domingo, 4 de janeiro de 2015

O segundo sol



Na minha primeira noite em Varanasi, um sonho se repete em minha mente. É uma imagem: um espaço retangular, visto de cima, como o galpão de uma fábrica. Tem uma máquina no canto, e eu me pergunto o que fazer com ela, o que fazer com aquele espaço, para transformá-lo em um lar.
E é esse meu primeiro susto: como transformar tudo isso em um lar? E minha primeira constatação: a diferença entre estar a passeio e estar em missão.
É verdade que eu já me havia dito que, se eu não pudesse seguir pelo caminho fácil, eu seguiria pelo difícil mesmo. E, obviamente, se eu procurasse conforto, eu não teria vindo justo para Varanasi. E eu vim preparada para quase tudo: menos para o frio. E eu, que só trouxe um casaquinho para não congelar no avião. O guia dizia que a melhor época para vir à Índia era de outubro a abril, logo após as monções. Em 2013 vim em outubro e desta vez coloquei na cabeça que outubro e janeiro eram a mesma coisa.
Mas quem me dirá que nada nunca é a mesma coisa?
Pela experiência anterior, eu vim avisada de que a azia do primeiro dia era muito mais devida ao cansaço da viagem do que ao impacto da comida. Eu vim avisada de que o trajeto não seria fácil e de que o taxi não poderia me deixar na porta do alojamento: ainda haveria um caminho meu a ser percorrido a pé, arrastando mala por becos literalmente lamacentos. Eu sabia tudo isso: que viria cansada, com o corpo quebrado de horas de avião. Pois vim conformada, arrastando minha mala, sendo abordada por vários indianos, que é como eles fazem. No fim, um garoto me acompanhou, conversando e indicando-me o caminho. Ao me deixar no hostel, disse que voltaria mais tarde para me trazer um chá. Tudo que eu não queria era que um estranho me trouxesse um chá. “Se você não estiver ocupada” – ele completou. “Hoje vou descansar” – eu disse. E ele entendeu, pois graçasadeus não voltou. Mas eu teria aceitado se, em vez de dizer que sou forte, ele tivesse se oferecido para carregar minha mala pelas escadarias.
Tenho tido alegrias estranhas. A de descobrir que meu vôo ou que meu hostel existem mesmo. Eu sei, é bobo, eu fiz reserva e tudo, mas é que às vezes me parece uma invenção da minha cabeça. Por isso fiquei muito feliz ao chegar e ao descobrir que tenho, de fato, um quarto reservado para mim. E é um quarto grande e frio. Quando entro, o piso ainda está molhado, então tiro as sandálias e sinto o chão gelado aos meus pés. Sento-me na cama e me pego pensando algumas coisas: que não trouxe capa de chuva ou roupa de dormir, porque contava com o calor da última vez. E o moço me conta que esta é a época mais fria do ano, mas que em um mês estará melhor. Eu fico triste, porque preciso de pouco, muito pouco para viver. Mas preciso de sol.
Saio para dar uma caminhada, tentando reter os caminhos, para conseguir voltar. Encontro o hostel onde fiquei no ano retrasado e que desta vez não tinha vaga. Faço uma reserva maluca para alguns dias mais à frente. Ando a esmo e, como sempre, os indianos me seguem, fazendo perguntas e falando sem parar. Mas hoje estou cansada, muito, e peço que me deixem andar a sós. Volto para meu quarto e durmo de quatro da tarde a oito da noite. Só me levanto porque preciso comer alguma coisa, menos por fome do que por precaução. Não há comércio aqui por perto e me lembro de que no dia seguinte terei que comprar algum biscoito ou coisa do tipo para manter no quarto.
Chego ao restaurante do hostel e peço uma panqueca e uma salada de frutas. Pergunto se a maçã na geladeira está à venda. O moço ri e responde que não. Um senhor me ouve gravando uma mensagem e pergunta se sou da América do Sul. Ele é de Delhi, mas morou quatro anos na Espanha e reconhece meu “meio espanhol”. Explico que estou ali para fazer minha pesquisa de doutorado. Ele engata um assunto, fala sobre religião e sobre como as pessoas estão a cada dia mais materialistas. Concordo.
Volto ao meu quarto. A energia elétrica acaba e volta, inúmeras vezes. Leio até cair no sono e, por fim, durmo de onze da noite até oito da manhã. Durante toda a noite, esse maldito galpão no meu sonho. E a questão: como fazer disso um lar?
Amanhece. Chove e faz frio.
Fiz questão de escolher um lugar às margens do Ganges, mas hoje não o vejo, coberto que está pela neblina branca.
Preciso fazer com que isso tudo caiba na palavra lar.
E preciso encontrar meu próprio sol.

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