotos de dentro da mochila amarela e ponho-me a procurar. Sim, é uma delas. Entrego-lhe as fotos. Ela sorri grande, segurando-as com as mãos pequenas. Mais gente se aproxima. Quer ver. Um menino reconhece a irmã. Outro alguém reconhece outro alguém. Eles dão um grito de empolgação a cada pessoa encontrada. Eles estão felizes. E eu estou o quê? Não sei como se nomeia isso de fazer feliz. Mas sei que é mais.
Continuo andando e encontro a casa:
- É ali! – reconheço.
A vizinha me vê e acena. Subo as escadas. Logo aparece a família completa, casal, crianças, vizinhos. Aparece um jovem que eu não conhecera. Demoro para entender: é o rapaz americano. Eu vira várias fotos dele, ainda com dois anos de idade. Era a primeira vez que voltava à Índia.
- Ele telefonou e disse que quer me conhecer. – me contara o homem semanas atrás – Daqui a alguns dias ele estará aqui.
Agora está.
Sinto-me privilegiada por testemunhar este encontro. Por encontrar, também.
Eles se arrumam para ir a um casamento e eu resolvo ir pra casa, antes que o sol se ponha. No caminho de volta, uma multidão de crianças me rodeia. A menina do sorriso grande lhes mostrara suas fotos, e elas também querem ser fotografadas. Tento. Mas elas se empurram tanto, que quase não consigo. Saio disparando aleatoriamente com minha câmera, até ir embora de vez.
Chego em casa e não entendo: como pode caber tanto dia em um dia? Ou tanta vida em um dia? Ou tanta vida em uma vida?
- Está vendo? – digo a mim mesma – É só questão de organização.
Mas não é. No fundo acredito mais na desordem e no descabimento: a matéria da vida. Esta, que não se mede por fatos. Acredito que dentro de cada acontecimento resida o não-acontecimento. E que ele seja a vida mesma. E é minha fé nas entrelinhas que faz com que eu siga a consoante-mantra:
- Ela é nada. Não tem som nenhum. – me explicara o senhor do restaurante.
Talvez seja por aí o caminho.
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