terça-feira, 26 de novembro de 2013
Conto Veneziano
Ela era menina quando ouviu falar sobre uma cidade que tinha ruas de água, não de cimento. Das pessoas que se locomoviam em simpáticos barquinhos, naquele lugar que fluía, como flui tudo que é líquido e não pode ser agarrado com as mãos. Uma cidade que afundava um pouquinho mais a cada ano e que um dia submergiria sob as águas.
E desde menina ela soube que chegaria ali, já mulher, com malas nas mãos, e que instalar-se-ia em um quarto com duas janelas, de onde nunca pudesse ser vista.
Ela, que gostava das profundezas, sabia também que um dia chegaria um homem que já nascera sufocado. Um homem que afundava, tentando sobreviver diariamente à fluidez das águas. E que ele teria palavras engasgadas na garganta e tentaria desesperadamente dizê-las, para quem sabe respirar. Que ele a procuraria pelas janelas, sem jamais encontrá-la, embora desconfiasse que ela se escondesse ali, por trás do vidro que mais brilhava.
Então uma noite ele lançaria palavras em pedra, estilhaçando o vidro da menina, já mulher, que sabia tudo desde sempre, mas que esperava as palavras. Eram elas que desencantariam tudo que não transparecia. Aquelas palavras - na língua do amor e da ira.
Ela lhe sorriria, e ele passaria a lhe fazer a côrte, como antigamente. Mas, em vez de trazer flores, estender-lhe-ia um maço de manjericão, com cujo aroma ela iria aos céus. Então ele faria spaghetti e prometeria cozinhar para ela todos os dias da vida. E também carregar as crianças - três - que um dia viriam a ter, se ela lhe abrisse as outras portas.
Mas ela teria medo e atirar-se-ia pela janela, a mesma que ele quebrara, tempos atrás. E sairia nadando até perder o ar e, sufocada, lembrar sua respiração - a dele -, que era pesada e sofrida. Então ela se daria conta de que não conseguia mais respirar sem ele.
Ela voltaria boiando. E perguntaria: "Você não está me usando de âncora?" Então ele lhe diria: "Como você pode pensar que te quero como âncora... se você é tão leve?"
Ela era cachorro d'água. E sabia tudo desde menina - deste lobo que surgiria das profundezas - suas, talvez. Mas nem por isso era conhecido, ainda que traçado, seu caminho.
Os dois se protegeriam juntos do medo que sentiriam, um do outro. E se lamberiam e se beijariam e se morderiam. E amariam-se aos uivos e sussurrariam juras de amor e maldição. E juntos perderiam a respiração, como se afundassem nas águas daquela cidade.
A cidade que um dia submergiria, como submergirão todas as histórias de todos os amantes, de todos os futuros que virão.
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3 comentários:
Ler este conto foi como mergulhar nestas águas... muito bom... sensação maravilhosa! Bjo, Lian. Obrigada por mais esta leitura tão agradável!
Alice
Simplesmente lindo! Como assim você não ia postar? Ainda bem que a chuva caiu!
Lindamente surreal.
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