sábado, 23 de novembro de 2013
Primeiro relato da Índia
Lina. É minha identidade indiana, desde que Kamal, meu motorista em Agra, começou a me chamar assim. É o nome de uma atriz famosa aqui, ele contou. Adotei o nome. É compreensível, como Lian nunca foi, em lugar algum. Mesmo minha vizinha na vila, Dona Nazaré, me chama de Mila. Aceito também.
O nome é o invólucro do que a gente carrega.
Lina carrega a história de um outro lugar e aos poucos incorpora o tempero de cá. Aqui é mais quente. Lina gosta. E subitamente me vem à cabeça uma professora que acusava de excessivamente egóicos aqueles que se auto-referiam em terceira pessoa. Quão egóica serei eu, que falo de mim (e comigo) como "eu", "você", "nós" e "ela"? Quão egoica serei eu, que me multiplico?
E, dentro deste novo invólucro, sigo a mesma, com letras trocadas. Sigo amando, como amei a Índia ainda no avião, quando me serviram o primeiro jantar condimentado. O tempero do Oriente me remete a uma ancestralidade. É no tempo de antes de mim que encontro essa identidade mais funda. Eu não comecei em 1982, de repente saibo.
Meus primeiros dias aqui são agitados. Delhi e Agra. Encaro metrô na hora do rush, estações de trem, tuk tuk entre veículos e buzinas. E eu que pensava que a linha amarela do metro de São Paulo comportava o máximo possível de corpos em um espaço. Na Índia o possível se multiplica, como Lina. Aqui tudo é. Isso, mas aquilo também. Cada ideia comporta seu contrário, como o balançar de cabeça tão característico daqui. Sim e não.
Índia é o país dos indianos, é minha primeira certeza. Antes dos templos, das comidas, das paisagens. É o país de um povo que é vários e que está por todos os lados e que fala e que buzina e que te segue pelas ruas. É um país para quem gosta de gente, em sua dignidade e pobreza. E, no meio dessa gente, descubro uma das minhas contradições, Lina e Lian. É que sempre me acreditei anti-social e evitava, tanto quanto podia, eventos em que se aglomeravam pessoas, para verem e serem vistas. Trocadas algumas letras, me encontro amando as aglomerações, olhando e sendo olhada com curiosidade, me comunicando com todos, trocando sorrisos e palavras.
Vejo nas vitrines roupas tradicionais ao lado de outras ocidentais. O ocidente é feio, penso. Depois me corrijo: a modernidade é feia. Eu gosto dos saris e das dupatas. Gosto dos vermelhos e dos alaranjados. E me envolvo de tecidos cor de fogo, porque na Índia só é possível ser quente, mesmo nas noites insones, do corpo não adaptado ao fuso. São sempre solitárias as insônias, caminho sozinha. Por onde ando? Veneza, talvez.
Mas meus dias são povoados de gente. Dizem que atraímos aqueles com energia parecida. Então minha alma é pobre e criança. E me cerco deles. Eles querem meu dinheiro. Sim. Eles gostam de mim. Sim. Tudo é dúbio e igualmente verdadeiro, em um lugar em que os contrários não se excluem. Eu e eles, que me povoam. Você e nós. Lina e Lian. Isso e aquilo.
E sigo fazendo constatações: O Taj Mahal existe. Parece óbvio e ridículo, mas eu me choco. Bob Marley é universal. Outra constatação. E, antes que eu me dê conta, estou em uma celebração de noivado indiana, jogando pétalas de rosas e brincando com as crianças, em seus melhores vestidos. E sigo fazendo contas e me sentindo enganada pelo tempo, que passa tão depressa por aqui.
Eu subtraio os dias, embora queira rete-los todos. São eles preciosos e parcos. E poucos. Pouquíssimos. Enquanto eu, na Índia, me multiplico, várias.
Este é um país de pessoas.
(texto de 17 de outubro de 2013)
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