domingo, 11 de janeiro de 2015

Todos os caminhos



Então eu saí decidida a fazer um caminho diferente. Em vez de ir pelos ghats, chegaria ao último deles pela estrada.  Não sou boa de orientação, mas parecia simples: a estrada é paralela ao rio.

Segui.

Passei por vários carrinhos de comida de rua e fiquei maravilhada pelo que pareciam infinitas combinações de pé-de-moleque. Amendoim caramelizado. Arroz caramelizado. Gergelim caramelizado. E vários outros grãos e castanhas que não conheço. Passei por vira-latas magrelos, como são todos daqui. Os mais lindos cachorros do mundo. E sempre perto de alguma brasa, para se aquecer. Brasa sempre. Fogueiras. Fumaça de todos os tipos, para todo lado. Os indianos estão sempre queimando alguma coisa. Acho que passei pelo bairro muçulmano, porque de repente eram tantos com aquela roupa típica, com o chapeuzinho. E as mulheres de burca. E eu passei pelos homens escovando vacas e por um grupo de crianças que corriam.

Quando me dei conta, estava completamente perdida. Tentei pedir informação a umas duas pessoas, mas nenhuma delas entendia inglês.

Dei-me por vencida e achei que o mais sensato seria voltar pelo caminho de onde vim – se eu lembrasse.  Por precaução, sempre evito fazer muitas curvas, quando não conheço o lugar.

Mas foi neste instante em que apareceu uma procissão de homens carregando um defunto. O que provavelmente significava que eles iriam ao ghat de cremação. Ou seja: o rio. Resolvi segui-los. Eles andavam rápido, gritando coisas e jogando pétalas de rosas sobre o corpo.

Em certo momento pararam. Colocaram o corpo – envolto por tecidos coloridos vibrantes – sobre o chão. Estariam descansando? Sei que notaram minha presença inconveniente ali, um cochichou com o outro e todos me olharam. É verdade que eu não deveria segui-los, essas procissões são só de homens e eu, afinal, nem conheço o defunto.

Mas eu só queria chegar aos ghats – como explicar-lhes?

Não foi preciso. Eles pegaram o corpo e continuaram a procissão.

E eu continuei a segui-los, tentando desviar dos carros e pessoas e motos e bicicletas, em passos apressados, até perdê-los de vista.

Sim, eu os perdi. E me senti ridiculamente imbecil por conseguir perder um grupo de homens carregando um defunto em tecidos vibrantes.

Então tive que voltar tudo. Andei bastante, no sentido oposto, até conseguir me localizar. Como àquela altura eu já estava esfomeada, resolvi que iria ao restaurante de sempre e só depois recomeçaria meu caminho rumo ao Asi Ghat, meu destino original.

Cheguei ao restaurante, que estava cheio, e acabei compartilhando mesa com um casal de israelenses. Começamos a conversar e eu descobri que eles moravam exatamente aonde eu queria chegar.

- Você quer nos acompanhar, depois do almoço?

- Claro.

E assim a vida tem me guiado, pelos caminhos mais longos e mais certos.


sábado, 10 de janeiro de 2015

Dia de flores


Hoje finalmente saí decidida a comprar um agasalho.
Fui meio correndo, meio saltitando, porque estava alegre. Escolhi um poncho enorme e azul. Dizem que aqui você tem que pechinchar em tudo, mas quando vejo um poncho pela metade do preço que pago para almoçar em uma esquina qualquer a cada dia da minha vida no Rio de Janeiro, não consigo. De qualquer jeito, acabei ganhando um desconto não planejado, porque não carregava dinheiro suficiente na minha carteira. Depois, com as moedas que tinha, comprei um cordão de flores de uma senhora na rua. Coloquei-o em torno do pescoço e fui passear.
As pessoas me perguntavam:
- Você vai ao templo?
- Não, não. Vou só andar.
- Belas flores!
E eram.
E era uma tolice também. Essas flores são vendidas como oferendas aos deuses, não para servir de colar a uma moça que, porque estava alegre, decidiu andar florida.
Mas eram flores lindas e amarelas, que, ao final do dia, entreguei ao rio.
Se há deuses, certamente as receberam.
E ainda deixaram algumas ali, perdidas no meu cabelo.

Difícil Maravilhoso



Às vezes fico me perguntando se um dia as pessoas daqui vão se acostumar comigo. Se vão entender que não estou como turista. Se vão parar de me olhar, de me seguir, de tentar vender coisas.

Às vezes fico me perguntando se um dia vou me acostumar com elas. Se vou parar de me irritar com o fato de ser seguida. Se vou entender o que se passa, quando me olham. Se vou deixar de achá-las incrivelmente belas e fantásticas e misteriosas.

Sentei-me para tomar o café da manhã e estudar no computador. Eu tentava ler um texto, quando um moço se aproximou e veio espiar, não por trás, mas pela frente do meu ombro, o que eu lia. Quando olhei feio, ele perguntou se a internet estava funcionando direito.

- Está funcionando. Mas agora não estou usando a internet. Estou estudando. – frisei o “estudando” para deixar claro que não queria ser incomodada.

Então ele se posicionou à minha frente. Não digo que começou a me rodear, porque não tinha por onde. Eu tenho essa mania de me sentar a um canto onde eu possa ter visão de todo o espaço, sem ser vista por trás. Mas ele ficou assim, bem à minha frente, andando de um lado para o outro a me observar. Quando dei uma encarada, ele se desculpou e foi para a porta. E continuou me olhando.
A essa altura, eu estava com os olhos fixos na tela do computador, mas obviamente não conseguia ler. Quanto tempo se passou? Dez minutos. Meia hora. Uma vida. Não sei. Sei que a certa altura ele finalmente foi embora.

Terá ele se acostumado comigo?

Mais tarde, quando saí à rua, estava daquele jeito perdida, sem saber quem eu deixava se aproximar. As crianças, sempre deixo. E sempre me contenho para não apertá-las e espremê-las, quando se aproximam tentando vender alguma coisa. As mulheres, pouquíssimas se aproximam. Na maioria das vezes para pedir esmolas. Mas nunca, jamais, para puxar assunto. Às vezes observam de longe. Eu sorrio e digo “namastê”. Elas sorriem de volta e balançam a cabeça, desse jeito que os indianos fazem. E os homens se aproximam sempre: “Eu falei com você ontem. Anteontem. Antes de antes de ontem.” Todos já falaram comigo. Cada um diz para tomar cuidado com os outros. Mas quem são os outros? Eu nunca sei.

Sei que outro dia, quando ignorei um homem, ele me provocou:

- Eu te vi caminhando com um moço ontem. Você só gosta de brancos, né? Não gosta de homens indianos.

Aquilo me tirou do sério e, quando vi, estávamos os dois discutindo, de dedos levantados e rodeados por uma multidão de platéia.

- Ele te colocou em um “mind game”. – me explicou Babu – Por aqui passam muitos turistas o tempo inteiro. Quando uns vão embora, outros vêm. E eles têm que arranjar um jeito de chamar sua atenção, arranjar argumentos que te façam parar.

Babu, não o do dia anterior, mas o Babu de hoje, ensinou-me um pouco de híndi. Algumas expressões úteis e, o mais importante, os números. Aprender híndi faz parte do meu plano de me misturar. Babu disse se lembrar de mim do ano retrasado. Eu duvidei.

- Perto do Alka Hotel. Te vi andando acompanhada. Eu trabalhava na loja do meu tio e falei para você vir olhar as pashminas. Você disse que iria outro dia. Você ficou menos tempo, três dias talvez. Eu falava com você todos os dias, mas você foi embora e nunca veio à loja.

Era incrível, mas ele realmente se lembrava de mim. Perto do Alka Hotel.

Não sei se um dia as pessoas daqui vão se acostumar comigo.

Eu sei que as acho fascinantes e belas e misteriosas.


Espero não me acostumar com elas. 

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A enxerga



Estou convencida de que toda alma humana anseia pelo encontro com outras almas humanas.

Chama-se Amor.

Amor não é um valor a ser construído. Mas a realidade última, a ser enxergada.

Nosso corpo tem diversas marcas impressas, queiramos ou não. E as marcas podem ser pontes ou muros, a variar diante do contexto.

Sou mulher. Sou de classe média. Tenho traços chineses. Falo português.

Pontes ou muros.

Muro é aquilo que te impede de enxergar.

O Poder é um muro. Ou neblina.

Amor é realidade última, mas às vezes a neblina cobre tudo.

Levei meus últimos anos tentando suavizar o que o Poder me brutalizou. Ser mulher, ser filha de chineses no Brasil, ser de classe média. Estar envolvida em relações de poder o tempo inteiro. Levantar muros para não ser assediada na rua. Para não ser julgada pelas roupas. Pelo sorriso. Pelo olhar. Levantar muros.

Passei a vida sem olhar, porque não queria ser vista.

Não nessas marcas que meu corpo imprime e que imediatamente me inserem nas relações de poder. Queria ser vista, sim, em minha realidade última. No Amor.

Pois agora essa desbrutalização é um exercício constante de derrubar muros. E é, também, a aceitação cotidiana do conflito. E do risco. Olhar as pessoas na rua. Sorrir para elas. Reconhecê-las como outras pessoas humanas que podem ser enxergadas. E arriscar receber de volta um olhar de assédio - Poder -, não reconhecimento humano. Passo por isso diariamente.

E diariamente busco meios de lutar pelo menos contra esses dois poderes - o machismo e o racismo - sem, no entanto, oprimir. Nunca fui de aceitar provocações calada. Mas cada vez mais procuro argumentos que excluam os poderes que eu também tenho de opressão. Como o de classe. Como o de ser consumidora e poder recorrer ao patrão. É uma busca constante, essa de tentar me libertar sem aprisionar o outro.

Hoje o dia amanheceu completamente nublado. Fui caminhar pelos ghats, como tenho feito sempre. Fui caminhar com meu corpo, este com tantas marcas impressas. Fui caminhar como mulher. Fui caminhar como estrangeira. E o mais difícil na Índia tem sido isso: tentar não me brutalizar, quando meu corpo me insere em tantas relações de poder. O que se torna mais complicado, quando não compreendemos os códigos locais.

E, porque já estou perdida e não tenho o que perder, eu apenas testo. Falo com as pessoas na rua e às vezes não falo. Sem culpa. Mas sem perder de vista que não quero me brutalizar.

Pois era assim que eu andava, falando com alguns, ignorando outros. O dia todo nublado e eu tentando enxergar. Como ontem caminhara até um extremo dos ghats, hoje fui decidida a chegar à outra ponta.

No caminho, um senhor, entre muitos, puxou assunto:

- Lembra de mim?

- Não.

- Nós nos falamos dois dias atrás.

- Todo mundo falou comigo. Todo mundo.

E, como todos fazem, ele veio me seguindo e conversando. Sugeriu que eu fosse ao Monkey Temple e disse que, se eu continuasse naquele sentido, eu chegaria à village.

Dei de ombros e segui. E ele também me seguiu.

Naquele momento, eu poderia simplesmente dispensá-lo, como faço tantas vezes. Mas um pensamento me ocorreu: "E se eu sair correndo?" Não porque eu me sentisse ameaçada, nem porque, ali, meu incômodo fosse tão grande. Mas simplesmente porque me dei conta de que nunca havia bancado a louca na vida. Tantas vezes tive vontade de ter comportamentos absurdos e, por algum motivo, não os realizava.

Então saí correndo, sem maiores explicações ou reações. Corri sem olhar para trás, apenas pela beleza do absurdo. Corri até perder o fôlego.

E por um momento quem corria não era uma mulher, uma estrangeira ou uma consumidora, mas apenas um ser livre, suave e incrivelmente absurdo.

Coincidência ou não, a neblina foi embora.

E eu voltei a enxergar.

De estar na Índia...



Antes de vir pela primeira vez, eu já fazia esse exercício: “Faz de conta que estou na Índia”. Era minha prática de resistência e tolerância. Ao imaginar que estava em espaço alheio, eu me forçava a aceitar o difícil e o diferente. Se àquela época eu já fizesse ideia do que é Varanasi, certamente meu exercício seria assim: “Faz de conta que estou em Varanasi”. Então eu estaria preparada para tudo.

Comecei a encontrar os primeiros brasileiros desta viagem. Hoje, um casal de dois homens com quem puxei assunto no almoço. Simpáticos, espantaram-se quando contei que ficarei três meses aqui. Os dois vieram para passar dois dias e já estão tontos do tanto.

- Boa sorte – me desejaram, ao partir – nesse caos!

Ontem, no jantar, uma brasileira que vive em uma cidade próxima de Mumbai, com sua mãe, que veio visitá-la. A mãe é doce e suave. A garota, vigorosa e de uma inteligência – percebe-se na primeira conversa – excepcional. Deu-me várias dicas, ensinou-me expressões gestuais e verbais e me explicou muito sobre a cultura daqui. Vivendo na Índia há um ano, demonstra conhecimento histórico e compreensão da cultura local de quem vive no país há décadas. Mistura-se entre os nativos e encara a vida aqui com abertura. Mas sem condescendência.

Durante a conversa, me confessou:

- Às vezes eu fico tão cansada de tudo, a burocracia, a corrupção, o barulho... que eu preciso fingir que não estou na Índia. Eu compro comida do McDonalds, me tranco no quarto com ar condicionado e penso: “Faz de conta que NÃO estou na Índia!”

Achei engraçada a história e lhe contei das tantas vezes em que fiz o contrário. E depois fiquei pensando que tem hora para estar na Índia e tem hora para não estar na Índia. E que a gente transita entre esses dois pontos, porque somos, afinal, humanos.

Por fim, antes de voltar ao meu hostel, fiquei amiga de um senhor suíço: André. Falamos sobre religiões, sobre o lado negro, yin yang, totalidade, tempo. Ele me mostrou seu caderno de anotações, que usa para aprender híndi. E me contou que é a quinta vez que vem ao país e que, sempre que vem, passa alguns meses. Desta vez está em Varanasi, com tempo de sobra para viver, apenas, longe dos relógios.

É isso que André faz: estar na Índia e não estar na Índia. Mais: estar em Varanasi e estar na Suíça.
Os extremos. Transitar entre eles.

Pois hoje caminhei até o último ghat, no ponto final da cidade. Dera-me conta de que nunca havia passado do ghat das cremações, então resolvi seguir. Provavelmente o fato de estar acompanhada de um amigo que encontrei no caminho mudava muita coisa (ser mulher desacompanhada na Índia é tarefa duríssima), mas ainda assim senti diferença brusca entre um e outro lado da cidade. É que, passado aquele ponto, chegamos a um lugar onde os turistas nunca vão. E por isso tudo ali era mais delicado: já não éramos seguidos ou abordados com a insistência e a agressividade com que sempre fôramos. Olhados sim, muito. Pois estarmos ali era ainda mais inusitado. Mas naquele momento pudemos apreciar a beleza e a simplicidade de uma Varanasi subitamente suave.

Chegamos ao final da cidade, ao ponto em que o Ganges seguia sozinho. E de repente estar no extremo de Varanasi era não estar em Varanasi. Ou estar muito mais.


E percebi que, estando na Índia, é preciso seguir até o fim, para alcançar o mundo inteiro. Está tudo lá.

O sangue



Não me lembro de nenhum primeiro dia de escola, nem quando eu era pequenininha, em que eu tive tanto medo como hoje.

Medo de quê?

São irracionais, os medos.

Nunca temi bichos, escuro, altura ou nada disso. Mas até hoje penso que o professor ou o síndico vão me dar uma bronca. Trago isso da infância: um certo pavor de hierarquias ou situações de opressão. Talvez por isso eu tenha chegado à Banaras Hindu University um tanto assustada. Teria que resolver questões burocráticas e seria, também, o primeiro encontro com o meu orientador daqui.

Cheguei bem mais cedo do que combinara, pois assim eu conseguiria me localizar. Fui ao centro de estudantes internacionais, onde o moço me explicou tudo que eu precisava fazer para me afiliar formalmente à Universidade.  Burocracia. Dinheiro. Muito dinheiro. Mais burocracia. Pra completar, ele entregou um papel que eu deveria levar ao centro médico:

- Lá eles vão tirar uma amostra do seu sangue, para testar se você não tem HIV.

Estou mais do que acostumada a fazer exames de sangue, sem contar que, no período em que tive peso para isso, fazia doação regularmente, de três em três meses. Mas hoje meu instinto disse:

- Meu sangue não!

Saí com o papel em mãos e acabei adiando a questão ao me dar conta de que, se não queria me atrasar para a reunião, já deveria começar a procurar a minha faculdade. Levei exatos cinqüenta minutos dando voltas pela Universidade, até encontrar o Centro de Ciências Sociais. Subi as escadas e, chegando ao último andar, perguntei pelo meu orientador.

- Ele desceu enquanto você subia. – me respondeu um funcionário simpático, orientando que eu fosse ao prédio ao lado, onde ficava o Centro de Exclusão Social e Políticas Inclusivas – do qual passo a fazer parte.

Fui. Encontrei-o em sua sala, grande e elegante.

- Eu te vi, mas não sabia se era você. – ele contou – Pelo seu nome, eu não sabia se você era menina ou menino.

Conversamos sobre meu projeto. Como primeira orientação, eles recomendou alguns livros e o melhor: que na primeira semana eu apenas caminhasse pelos ghats, a observar. Coisa que tenho feito desde que cheguei. E que eu cuidasse da minha saúde. E tomasse cuidado com estranhos. E me alimentasse bem. E, caso a burocracia da Universidade me enchesse demais, que eu apenas a ignorasse, pois ela não era necessária. Falou em voz alta: “Ronaldo!” Quando não entendi, ele repetiu: “Ronaldo! É um jogador brasileiro, né?” E deu risada.


Fui embora leve e perdida como sou, naquele lugar imenso. Acabei chegando ao templo da Banaras Hindu University, mas não, não rezei.  Apenas ri do quanto consigo ser boba, às vezes. E me senti aliviada por, pelo menos hoje, não ter precisado dar meu sangue por qualquer coisa. As melhores coisas da vida sempre me caíram do céu. E suponho que ser feliz já seja em si uma oração.

"Viver sem tempos mortos"



Durante muito tempo eu tive a péssima mania de não levar casaco para o cinema. E o pior não era passar frio – sempre passava -, mas pensar que eu sabia antes que sofreria com o ar condicionado e que, portanto, rejeitar o agasalho havia sido uma escolha consciente. Eu costumava dizer que não tinha empatia pelo meu eu futuro. Pois era por pura preguiça de carregar o casaco que meu eu presente escolhia ignorar o que sentiria mais à frente.

A falta de empatia pelo meu eu futuro já me colocou em situações inutilmente desagradáveis.

 Mas hoje também vejo que é ela quem me salva de uma vida inerte.

Eu sou aquela pessoa mala que empurra a outra para a piscina. Mas no caso a outra sou eu: meu eu futuro.

É bem verdade: se a gente pensa, não faz. Se a gente tenta imaginar como se sentirá, se a gente se visualiza no desconforto e na dor, a gente se poupa. Por isso é preciso uma dose de “não me importo”, para que a gente simplesmente vá.

No dia em que cheguei nesta cidade eu me lembro de olhar para o céu nublado e para as pessoas barulhentas e para o chão enlameado e pensar: “Eu quis vir. Eu fiz esta escolha. Eu me coloquei aqui.”

É sempre assim: eu me coloco na situação e, uma vez lá, sou obrigada a me virar.

Hoje vejo: estou me virando. E bem. E, já que estou aqui, estou por inteiro, na dor e na graça. Seguindo meus caminhos e muitas vezes me deixando levar. Já dissera Sartre que “o inferno são os outros”. Pois bem: eu desço ao inferno e saio de lá melhor, porque volto pessoa inteira, com meu amor, minha irritação, meu estranhamento e minha compreensão. Isso é paz: não a tranqüilidade dos anjos, mas a permissão de ser inteira, com tudo o que sou.

E cada dia na Índia me tem permitido ser tanto.

Sei que ontem acordei feliz e fui andar pelos ghats. E minha caminhada, como sempre, parecia uma corrida de revezamento. Alguém vinha conversar e ia me seguindo. Quando eu pedia para ficar sozinha, a pessoa saía e logo outra grudava em mim. Depois outra, depois outra. Na última, eu, já irritada, comecei a falar para o rapaz: “Por que é tão difícil andar sozinha? Por que todo mundo tem que te seguir o tempo inteiro?” Ele me respondeu que, se eu não queria conversar, não deveria olhar na cara das pessoas. E simplesmente dizer que me deixassem em paz. “Mas eu até gosto de conversar, eu só não quero que me sigam!” – respondi e saí sozinha, chegando, sem querer, ao maior ghat de cremação. Fiquei por um tempo sentada, olhando os corpos serem queimados. Diante dessa imagem tão concreta da impermanência das coisas, deixei a irritação passar.

Então andei mais um pouco, desta vez no sentido contrário, sentei-me em uma murada qualquer e novamente o último rapaz apareceu. Chamou-me para sentar à margem do rio.

- Estou bem aqui, obrigada.

- Lá você pode ficar sossegada, olhar o rio.

- Mas eu estou bem aqui.

- Como é seu nome?

- Lian. E o seu?

- Carlos.

- Carlos?

- É.

- Carlos?!

- Isso.

- Não me parece um nome indiano.

- Meu nome indiano é Babu. Carlos é o nome que um canadense me deu. Venha! No se pasa nada!

Então pensei “por que não?” e fui. Carlos e seus amigos tomavam banho de rio, só de cueca. Eles soltavam gritos e riam, como crianças. Não. Como brasileiros. E passavam um óleo no corpo. E passavam o mesmo óleo em seus cordões de meditação. E me contavam como o rio era sagrado e não era sujo.

Até que resolvi me levantar e continuar a caminhada.

- Quando te vejo de novo? – ele perguntou, como perguntam todos aqui, sem imaginar que é essa talvez a pergunta que, mesmo no meu cotidiano, é a que mais detesto que me façam. Odeio que me comprometam sem que eu me tenha comprometido.

- Nos vemos por aí. – respondi vaga, porém verdadeiramente. A gente sempre esbarra em todo mundo de novo.

E, como começaria minha primeira aula de yoga na cidade, deixei que me arrastassem para algumas lojas e comprei calças e camisetas. Depois almocei em silêncio no lugar de sempre – já tenho um lugar de sempre – e resolvi passar no hostel para me trocar. No caminho, porém, encontrei uma cerimônia hinduísta só de mulheres. Elas falavam e cantavam. Sentei-me ao lado e fiquei. Uma delas me ofereceu o bindi, aquela manchinha vermelha que eles colocam no terceiro olho. Aceitei. E de alguma forma me senti aceita, também. Saindo dali, encontrei o finlandês que eu conhecera no dia anterior e conversamos até a hora da minha aula. Cheguei meia hora mais cedo, pensando em descansar, esperar e folhear alguns livros de yoga, mas o professor logo me colocou para fazer algumas respirações. E depois de duas horas de aula, me avisou:

- Tem comida para você. Aqui sempre tem jantar para os alunos depois da aula.

É quase impossível me oferecerem comida e eu não ficar feliz. Mas naquele momento fiquei incrédula, pensando que tudo que eu não queria era jantar às seis da tarde, depois de me movimentar por duas horas. Jantei, porém, a comida que uma mocinha me trazia. Chorei muito por conta da pimenta fortíssima, tentando fazer com que ninguém percebesse. Depois saí de lá correndo e voltei para o hostel quase tonta.

Cheguei ao terraço ainda fraca e ali fiquei, olhando a lua cheia no céu. E naquele momento me senti profundamente grata ao universo. Grata por estar aqui. Grata por poder viver tudo isso, com todos os temperos que a vida tem.

E sorri ao pensar que eu me coloquei ali e que agora era obrigada a me virar. Obrigada a viver essa imensidão de vida, que é tudo, menos inerte.


A luz



Eu estava no Dosa Cafe, esse lugarzinho que elegi há mais de um ano. Na mesa ao lado sentou-se um finlandês, de camiseta. Na outra mesa, um casal de canadenses. E, como eram só três mesas, os dois holandeses que chegaram acabaram se sentando comigo. Não tinha importância, porque àquela altura todos nós conversávamos animadamente. Era um cubículo pequeno, o que tornava tudo mais aconchegante.

Eu sentia frio, mas o finlandês (de camiseta, repito) dizia que aquela era a temperatura do verão no seu país. Ele me contava que, em seu inverno, tinham apenas quatro horas diárias de luz, mas que o verão eram três meses iluminados vinte e quatro horas por dia.

Eu não sei o que eu faria com dias inteiros iluminados, mas me vejo assim: como uma errante desvairada. Porque não consigo voltar para casa enquanto há luz do sol. E mesmo o horário de verão do Rio de Janeiro me segura na rua até o último raio de luz, às oito da noite.

E, como falávamos em sol e eu me inundava com a ideia de luz infinita, eis que ela apareceu, como que por um milagre. Não era forte, mas era a luz do sol. E era infinita.

Paguei minha conta e saí a andar pelas ruas.

Preciso explicar que em Varanasi (e na Índia, de uma maneira geral) é quase impossível andar sozinha pelas ruas. Há sempre alguém te seguindo, convidando para olhar sua loja, para tomar chai, perguntando de onde você vem, para onde você irá, quais são seus planos para amanhã e depois e depois.

Mas, como o sol saíra, eu conversei feliz com todo mundo que se aproximou. E aprendi apenas um segredo: dizer à pessoa, honestamente e sem grosseria, que não gostava de ser seguida. E pronto. Eles diziam “oh my god”, despediam-se e saíam, não sem antes me convidar para o chai do dia seguinte.

Mas fazia sol. E eu estava radiante. Então fui caminhar ao longo do Ganges e fazer uma das coisas que mais gosto de fazer na vida: retratos. De pessoas, de cachorros, de bodes, de vacas e de búfalos. Eu gosto de retratos porque para mim os seres são bonitos. E têm uma textura e uma luz e uma nobreza. Pois eu fazia retratos e falava com as pessoas. E constatava que, ao contrário do que dizem, o esporte nacional indiano não é o rúgbi, mas a pipa, com seus meninos e seus homens compenetrados na importante tarefa de manter um papel colorido no ar.

E eu fui andando pelos vários ghats, ao longo do rio. Até que a luz caiu e resolvi voltar. E eu estava feliz e radiante e comunicativa. Mas houve um momento em que um homem passou ao meu lado. E ele falou grosseiramente ao meu ouvido: “very sexy”. Eu juro que desmontei. Eu juro que quis chorar e de repente não queria mais falar com ninguém. Porque faço questão de que não vejam menos do que minha nobreza. Não de classe, não de escolaridade, não de aparência, nem nada disso. Mas minha nobreza despida: essa de ser humano. Ou melhor: de ser vivo.

Levei alguns passos para me reestruturar, neste percurso em que um homem qualquer te faz mergulhar da luz à sombra. E aí você enxerga a sombra, reconhece-a, aceita-a, toma fôlego e sobe de novo à luz. Foi o que fiz, ancorada subitamente por uma lua cheia e imensa que aparecia no céu.

Caminhei hipnotizada pela lua grande e amarela. E, ao chegar à altura do meu alojamento, resolvi procurar um lugar para ficar por ali mesmo, sentindo a força do rio – nada menos do que o Ganges – e do luar. Sentei-me em uma quina, não sei por quanto tempo. Sei que repente havia pessoas ao meu lado. E que um barqueiro puxou assunto e ficamos ali, conversando. E logo um outro moço entrou na conversa. Era um moço moreno, jovem e bonito, que parecia saído de um filme de sessão da tarde. Seu nome era Monu, e foi assim que ele se me apresentou:

- I’m a holy man.

Eu diria que tenho dificuldade para aceitar sempre que alguém se apresenta como santo, sagrado, iluminado ou coisa parecida. Mas não posso bem falar em “sempre”, porque acho que esta foi a primeira vez em que isso me aconteceu. De qualquer jeito, nunca entendi muito quando me falavam coisas do tipo: “ desde que o guru fulano de tal atingiu a iluminação...”. Não penso em iluminação como graduação, assim como não a vejo como elevação, mas sim expansão. E a gente se expande no mundo, não fora dele.

Mas o fato é que ali estava Monu, e ele me parecia mesmo sagrado. Não da sacralidade dos especiais, na qual não acredito, mas da sacralidade de todos os seres. E havia uma lua linda no céu e, naquele momento, eu me deixei ser conduzida pela conversa.

- Este é meu guru, não-sei-o-quê-Baba  (ou Baba-não-sei-o-quê) – e apontou para o homem sentado ao seu lado.

O guru. Acho que a melhor maneira de visualizá-lo é pensar no Chico César, o cantor. Um Chico César afetado, enrolado em um tecido laranja, com um enorme turbante na cabeça. Durante alguns momentos da conversa, o guru me olhou seriamente com um olhar lateral. Nos outros momentos, ele apenas tossia seco. Quando falava, provavelmente em híndi, tinha uma voz rasgada de quem fumou a vida inteira. Falou alguma coisa, que Monu traduziu:

- Ele disse que amanhã vai parar de fumar.

E Monu me perguntou duas vezes se eu não fumava. Eu disse que não. Ele me olhou por mais tempo. Eu repeti que não fumava. Nada.

Ele me falou de uma montanha por perto e também da cidadezinha de Bodh Gaya. Eu lhe disse que queria conhecer ambas. Ele falou que me levaria. Perguntou se eu meditava e se eu praticava yoga. Um pouco, sim, respondi. Ele disse que poderíamos praticar juntos e que me ensinaria várias posturas. E mostrou seu tórax e disse que não precisava de cobertores, pois se aquecia com a respiração de yoga: “eu estou conectado” – explicou. E se colocou na postura de lótus e se equilibrou sobre os dois braços.

E quando resolvi me levantar para ir embora, ele perguntou quando iríamos juntos para a montanha. Expliquei que acabara de chegar e que vim para estudar, então não sabia ainda quando teria tempo para passear. Então ele me olhou muito sério e questionou:

- Qual é seu problema?

- Eu não tenho problema.

- É que eu estou vendo aqui – e apontou para a região do meu cenho – e não vejo luz.

- Você está me olhando e não vê luz?

- É.

Por um momento eu tive dó. Pois bem sei que até um ser como eu, em minha infinita pequeneza, tem alguma luz. E até eu vejo que todos os seres são nobres e sagrados.

Antes de eu ir embora, ele ainda me perguntou:

- Você não vai deixar nenhuma contribuição para o Baba?

- Hoje não.

E fui embora banhada de luz do sol e da lua. Pena que ele não pôde enxergar.


domingo, 4 de janeiro de 2015

Da (im)permanência



Chovia.

Fiquei tentada a almoçar no restaurante do hostel, mas havia também aquela busca que eu queria fazer: encontrar as referências que eu guardara da visita anterior. Salvei em meu celular os mapas de três lugares: Yoga Training Center, Dosa Cafe e Blue Lassi. 

No primeiro eu fizera uma aula de yoga e decidi que seria minha escola durante esses três meses. 

No segundo eu almoçara quase todos meus dias em Varanasi, da primeira vez em que vim. Dosa é uma espécie de panqueca indiana, e a de lá é a melhor que já comi. O lugarzinho era simples, apenas um cubículo pequeno com três mesas. O dono era um senhor contido, o que costumo chamar de simpático por dentro. Sempre preferi os simpáticos por dentro aos simpáticos por fora. Ainda havia uma sobremesa deliciosa criada por ele, um idli (espécie de bolinho) de chocolate. O preço das refeições era baixíssimo. E o lugar me ganhou de vez no dia em que apareceu uma vaca. Ela parou e colocou a cabeça dentro da porta, esperando. O dono do restaurante contou que fazia alguns meses que ela aparecia ali diariamente, ele lhe dava uma dosa, que ela comia e saía a andar. Achei aquilo curioso e doce: uma vaca solta pela rua que sabia que, em um estabelecimento específico, havia sempre um senhor que lhe ofereceria comida com as mãos.

E por fim o Blue Lassi, um lugarzinho também simples, como o é tudo em Varanasi, e azul, como diz o nome. Lassi é o iogurte indiano, presente em todos os lugares, o tempo todo, e que pode ser servido doce, salgado, com frutas, com condimentos e com vários etecéteras possíveis. Eu, que não sou tão afeita a derivados de leite, aderi rapidamente ao hábito do lassi. Costumava pedir o “masala lassi”, ou “special lassi”, que era misturado com açúcar e condimentos como cardamomo e açafrão.

Certa vez, em Pushkar, acordei e pedi um “special lassi” no restaurante do hostel. O atendente questionou:

- Special lassi? De manhã?

- Por quê? Não se toma special lassi de manhã?

- Não.

- Está bem, então me traga um sweet lassi. – pedi, já pensando em todas as vezes em que, por ignorância, desrespeitei a cultura local.

Porém, ainda curiosa, perguntei:

- Afinal, do que é feito o special lassi?

- De maconha.

- Ah.

Entendi enfim de quantos possíveis sabores um lassi podia ser.

Mas voltando ao Blue Lassi...

Era um lugarzinho assim simples e assim azul. O moço ficava sentado ao lado da porta, batendo o iogurte à vista de todos. Havia várias opções de sabores, e o meu preferido era o de romã (“anaar”, a única palavra em híndi que aprendi). Era um lugar um tanto surreal, em parte pelo estranho ambiente azulado, em parte porque ficava no trajeto do Ghat das cremações, de forma que, enquanto tomávamos nosso lassi, víamos pessoas passarem carregando defuntos o tempo inteiro.

Pois desta vez saí à procura dessas três referências. Estava decidida a almoçar a dosa, depois tomar um lassi e talvez identificar a escola de yoga, quiçá já me inscrever para as aulas. Por causa da chuva, o chão estava mais lamacento do que o normal (“Aquilo não é lama!” – diria mais tarde Umi, o senhor de Delhi que, àquela altura, já poderia ser chamado de amigo, defendendo, não sem razão, que Varanasi é a cidade mais suja que já conheceu). 


Durante vários momentos, acossada pelo barro, pensei em voltar. Mas sujava meus pés e seguia. Até chegar a um ponto em que era inútil pensar em voltar, tão perdida que já estava. Foi aí que me ocorreu que talvez eu não devesse procurar as referências de antes, pois era impossível repetir o passado. E que eu deveria me abrir para aquele mundo absolutamente novo que se abria diante de meus olhos. Dei-me conta de que Varanasi era muito maior do que eu imaginara e me consolei pensando que eu não viraria menina de rua. Sempre que me perco, lembro que sou adulta e que não preciso do desespero da infância, em que se perder dos pais representava a possibilidade de me tornar menina de rua. Pois saí quase segura de minha adultice, andando entre os vendedores que tentavam me puxar para suas lojas, os motoristas de tuk tuk que queriam me levar sabe-se-lá-para-onde e os rapazes que sabe-se-lá-por-quê puxavam assunto a todo custo.

Até que, entrando por uma ruela, ouvi vozes ritmadas de homens atrás de mim. Imaginei o que aquilo significava e olhei para trás: eles carregavam um corpo, coberto, como os outros, por tecidos vibrantes. Mas aquilo significava um pouco mais: significava que eu estava perto do Blue Lassi. Segui por aquela rua e constatei que estava certa. Lá estava o moço batendo o iogurte de sempre. Tirei os chinelos e entrei. Pedi o lassi de romã. Olhei em volta e tudo aquilo me parecia ainda mais estranho do que já fora. Na parede, várias fotos e mensagens deixados por turistas de todo o mundo. Eu, que não deixara um sinal, via fantasmas por todo lado: de um alguém que fui há pouquíssimo tempo. De um alguém que não era mais, que nunca mais seria.

Saí de lá um tanto nostálgica, um tanto enjoada, não sei se do lassi ou de uma certa angústia, que subitamente se formara. E, como essa porta do passado se abrira, magicamente cheguei à porta do Dosa Café. Entrei. Procurei no cardápio aquele que, em um passado recente, fora eleito meu prato preferido. Reconheci-o ali: o special masala dosa.

Enquanto meu prato não chegava, comentei com o senhor, aquele mesmo:

- Eu estive aqui há um ano...

- É, eu me lembro de você. – e fez um sinal, mostrando que se lembrava do meu rosto.

- Naquela época tinha uma vaca... Ela ainda vem?

- Vem sim. Quase todos os dias.

Sorri. Mais de um ano se passara, quase nada na minha vida permanecera o mesmo, desde então.

Mas a vaca ainda vinha.

E aquele homem ainda se lembrava do meu rosto.

Alguma permanência, em meio a tudo.

Comi minha dosa com duas limonadas, forçando para colocar pra dentro o que quase não entrava, tão cheia eu já estava do lassi misturado com passado. Ficamos eu e o senhor naquela sala agradavelmente silenciosa, enquanto, pela janela, eu via a vida passar. Passavam vacas e passavam meninos. E, enquanto tudo passava, eu percebi quão ilusória era a permanência, mesmo a da vaca, que voltava diariamente.

- Hoje ela já veio?

- Já. Hoje ela veio por volta de onze da manhã, comeu sua dosa e passou.

Sorri diante da constatação: Tudo, tudo passa.

E um dia também as lembranças passarão.

O segundo sol



Na minha primeira noite em Varanasi, um sonho se repete em minha mente. É uma imagem: um espaço retangular, visto de cima, como o galpão de uma fábrica. Tem uma máquina no canto, e eu me pergunto o que fazer com ela, o que fazer com aquele espaço, para transformá-lo em um lar.
E é esse meu primeiro susto: como transformar tudo isso em um lar? E minha primeira constatação: a diferença entre estar a passeio e estar em missão.
É verdade que eu já me havia dito que, se eu não pudesse seguir pelo caminho fácil, eu seguiria pelo difícil mesmo. E, obviamente, se eu procurasse conforto, eu não teria vindo justo para Varanasi. E eu vim preparada para quase tudo: menos para o frio. E eu, que só trouxe um casaquinho para não congelar no avião. O guia dizia que a melhor época para vir à Índia era de outubro a abril, logo após as monções. Em 2013 vim em outubro e desta vez coloquei na cabeça que outubro e janeiro eram a mesma coisa.
Mas quem me dirá que nada nunca é a mesma coisa?
Pela experiência anterior, eu vim avisada de que a azia do primeiro dia era muito mais devida ao cansaço da viagem do que ao impacto da comida. Eu vim avisada de que o trajeto não seria fácil e de que o taxi não poderia me deixar na porta do alojamento: ainda haveria um caminho meu a ser percorrido a pé, arrastando mala por becos literalmente lamacentos. Eu sabia tudo isso: que viria cansada, com o corpo quebrado de horas de avião. Pois vim conformada, arrastando minha mala, sendo abordada por vários indianos, que é como eles fazem. No fim, um garoto me acompanhou, conversando e indicando-me o caminho. Ao me deixar no hostel, disse que voltaria mais tarde para me trazer um chá. Tudo que eu não queria era que um estranho me trouxesse um chá. “Se você não estiver ocupada” – ele completou. “Hoje vou descansar” – eu disse. E ele entendeu, pois graçasadeus não voltou. Mas eu teria aceitado se, em vez de dizer que sou forte, ele tivesse se oferecido para carregar minha mala pelas escadarias.
Tenho tido alegrias estranhas. A de descobrir que meu vôo ou que meu hostel existem mesmo. Eu sei, é bobo, eu fiz reserva e tudo, mas é que às vezes me parece uma invenção da minha cabeça. Por isso fiquei muito feliz ao chegar e ao descobrir que tenho, de fato, um quarto reservado para mim. E é um quarto grande e frio. Quando entro, o piso ainda está molhado, então tiro as sandálias e sinto o chão gelado aos meus pés. Sento-me na cama e me pego pensando algumas coisas: que não trouxe capa de chuva ou roupa de dormir, porque contava com o calor da última vez. E o moço me conta que esta é a época mais fria do ano, mas que em um mês estará melhor. Eu fico triste, porque preciso de pouco, muito pouco para viver. Mas preciso de sol.
Saio para dar uma caminhada, tentando reter os caminhos, para conseguir voltar. Encontro o hostel onde fiquei no ano retrasado e que desta vez não tinha vaga. Faço uma reserva maluca para alguns dias mais à frente. Ando a esmo e, como sempre, os indianos me seguem, fazendo perguntas e falando sem parar. Mas hoje estou cansada, muito, e peço que me deixem andar a sós. Volto para meu quarto e durmo de quatro da tarde a oito da noite. Só me levanto porque preciso comer alguma coisa, menos por fome do que por precaução. Não há comércio aqui por perto e me lembro de que no dia seguinte terei que comprar algum biscoito ou coisa do tipo para manter no quarto.
Chego ao restaurante do hostel e peço uma panqueca e uma salada de frutas. Pergunto se a maçã na geladeira está à venda. O moço ri e responde que não. Um senhor me ouve gravando uma mensagem e pergunta se sou da América do Sul. Ele é de Delhi, mas morou quatro anos na Espanha e reconhece meu “meio espanhol”. Explico que estou ali para fazer minha pesquisa de doutorado. Ele engata um assunto, fala sobre religião e sobre como as pessoas estão a cada dia mais materialistas. Concordo.
Volto ao meu quarto. A energia elétrica acaba e volta, inúmeras vezes. Leio até cair no sono e, por fim, durmo de onze da noite até oito da manhã. Durante toda a noite, esse maldito galpão no meu sonho. E a questão: como fazer disso um lar?
Amanhece. Chove e faz frio.
Fiz questão de escolher um lugar às margens do Ganges, mas hoje não o vejo, coberto que está pela neblina branca.
Preciso fazer com que isso tudo caiba na palavra lar.
E preciso encontrar meu próprio sol.