quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

De estar na Índia...



Antes de vir pela primeira vez, eu já fazia esse exercício: “Faz de conta que estou na Índia”. Era minha prática de resistência e tolerância. Ao imaginar que estava em espaço alheio, eu me forçava a aceitar o difícil e o diferente. Se àquela época eu já fizesse ideia do que é Varanasi, certamente meu exercício seria assim: “Faz de conta que estou em Varanasi”. Então eu estaria preparada para tudo.

Comecei a encontrar os primeiros brasileiros desta viagem. Hoje, um casal de dois homens com quem puxei assunto no almoço. Simpáticos, espantaram-se quando contei que ficarei três meses aqui. Os dois vieram para passar dois dias e já estão tontos do tanto.

- Boa sorte – me desejaram, ao partir – nesse caos!

Ontem, no jantar, uma brasileira que vive em uma cidade próxima de Mumbai, com sua mãe, que veio visitá-la. A mãe é doce e suave. A garota, vigorosa e de uma inteligência – percebe-se na primeira conversa – excepcional. Deu-me várias dicas, ensinou-me expressões gestuais e verbais e me explicou muito sobre a cultura daqui. Vivendo na Índia há um ano, demonstra conhecimento histórico e compreensão da cultura local de quem vive no país há décadas. Mistura-se entre os nativos e encara a vida aqui com abertura. Mas sem condescendência.

Durante a conversa, me confessou:

- Às vezes eu fico tão cansada de tudo, a burocracia, a corrupção, o barulho... que eu preciso fingir que não estou na Índia. Eu compro comida do McDonalds, me tranco no quarto com ar condicionado e penso: “Faz de conta que NÃO estou na Índia!”

Achei engraçada a história e lhe contei das tantas vezes em que fiz o contrário. E depois fiquei pensando que tem hora para estar na Índia e tem hora para não estar na Índia. E que a gente transita entre esses dois pontos, porque somos, afinal, humanos.

Por fim, antes de voltar ao meu hostel, fiquei amiga de um senhor suíço: André. Falamos sobre religiões, sobre o lado negro, yin yang, totalidade, tempo. Ele me mostrou seu caderno de anotações, que usa para aprender híndi. E me contou que é a quinta vez que vem ao país e que, sempre que vem, passa alguns meses. Desta vez está em Varanasi, com tempo de sobra para viver, apenas, longe dos relógios.

É isso que André faz: estar na Índia e não estar na Índia. Mais: estar em Varanasi e estar na Suíça.
Os extremos. Transitar entre eles.

Pois hoje caminhei até o último ghat, no ponto final da cidade. Dera-me conta de que nunca havia passado do ghat das cremações, então resolvi seguir. Provavelmente o fato de estar acompanhada de um amigo que encontrei no caminho mudava muita coisa (ser mulher desacompanhada na Índia é tarefa duríssima), mas ainda assim senti diferença brusca entre um e outro lado da cidade. É que, passado aquele ponto, chegamos a um lugar onde os turistas nunca vão. E por isso tudo ali era mais delicado: já não éramos seguidos ou abordados com a insistência e a agressividade com que sempre fôramos. Olhados sim, muito. Pois estarmos ali era ainda mais inusitado. Mas naquele momento pudemos apreciar a beleza e a simplicidade de uma Varanasi subitamente suave.

Chegamos ao final da cidade, ao ponto em que o Ganges seguia sozinho. E de repente estar no extremo de Varanasi era não estar em Varanasi. Ou estar muito mais.


E percebi que, estando na Índia, é preciso seguir até o fim, para alcançar o mundo inteiro. Está tudo lá.

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