Não me lembro de nenhum primeiro dia de escola, nem quando eu era pequenininha, em que eu tive tanto medo como hoje.
Medo de quê?
São irracionais, os medos.
Nunca temi bichos, escuro, altura ou nada disso. Mas até
hoje penso que o professor ou o síndico vão me dar uma bronca. Trago isso da
infância: um certo pavor de hierarquias ou situações de opressão. Talvez por
isso eu tenha chegado à Banaras Hindu University um tanto assustada. Teria que
resolver questões burocráticas e seria, também, o primeiro encontro com o meu
orientador daqui.
Cheguei bem mais cedo do que combinara, pois assim eu
conseguiria me localizar. Fui ao centro de estudantes internacionais, onde o
moço me explicou tudo que eu precisava fazer para me afiliar formalmente à
Universidade. Burocracia. Dinheiro.
Muito dinheiro. Mais burocracia. Pra completar, ele entregou um papel que eu
deveria levar ao centro médico:
- Lá eles vão tirar uma amostra do seu sangue, para testar
se você não tem HIV.
Estou mais do que acostumada a fazer exames de sangue, sem
contar que, no período em que tive peso para isso, fazia doação regularmente,
de três em três meses. Mas hoje meu instinto disse:
- Meu sangue não!
Saí com o papel em mãos e acabei adiando a questão ao me dar
conta de que, se não queria me atrasar para a reunião, já deveria começar a
procurar a minha faculdade. Levei exatos cinqüenta minutos dando voltas pela
Universidade, até encontrar o Centro de Ciências Sociais. Subi as escadas e,
chegando ao último andar, perguntei pelo meu orientador.
- Ele desceu enquanto você subia. – me respondeu um
funcionário simpático, orientando que eu fosse ao prédio ao lado, onde ficava o
Centro de Exclusão Social e Políticas Inclusivas – do qual passo a fazer parte.
Fui. Encontrei-o em sua sala, grande e elegante.
- Eu te vi, mas não sabia se era você. – ele contou – Pelo
seu nome, eu não sabia se você era menina ou menino.
Conversamos sobre meu projeto. Como primeira orientação,
eles recomendou alguns livros e o melhor: que na primeira semana eu apenas
caminhasse pelos ghats, a observar. Coisa que tenho feito desde que cheguei. E
que eu cuidasse da minha saúde. E tomasse cuidado com estranhos. E me
alimentasse bem. E, caso a burocracia da Universidade me enchesse demais, que
eu apenas a ignorasse, pois ela não era necessária. Falou em voz alta:
“Ronaldo!” Quando não entendi, ele repetiu: “Ronaldo! É um jogador brasileiro,
né?” E deu risada.
Fui embora leve e perdida como sou, naquele lugar imenso.
Acabei chegando ao templo da Banaras Hindu University, mas não, não rezei. Apenas ri do quanto consigo ser boba, às
vezes. E me senti aliviada por, pelo menos hoje, não ter precisado dar meu sangue
por qualquer coisa. As melhores coisas da vida sempre me caíram do céu. E
suponho que ser feliz já seja em si uma oração.
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