Durante muito tempo eu tive a péssima mania de não levar casaco para o cinema. E o pior não era passar frio – sempre passava -, mas pensar que eu sabia antes que sofreria com o ar condicionado e que, portanto, rejeitar o agasalho havia sido uma escolha consciente. Eu costumava dizer que não tinha empatia pelo meu eu futuro. Pois era por pura preguiça de carregar o casaco que meu eu presente escolhia ignorar o que sentiria mais à frente.
A falta de empatia pelo meu eu futuro já me colocou em situações inutilmente desagradáveis.
Mas hoje também
vejo que é ela quem me salva de uma vida inerte.
Eu sou aquela pessoa mala que empurra a outra para a
piscina. Mas no caso a outra sou eu: meu eu
futuro.
É bem verdade: se a gente pensa, não faz. Se a gente
tenta imaginar como se sentirá, se a gente se visualiza no desconforto e na
dor, a gente se poupa. Por isso é preciso uma dose de “não me importo”, para
que a gente simplesmente vá.
No dia em que cheguei nesta cidade eu me lembro de
olhar para o céu nublado e para as pessoas barulhentas e para o chão enlameado
e pensar: “Eu quis vir. Eu fiz esta escolha. Eu me coloquei aqui.”
É sempre assim: eu me coloco na situação e, uma vez
lá, sou obrigada a me virar.
Hoje vejo: estou me virando. E bem. E, já que estou
aqui, estou por inteiro, na dor e na graça. Seguindo meus caminhos e muitas
vezes me deixando levar. Já dissera Sartre que “o inferno são os outros”. Pois
bem: eu desço ao inferno e saio de lá melhor, porque volto pessoa inteira, com
meu amor, minha irritação, meu estranhamento e minha compreensão. Isso é paz:
não a tranqüilidade dos anjos, mas a permissão de ser inteira, com tudo o que
sou.
E cada dia na Índia me tem permitido ser tanto.
Sei que ontem acordei feliz e fui andar pelos ghats.
E minha caminhada, como sempre, parecia uma corrida de revezamento. Alguém
vinha conversar e ia me seguindo. Quando eu pedia para ficar sozinha, a pessoa
saía e logo outra grudava em mim. Depois outra, depois outra. Na última, eu, já
irritada, comecei a falar para o rapaz: “Por que é tão difícil andar sozinha?
Por que todo mundo tem que te seguir o tempo inteiro?” Ele me respondeu que, se
eu não queria conversar, não deveria olhar na cara das pessoas. E simplesmente
dizer que me deixassem em paz. “Mas eu até gosto de conversar, eu só não quero
que me sigam!” – respondi e saí sozinha, chegando, sem querer, ao maior ghat de cremação. Fiquei por um tempo
sentada, olhando os corpos serem queimados. Diante dessa imagem tão concreta da
impermanência das coisas, deixei a irritação passar.
Então andei mais um pouco, desta vez no sentido
contrário, sentei-me em uma murada qualquer e novamente o último rapaz
apareceu. Chamou-me para sentar à margem do rio.
- Estou bem aqui, obrigada.
- Lá você pode ficar sossegada, olhar o rio.
- Mas eu estou bem aqui.
- Como é seu nome?
- Lian. E o seu?
- Carlos.
- Carlos?
- É.
- Carlos?!
- Isso.
- Não me parece um nome indiano.
- Meu nome indiano é Babu. Carlos é o nome que um
canadense me deu. Venha! No se pasa nada!
Então pensei “por que não?” e fui. Carlos e seus
amigos tomavam banho de rio, só de cueca. Eles soltavam gritos e riam, como
crianças. Não. Como brasileiros. E passavam um óleo no corpo. E passavam o
mesmo óleo em seus cordões de meditação. E me contavam como o rio era sagrado e
não era sujo.
Até que resolvi me levantar e continuar a caminhada.
- Quando te vejo de novo? – ele perguntou, como
perguntam todos aqui, sem imaginar que é essa talvez a pergunta que, mesmo no
meu cotidiano, é a que mais detesto que me façam. Odeio que me comprometam sem
que eu me tenha comprometido.
- Nos vemos por aí. – respondi vaga, porém
verdadeiramente. A gente sempre esbarra em todo mundo de novo.
E, como começaria minha primeira aula de yoga na
cidade, deixei que me arrastassem para algumas lojas e comprei calças e
camisetas. Depois almocei em silêncio no lugar de sempre – já tenho um lugar de
sempre – e resolvi passar no hostel para me trocar. No caminho, porém,
encontrei uma cerimônia hinduísta só de mulheres. Elas falavam e cantavam.
Sentei-me ao lado e fiquei. Uma delas me ofereceu o bindi, aquela manchinha
vermelha que eles colocam no terceiro olho. Aceitei. E de alguma forma me senti
aceita, também. Saindo dali, encontrei o finlandês que eu conhecera no dia
anterior e conversamos até a hora da minha aula. Cheguei meia hora mais cedo,
pensando em descansar, esperar e folhear alguns livros de yoga, mas o professor
logo me colocou para fazer algumas respirações. E depois de duas horas de aula,
me avisou:
- Tem comida para você. Aqui sempre tem jantar para
os alunos depois da aula.
É quase impossível me oferecerem comida e eu não
ficar feliz. Mas naquele momento fiquei incrédula, pensando que tudo que eu não
queria era jantar às seis da tarde, depois de me movimentar por duas horas.
Jantei, porém, a comida que uma mocinha me trazia. Chorei muito por conta da
pimenta fortíssima, tentando fazer com que ninguém percebesse. Depois saí de lá
correndo e voltei para o hostel quase tonta.
Cheguei ao terraço ainda fraca e ali fiquei, olhando
a lua cheia no céu. E naquele momento me senti profundamente grata ao universo.
Grata por estar aqui. Grata por poder viver tudo isso, com todos os temperos
que a vida tem.
E sorri ao pensar que eu me coloquei ali e que agora
era obrigada a me virar. Obrigada a viver essa imensidão de vida, que é tudo,
menos inerte.
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