quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A enxerga



Estou convencida de que toda alma humana anseia pelo encontro com outras almas humanas.

Chama-se Amor.

Amor não é um valor a ser construído. Mas a realidade última, a ser enxergada.

Nosso corpo tem diversas marcas impressas, queiramos ou não. E as marcas podem ser pontes ou muros, a variar diante do contexto.

Sou mulher. Sou de classe média. Tenho traços chineses. Falo português.

Pontes ou muros.

Muro é aquilo que te impede de enxergar.

O Poder é um muro. Ou neblina.

Amor é realidade última, mas às vezes a neblina cobre tudo.

Levei meus últimos anos tentando suavizar o que o Poder me brutalizou. Ser mulher, ser filha de chineses no Brasil, ser de classe média. Estar envolvida em relações de poder o tempo inteiro. Levantar muros para não ser assediada na rua. Para não ser julgada pelas roupas. Pelo sorriso. Pelo olhar. Levantar muros.

Passei a vida sem olhar, porque não queria ser vista.

Não nessas marcas que meu corpo imprime e que imediatamente me inserem nas relações de poder. Queria ser vista, sim, em minha realidade última. No Amor.

Pois agora essa desbrutalização é um exercício constante de derrubar muros. E é, também, a aceitação cotidiana do conflito. E do risco. Olhar as pessoas na rua. Sorrir para elas. Reconhecê-las como outras pessoas humanas que podem ser enxergadas. E arriscar receber de volta um olhar de assédio - Poder -, não reconhecimento humano. Passo por isso diariamente.

E diariamente busco meios de lutar pelo menos contra esses dois poderes - o machismo e o racismo - sem, no entanto, oprimir. Nunca fui de aceitar provocações calada. Mas cada vez mais procuro argumentos que excluam os poderes que eu também tenho de opressão. Como o de classe. Como o de ser consumidora e poder recorrer ao patrão. É uma busca constante, essa de tentar me libertar sem aprisionar o outro.

Hoje o dia amanheceu completamente nublado. Fui caminhar pelos ghats, como tenho feito sempre. Fui caminhar com meu corpo, este com tantas marcas impressas. Fui caminhar como mulher. Fui caminhar como estrangeira. E o mais difícil na Índia tem sido isso: tentar não me brutalizar, quando meu corpo me insere em tantas relações de poder. O que se torna mais complicado, quando não compreendemos os códigos locais.

E, porque já estou perdida e não tenho o que perder, eu apenas testo. Falo com as pessoas na rua e às vezes não falo. Sem culpa. Mas sem perder de vista que não quero me brutalizar.

Pois era assim que eu andava, falando com alguns, ignorando outros. O dia todo nublado e eu tentando enxergar. Como ontem caminhara até um extremo dos ghats, hoje fui decidida a chegar à outra ponta.

No caminho, um senhor, entre muitos, puxou assunto:

- Lembra de mim?

- Não.

- Nós nos falamos dois dias atrás.

- Todo mundo falou comigo. Todo mundo.

E, como todos fazem, ele veio me seguindo e conversando. Sugeriu que eu fosse ao Monkey Temple e disse que, se eu continuasse naquele sentido, eu chegaria à village.

Dei de ombros e segui. E ele também me seguiu.

Naquele momento, eu poderia simplesmente dispensá-lo, como faço tantas vezes. Mas um pensamento me ocorreu: "E se eu sair correndo?" Não porque eu me sentisse ameaçada, nem porque, ali, meu incômodo fosse tão grande. Mas simplesmente porque me dei conta de que nunca havia bancado a louca na vida. Tantas vezes tive vontade de ter comportamentos absurdos e, por algum motivo, não os realizava.

Então saí correndo, sem maiores explicações ou reações. Corri sem olhar para trás, apenas pela beleza do absurdo. Corri até perder o fôlego.

E por um momento quem corria não era uma mulher, uma estrangeira ou uma consumidora, mas apenas um ser livre, suave e incrivelmente absurdo.

Coincidência ou não, a neblina foi embora.

E eu voltei a enxergar.

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