Eu estava no Dosa Cafe, esse
lugarzinho que elegi há mais de um ano. Na mesa ao lado sentou-se um finlandês,
de camiseta. Na outra mesa, um casal de canadenses. E, como eram só três mesas,
os dois holandeses que chegaram acabaram se sentando comigo. Não tinha
importância, porque àquela altura todos nós conversávamos animadamente. Era um
cubículo pequeno, o que tornava tudo mais aconchegante.
Eu sentia frio, mas o finlandês
(de camiseta, repito) dizia que aquela era a temperatura do verão no seu país.
Ele me contava que, em seu inverno, tinham apenas quatro horas diárias de luz,
mas que o verão eram três meses iluminados vinte e quatro horas por dia.
Eu não sei o que eu faria com
dias inteiros iluminados, mas me vejo assim: como uma errante desvairada.
Porque não consigo voltar para casa enquanto há luz do sol. E mesmo o horário
de verão do Rio de Janeiro me segura na rua até o último raio de luz, às oito
da noite.
E, como falávamos em sol e eu me
inundava com a ideia de luz infinita, eis que ela apareceu, como que por um
milagre. Não era forte, mas era a luz do sol. E era infinita.
Paguei minha conta e saí a andar
pelas ruas.
Preciso explicar que em Varanasi
(e na Índia, de uma maneira geral) é quase impossível andar sozinha pelas ruas.
Há sempre alguém te seguindo, convidando para olhar sua loja, para tomar chai,
perguntando de onde você vem, para onde você irá, quais são seus planos para
amanhã e depois e depois.
Mas, como o sol saíra, eu
conversei feliz com todo mundo que se aproximou. E aprendi apenas um segredo:
dizer à pessoa, honestamente e sem grosseria, que não gostava de ser seguida. E
pronto. Eles diziam “oh my god”, despediam-se e saíam, não sem antes me
convidar para o chai do dia seguinte.
Mas fazia sol. E eu estava
radiante. Então fui caminhar ao longo do Ganges e fazer uma das coisas que mais
gosto de fazer na vida: retratos. De pessoas, de cachorros, de bodes, de vacas
e de búfalos. Eu gosto de retratos porque para mim os seres são bonitos. E têm
uma textura e uma luz e uma nobreza. Pois eu fazia retratos e falava com as
pessoas. E constatava que, ao contrário do que dizem, o esporte nacional
indiano não é o rúgbi, mas a pipa, com seus meninos e seus homens compenetrados
na importante tarefa de manter um papel colorido no ar.
E eu fui andando pelos vários
ghats, ao longo do rio. Até que a luz caiu e resolvi voltar. E eu estava feliz
e radiante e comunicativa. Mas houve um momento em que um homem passou ao meu
lado. E ele falou grosseiramente ao meu ouvido: “very sexy”. Eu juro que
desmontei. Eu juro que quis chorar e de repente não queria mais falar com
ninguém. Porque faço questão de que não vejam menos do que minha nobreza. Não
de classe, não de escolaridade, não de aparência, nem nada disso. Mas minha
nobreza despida: essa de ser humano. Ou melhor: de ser vivo.
Levei alguns passos para me
reestruturar, neste percurso em que um homem qualquer te faz mergulhar da luz à
sombra. E aí você enxerga a sombra, reconhece-a, aceita-a, toma fôlego e sobe
de novo à luz. Foi o que fiz, ancorada subitamente por uma lua cheia e imensa
que aparecia no céu.
Caminhei hipnotizada pela lua
grande e amarela. E, ao chegar à altura do meu alojamento, resolvi procurar um
lugar para ficar por ali mesmo, sentindo a força do rio – nada menos do que o
Ganges – e do luar. Sentei-me em uma quina, não sei por quanto tempo. Sei que
repente havia pessoas ao meu lado. E que um barqueiro puxou assunto e ficamos
ali, conversando. E logo um outro moço entrou na conversa. Era um moço moreno,
jovem e bonito, que parecia saído de um filme de sessão da tarde. Seu nome era
Monu, e foi assim que ele se me apresentou:
- I’m a holy man.
Eu diria que tenho dificuldade
para aceitar sempre que alguém se apresenta como santo, sagrado, iluminado ou
coisa parecida. Mas não posso bem falar em “sempre”, porque acho que esta foi a
primeira vez em que isso me aconteceu. De qualquer jeito, nunca entendi muito
quando me falavam coisas do tipo: “ desde que o guru fulano de tal atingiu a
iluminação...”. Não penso em iluminação como graduação, assim como não a vejo
como elevação, mas sim expansão. E a gente se expande no mundo, não fora dele.
Mas o fato é que ali estava Monu,
e ele me parecia mesmo sagrado. Não da sacralidade dos especiais, na qual não
acredito, mas da sacralidade de todos os seres. E havia uma lua linda no céu e,
naquele momento, eu me deixei ser conduzida pela conversa.
- Este é meu guru,
não-sei-o-quê-Baba (ou
Baba-não-sei-o-quê) – e apontou para o homem sentado ao seu lado.
O guru. Acho que a melhor maneira
de visualizá-lo é pensar no Chico César, o cantor. Um Chico César afetado,
enrolado em um tecido laranja, com um enorme turbante na cabeça. Durante alguns
momentos da conversa, o guru me olhou seriamente com um olhar lateral. Nos
outros momentos, ele apenas tossia seco. Quando falava, provavelmente em híndi,
tinha uma voz rasgada de quem fumou a vida inteira. Falou alguma coisa, que
Monu traduziu:
- Ele disse que amanhã vai parar
de fumar.
E Monu me perguntou duas vezes se
eu não fumava. Eu disse que não. Ele me olhou por mais tempo. Eu repeti que não
fumava. Nada.
Ele me falou de uma montanha por
perto e também da cidadezinha de Bodh Gaya. Eu lhe disse que queria conhecer
ambas. Ele falou que me levaria. Perguntou se eu meditava e se eu praticava
yoga. Um pouco, sim, respondi. Ele disse que poderíamos praticar juntos e que
me ensinaria várias posturas. E mostrou seu tórax e disse que não precisava de
cobertores, pois se aquecia com a respiração de yoga: “eu estou conectado” –
explicou. E se colocou na postura de lótus e se equilibrou sobre os dois
braços.
E quando resolvi me levantar para
ir embora, ele perguntou quando iríamos juntos para a montanha. Expliquei que
acabara de chegar e que vim para estudar, então não sabia ainda quando teria
tempo para passear. Então ele me olhou muito sério e questionou:
- Qual é seu problema?
- Eu não tenho problema.
- É que eu estou vendo aqui – e
apontou para a região do meu cenho – e não vejo luz.
- Você está me olhando e não vê
luz?
- É.
Por um momento eu tive dó. Pois
bem sei que até um ser como eu, em minha infinita pequeneza, tem alguma luz. E
até eu vejo que todos os seres são nobres e sagrados.
Antes de eu ir embora, ele ainda
me perguntou:
- Você não vai deixar nenhuma
contribuição para o Baba?
- Hoje não.
E fui embora banhada de luz do
sol e da lua. Pena que ele não pôde enxergar.