Antes de vir pela primeira vez, eu já fazia esse exercício: “Faz de conta que estou na Índia”. Era minha prática de resistência e tolerância. Ao imaginar que estava em espaço alheio, eu me forçava a aceitar o difícil e o diferente. Se àquela época eu já fizesse ideia do que é Varanasi, certamente meu exercício seria assim: “Faz de conta que estou em Varanasi”. Então eu estaria preparada para tudo.
Comecei a encontrar os primeiros
brasileiros desta viagem. Hoje, um casal de dois homens com quem puxei assunto
no almoço. Simpáticos, espantaram-se quando contei que ficarei três meses aqui.
Os dois vieram para passar dois dias e já estão tontos do tanto.
- Boa sorte – me desejaram, ao
partir – nesse caos!
Ontem, no jantar, uma brasileira
que vive em uma cidade próxima de Mumbai, com sua mãe, que veio visitá-la. A
mãe é doce e suave. A garota, vigorosa e de uma inteligência – percebe-se na
primeira conversa – excepcional. Deu-me várias dicas, ensinou-me expressões
gestuais e verbais e me explicou muito sobre a cultura daqui. Vivendo na Índia
há um ano, demonstra conhecimento histórico e compreensão da cultura local de
quem vive no país há décadas. Mistura-se entre os nativos e encara a vida aqui
com abertura. Mas sem condescendência.
Durante a conversa, me confessou:
- Às vezes eu fico tão cansada de
tudo, a burocracia, a corrupção, o barulho... que eu preciso fingir que não
estou na Índia. Eu compro comida do McDonalds, me tranco no quarto com ar
condicionado e penso: “Faz de conta que NÃO estou na Índia!”
Achei engraçada a história e lhe
contei das tantas vezes em que fiz o contrário. E depois fiquei pensando que
tem hora para estar na Índia e tem hora para não estar na Índia. E que a gente
transita entre esses dois pontos, porque somos, afinal, humanos.
Por fim, antes de voltar ao meu
hostel, fiquei amiga de um senhor suíço: André. Falamos sobre religiões, sobre
o lado negro, yin yang, totalidade, tempo. Ele me mostrou seu caderno de
anotações, que usa para aprender híndi. E me contou que é a quinta vez que vem
ao país e que, sempre que vem, passa alguns meses. Desta vez está em Varanasi,
com tempo de sobra para viver, apenas, longe dos relógios.
É isso que André faz: estar na
Índia e não estar na Índia. Mais: estar em Varanasi e estar na Suíça.
Os extremos. Transitar entre
eles.
Pois hoje caminhei até o último
ghat, no ponto final da cidade. Dera-me conta de que nunca havia passado do
ghat das cremações, então resolvi seguir. Provavelmente o fato de estar
acompanhada de um amigo que encontrei no caminho mudava muita coisa (ser mulher
desacompanhada na Índia é tarefa duríssima), mas ainda assim senti diferença
brusca entre um e outro lado da cidade. É que, passado aquele ponto, chegamos a
um lugar onde os turistas nunca vão. E por isso tudo ali era mais delicado: já
não éramos seguidos ou abordados com a insistência e a agressividade com que
sempre fôramos. Olhados sim, muito. Pois estarmos ali era ainda mais inusitado.
Mas naquele momento pudemos apreciar a beleza e a simplicidade de uma Varanasi
subitamente suave.
Chegamos ao final da cidade, ao
ponto em que o Ganges seguia sozinho. E de repente estar no extremo de Varanasi
era não estar em Varanasi. Ou estar muito mais.
E percebi que, estando na Índia,
é preciso seguir até o fim, para alcançar o mundo inteiro. Está tudo lá.
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