sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
As águas que vêm de lá
Na China as pessoas se encontram e cumprimentam umas às outras: "Você já comeu?". É menos uma pergunta do que uma saudação. O equivalente a "tudo bem?". A mim, que só fico bem mesmo depois de comer, faz muito sentido.
A gente se saúda de acordo com aquilo que é. Aqui em casa, às sextas-feiras, tudo amanhece do avesso. E quando a gente se cruza na cozinha, ao acordar, já vai comentando: "Hoje é dia de Patrícia!" É o nosso "bom dia". E o dia fica bom mesmo depois que chega Patrícia e desmancha a bagunça acumulada da semana.
Eu nunca soube de onde ela vinha, mas ela sempre veio, sempre às sextas-feiras. Hoje nos pegamos a conversar na cozinha, como fazemos. Banalidades. O tempo. O sol. A chuva.
Então Patrícia me pergunta:
- Como vocês passaram essa grande chuva?
Respondo:
- Nossa, a chuva aqui foi terrível! A frente da vila ficou alagada. Não tínhamos como sair de casa. Mas como estávamos sem comida, passando fome, uma hora tivemos que dar um jeito. Saímos pelo portão de trás, mas até as calçadas estavam cheias d'água. Para não molhar os pés, fomos penduradas nas grades dos prédios.
E, depois de, quase sem parar para respirar, relatar minha grande aventura, volto-lhe a pergunta:
- E lá, onde você mora (mesmo que eu não soubesse onde ela morava), como foi?
- Lá também alagou muito. Também foi horrível. Quando as ruas começam a encher, a gente costuma abrir os bueiros, para que a água desça. Mas desta vez nem isso adiantou. A água continuou subindo e subindo. Ficamos ilhados, sem água e sem luz. Minha sogra perdeu tudo, as compras, os móveis. Muita gente perdeu tudo. A água chegava quase no teto das casas. As pessoas tinham que subir para as lajes, com as crianças assustadas, chorando. Pensei que, se a água continuasse subindo, nós morreríamos afogados. Foi doloroso de se ver.
Eu, que minutos atrás lhe contara sobre meu "grande alagamento", em que eu não queria molhar os pés, de repente engulo tudo aquilo de volta. Por um momento me engasgo de vergonha. Então dou uma inspirada e continuo a querer saber:
- Mas e você, sua casa?
- A gente mora no andar de cima, sobre a casa da minha sogra. Como tudo dela foi destruído, ela agora mora com a gente. Onde eu moro, muita gente foi para a casa dos parentes, porque perdeu tudo. E também por medo de voltar.
- Aliás, onde você mora?
- Em Queimados.
- Ah. - respondo, sem fazer ideia de onde fica (e logo em seguida à conversa, vou procurar no mapa).
Ela continua:
- Estamos apavorados com a ideia de a chuva voltar.
- Parece que vai melhorar.
- Se Deus quiser.
- Deus quer - completo, sem saber o que digo.
E sei, mais uma vez, o quanto sou pequena, com meus problemas pequenos, diante do tudo e dos outros. E me lembro de novo de olhar pro outro lado da rua, pro outro lado da cidade, pro outro lado do mundo. E penso que os chineses estão certos. Às vezes temos apenas que enxergar a pessoa ao lado e perguntar:
- Você já comeu?
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
A Serpente
"Deus chamou cada bicho e atribuiu-lhe uma função. Alguns poderiam voar e espalhar sementes pelo mundo. Outros deslizariam no fundo das águas. Havia ainda aqueles que, sem asas ou guelras, seriam designados para cantar e contar histórias. Então, por último, chamou a Serpente:
- Para você eu tenho uma função especial. É uma função que nenhum dos outros seres aceitou. E ela será sua, porque você tem coragem: a você cabe mostrar aos seres os caminhos escuros. Não será uma tarefa fácil, porque eles não os querem enxergar. Você será odiada por isso.
A Serpente pergunta:
- Mas eu terei força para essa tarefa?
- Por isso te dei o veneno. Para se proteger do ódio dos que não querem enxergar. E para isso, também, te dei o veneno: para a cura."
Foi essa a estória que Mirjam nos contou, quando começou o ano de 2013. Éramos seis, no máximo, em torno de uma fogueira, em meio ao Pantanal. Tínhamos uma lua linda e brilhante no céu. E, à frente, uma estrada escura a percorrer.
Não faz muito tempo que tenho começado a compreender meus anos pela simbologia do ano chinês. O Dragão, que em 2012 passou como um furacão, transformando tudo. A Serpente, que em 2013 tem nos guiado pelos nossos caminhos escuros, esses que não queríamos - mas fomos forçados a ver.
A gente tem infinitas e dinâmicas camadas. A mais superficial é também, por conseguinte, a mais cristalizada: o nosso espaço de conforto. É por ela que transitamos sem sustos. Mas somos muito além. E temos tantas e tantas camadas enterradas. Não queremos encontrá-las, porque elas podem nos ferir. Elas revelam as nossas verdades: aquelas que tanto velamos.
Não se enganem: a camada mais funda não é mais verdadeira ou legítima que a mais superficial. É outra, apenas. Acontece que somos tudo. Uma e outra. E elas se justificam e se complementam. É que, às vezes, para sustentar a luz é preciso percorrer a escuridão, que não é boa nem má, apenas tão necessária quanto. O yin e o yang.
(Abro um parêntese para me desviar um pouco do texto inicial, embora permaneça. Não um desvio: outra camada. Enfim. Gosto do viés oriental e costumo explicá-lo com um exemplo, composto por duas histórias contadas por amigos diferentes, no mesmo período. 1) Um amigo me contou que seu médico lhe dissera que, quando acordamos, é o momento em que a boca está mais cheia de bactérias. Sujíssima. E que, portanto, a primeira coisa que devemos fazer é escovar os dentes, antes mesmo de beber água. Assim não ingerimos toda aquela sujeira. 2) Outra amiga, que passou alguns meses em um retiro espiritual na Tailândia, contava-me sobre sua rotina de disciplina no ashram. Acordavam às quatro da manhã e a primeira coisa que deveriam fazer, antes da primeira meditação, era tomar dois litros de água. As bactérias da boca ajudariam o intestino a funcionar melhor. Acho interessante como esses dois relatos são simétricos e ilustram o paradigma ocidental, de eliminação do "escuro", que é considerado mau, versus o paradigma oriental, de agregação e complementaridade.)
Neste ano aconteceram algumas coisas engraçadas, como dormir na casa de uma amiga e amanhecermos com uma jiboia enorme na porta. Sonhar com cobras e cobras. E bem além: ser guiada por elas. Porque é difícil a gente se enfiar por iniciativa própria nos caminhos escuros e estreitos. A gente quer luz e vento e banho de mar. E só quando, de repente, uma onda te carrega para o fundo mais fundo... Então subitamente você está lá. E é assustador, porque você não enxerga. E você tem que apalpar seres estranhos, esquecidos há tanto tempo, que você nem mais sabia que existiam. Assim foi meu ano. Foi intenso. Foi doloroso. Mas, como eu previa o parto, eu aceitava a Serpente.
Acontece que os caminhos escuros são solitários, em sua incomunicabilidade, mesmo que eu tenha vindo à tona tantas vezes, para tentar expressá-los. E as estradas solitárias são coletivas. E houve muito de coletivo no escuro, em um ano recheado de manifestações, tantas vezes certeiras e tantas vezes desencontradas. Um ano recheado de desencontros. De violências. De tapas de mundo na cara. E de espelhos, vários. Um ano de mergulho nas águas do Ganges, que são escuras e opacas.
O buraco negro é negro porque absorve toda luz. A luz em excesso ofusca. Um no outro, sempre. Yin e yang.
"Ninguém me avisou que neste ano o mundo também acabava", pensei outro dia, lembrando o alardeado fim do mundo no ano passado. Mas, que besteira, o mundo acaba sempre. E seguimos de olhos vendados, rumo ao próximo, de luz e sombra.
Também começamos sempre.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Conto Veneziano
Ela era menina quando ouviu falar sobre uma cidade que tinha ruas de água, não de cimento. Das pessoas que se locomoviam em simpáticos barquinhos, naquele lugar que fluía, como flui tudo que é líquido e não pode ser agarrado com as mãos. Uma cidade que afundava um pouquinho mais a cada ano e que um dia submergiria sob as águas.
E desde menina ela soube que chegaria ali, já mulher, com malas nas mãos, e que instalar-se-ia em um quarto com duas janelas, de onde nunca pudesse ser vista.
Ela, que gostava das profundezas, sabia também que um dia chegaria um homem que já nascera sufocado. Um homem que afundava, tentando sobreviver diariamente à fluidez das águas. E que ele teria palavras engasgadas na garganta e tentaria desesperadamente dizê-las, para quem sabe respirar. Que ele a procuraria pelas janelas, sem jamais encontrá-la, embora desconfiasse que ela se escondesse ali, por trás do vidro que mais brilhava.
Então uma noite ele lançaria palavras em pedra, estilhaçando o vidro da menina, já mulher, que sabia tudo desde sempre, mas que esperava as palavras. Eram elas que desencantariam tudo que não transparecia. Aquelas palavras - na língua do amor e da ira.
Ela lhe sorriria, e ele passaria a lhe fazer a côrte, como antigamente. Mas, em vez de trazer flores, estender-lhe-ia um maço de manjericão, com cujo aroma ela iria aos céus. Então ele faria spaghetti e prometeria cozinhar para ela todos os dias da vida. E também carregar as crianças - três - que um dia viriam a ter, se ela lhe abrisse as outras portas.
Mas ela teria medo e atirar-se-ia pela janela, a mesma que ele quebrara, tempos atrás. E sairia nadando até perder o ar e, sufocada, lembrar sua respiração - a dele -, que era pesada e sofrida. Então ela se daria conta de que não conseguia mais respirar sem ele.
Ela voltaria boiando. E perguntaria: "Você não está me usando de âncora?" Então ele lhe diria: "Como você pode pensar que te quero como âncora... se você é tão leve?"
Ela era cachorro d'água. E sabia tudo desde menina - deste lobo que surgiria das profundezas - suas, talvez. Mas nem por isso era conhecido, ainda que traçado, seu caminho.
Os dois se protegeriam juntos do medo que sentiriam, um do outro. E se lamberiam e se beijariam e se morderiam. E amariam-se aos uivos e sussurrariam juras de amor e maldição. E juntos perderiam a respiração, como se afundassem nas águas daquela cidade.
A cidade que um dia submergiria, como submergirão todas as histórias de todos os amantes, de todos os futuros que virão.
sábado, 23 de novembro de 2013
O caminho de volta (ou "O caminho sem volta")
Peguei o caminho de volta para casa. Não sem antes fazer alguns desvios, que é meu jeito de caminhar por linhas tortas. Admito que, depois de um tempo na Índia, voltei um pouco anestesiada para me emocionar ou me surpreender com o mundo ocidental. E foi justo em Burano, uma pequenina ilha da Itália, que ele voltou, o encantamento.
Era um lugar de casinhas simples de cores vivas, com flores nas janelas e vassouras nas portas. Poderia ser apenas um cenário, aquele apanhado de casas coloridas, não fossem as roupas estendidas diante das fachadas. Balançavam ao vento, as roupas, como bandeiras. Podia-se ler o lema nas entrelinhas: "Aqui vive gente".
Peguei-me perguntando onde estariam os varais no meu mundo de hoje. E automaticamente já sabia a resposta: nas áreas de serviço dos condomínios, escondidos da vista.
E, assim, subitamente soube traduzir a condição em que vivo: um vazio de varais.
É uma falta de me sentir gente, gente plena, que vive com gente, que deixa a porta aberta e que entra na casa dos outros sem bater. É a falta de me sentir gente incontida, que não cabe entre paredes e se expande para fora dos limites das fachadas. O vazio de varais é, antes de tudo, um vazio de vida. Ou melhor, um vazio de vida misturada.
Não foi sempre assim. Cresci em um prédio de apartamentos pequeninos, de dois quartos. Não tínhamos quintal, mas era como se tivéssemos, porque brincávamos no térreo, em uma área que chamávamos de verdinho. Naquela época, os pais de todas as minhas amigas eram socialistas e, de certa forma, era assim que vivíamos: nada era apenas meu ou seu. Todas as crianças eram meio filhas de todos. A mãe da Carol cortava as minhas unhas quando decidia que elas estavam grandes demais. A mãe da Camila me levou ao hospital quando machuquei a cabeça roubando amoras. Minha mãe preparava mingau para todas as crianças.
Depois cresci e me mudei para um apartamento maior, onde eu e minha irmã levávamos bronca dos síndicos, porque éramos selvagens. O que quer dizer que não havíamos aprendido a separar tudo, a minha vida da sua, o meu espaço do seu. O que quer dizer que não nos contínhamos entre as paredes do apartamento e ainda queríamos descer para o térreo e assustar o porteiro com bonecas e gravadores e subir nos muros e escorregar nos corrimões e espalhar a areia dos canteiros.
Hoje vivo em uma vila em que os moradores regulam de quem é cada calçada. E meus pais vivem em um condomínio onde são proibidos muros entre as casas, mas a vizinha presta queixa porque Miki, nosso gato, às vezes entra em sua casa, vejam só.
Eu aprendi a me conter e aceitar o vazio de varais. Mas secretamente invejo o Miki, que desconhece limites, enquanto o observo correr pelos quintais vizinhos.
Há, em Laranjeiras, um edifício que parece ser como meu prédio de infância. Lá as pessoas se amam e se odeiam e voz alta e penduram roupas e toalhas nas janelas. Não à toa, ele foi apelidado de Favelão. Poderia ser um nome pejorativo. Mas acontece que me agradam as favelas, exatamente no ponto em que lá vive gente incontida e misturada, que se expande pelos varais e que te convida a entrar em suas casas, e você rola no chão com as crianças. Em nenhum outro lugar do Rio de Janeiro já fui recebida assim, senão caminhando por uma favela.
Então, quase sem querer, escorrego de volta dos varais de Burano ao meu prédio de infância e de volta às cidades que visitei na Índia, em que toda gente era incontidamente humana, de portas abertas e roupas penduradas. E não sei mais se agora estou mesmo voltando ou se a ida ao oriente foi, ela sim, o retorno.
O fato é que eu gosto dos índios e dos indianos. Gosto dos que se sentam de cócoras e dos que comem com as mãos. Dos que andam descalços. Dos que não adotaram plenamente os instrumentos que nos separam do mundo e uns dos outros. Dos que ignoram paredes.
No fundo, é aos varais que retorno sempre.
(texto de 19 de novembro de 2013)
A pureza
Eu me preparava para a Índia antes de saber que viria. Embora de alguma forma eu sempre soubesse, como também sei desde sempre que esta não será minha última visita.
Mas eu me preparava antes dos planos e passagens. Talvez por eu ter horror à atitude de pessoas que viajam procurando no espaço do outro o seu próprio padrão. E reclamam da higiene, da cultura local, do desconforto, da cerveja quente. Talvez por eu ter mania de querer ser durona, talvez por eu ser uma taurina teimosa. Provavelmente por tudo isso e por tantos outros fatores que me são desconhecidos, eu sempre soube que a Índia era para mim. E eu sempre fui ao encontro dela.
Por isso, todas as vezes que alguém me relatava sua experiência, eu me perguntava: "Serei capaz de encara-la com abertura e gratidão?" Ouvi historias de ratos e de baratas e de mosquitos infinitos. Historias de pobreza, de miséria absoluta, de pessoas tentando te enganar o tempo inteiro. E li Shantaram, um livro que conta a história de um australiano que fugiu da prisão, foi viver em Mumbai e acabou em uma favela da cidade. Ele descrevia o constante cheiro de esgoto, as doenças, a violência, as imagens sempre fortes. Eu virava as páginas me perguntando: "Eu agüento isso? E isso?"
Então passei a praticar o que chamei de "exercício Índia". Funcionava assim: todas as vezes que algo me incomodava, eu me dizia: "pensa na Índia". E me concentrava até que o incômodo passasse. Quando levava picadas de mosquito, por exemplo, e ficava enlouquecida tentando expulsa-los e coçando as feridas. Eu pensava na Índia e deixava que eles me picassem, deixava que as feridas coçassem - "está tudo bem, são apenas sensações, eu posso te-las". - até que elas perdessem a importância.
Certa vez, quando fazia uma longa viagem de ônibus pelo Brasil, o banheiro do veiculo entupiu. As janelas, vedadas, não abriam. E durante o trajeto fomos todos fazendo caretas, usando tecidos para tampar o nariz, reclamando e reclamando. De repente pensei no Shantaram e me perguntei: "Se eu estivesse na Índia, a minha reação seria esta?" Imediatamente passou o mal- estar.
É claro que não era isso que eu esperava do país. Mas bondade, beleza, raiz. Por isso precisava estar pronta para o mais difícil. Se eu me preparasse para o bruto, eu sabia, todo o suave fluiria.
E suave foi quase tudo, até então. As muitas pessoas que me cercavam tentando me vender ou me guiar ou me perder. E me fizeram ver que a lente com que você enxerga é o mundo, e que eu podia vê-los com humor - e com amor. Os bandos de crianças sujas que te puxam pelo braço pedindo moedinhas. Mas que - com ou sem moedas - riem, engatam longas conversas e nos ensinam jogos infantis. As ruas com cocôs de gente, de vacas, de cachorros, mas que ainda - diferente do que eu imaginava - tinham mais chão do que
cocô. Portanto, com um pouquinho de atenção, tornavam-se fáceis e naturais os caminhos. A comida, que era menos apimentada do que eu temia. O metrô, em que as pessoas se espremem mais do que no Rio ou em São Paulo, mas encaram com simplicidade e calma. As buzinadas constantes no ouvido - essa foi a parte mais difícil -, para isso eu me preparara desde a China. A água - contra a qual tanto me alertaram - que nunca me fez mal ( e vivam meus anticorpos de quem teve a infância livre ).
Delhi. Agra. Jodhpur. Jaisalmer. Pushkar. Jaipur. Suave Índia. Suave, muito suave.
Então cheguei a Varanasi. E encontrei todo o choque de mundo que me havia sido prometido. Por aqui se calcula cada passo e ainda assim se escorrega em cocô de algum bicho. Tentar andar pelas margens do Ganges é mesmo o desafio que disseram que seria, especialmente nesta época do ano, após as monções, em que não sobra faixa de areia. " Quando chegar lá, você vai sentir se deve entrar" - me disse uma amiga, quase me aconselhando que não. Mas logo que vi o Ganges, eu soube que sim. É isso que me responde o mundo sempre que pergunto: que eu devo mergulhar.
Passei dois dias namorando o rio e observando seus rituais. As cerimônias realizadas, as pessoas que se lavavam dos pecados da vida, as que lavavam suas roupas, as coisas duvidosas que boiavam, os pássaros que bicavam as coisas duvidosas, os excrementos de diversas espécies depositados em suas margens. Os incensos, as velas, as flores.
Estar em Varanasi é entrar na máquina do tempo. E, antes que se perceba, estar completamente envolvido por um século muito distante, de becos estreitos, em que, se a vaca resolve virar a cabeça, você já não consegue passar - passei por isso.
Varanasi me atingiu, em meus próprios becos, como nenhuma outra cidade até então. Por suas ruelas cheguei aos meus poços escuros. Com aceitação. Mais: com beleza.
E foi às margens do Ganges em que me envolvi em uma das cenas mais fortes que já presenciei: as cerimônias de cremação. Corpos e corpos que chegam envolvidos por tecidos vibrantes e são desenrolados até ficar apenas um lençol branco, pelo qual se distinguem todas as formas do cadáver. Então cada um é depositado sobre tochas de madeira e recebem mais lenha por cima. Passam o dia sendo queimados, entre multidões de pessoas, que conversam, andam, se agitam. Chegam vacas para comer uma graminha, passa um bode, dois cachorros começam a brigar. Aparece um barco cheio de jovens cantando canções Hare Krishna. E os corpos não cessam de chegar.
Está tudo ali: vida e morte. E é isso que me agrada mais: o inextricavelmente mundano do sagrado. E vice-versa. Ou melhor: sinônimos. Nunca me agradou a idéia de verticalidade. Iluminação, para mim, é uma maneira de se estar no mundo, não acima. A vida é muito preciosa. A terra é muito preciosa. Os bichos são belos com seus alimentos e excrementos. Só o que é mundano pode ser profundamente sagrado. E o que é sagrado não segrega: esta é a certeza que tenho.
Então hoje me levantei antes do sol, pronta para mergulhar no Ganges: este rio que leva os restos e lava os pecados. Tirei os chinelos e pisei naquele barro indefinido, até submergir na água escura.
É preciso que eu me suje de mundo. Só então sairei pura.
(texto de 26 de outubro de 2013)
Namastê
Minha primeira viagem de ônibus pela India foi um trajeto de dez horas, de Jaisalmer a Ajmer. Sei que o ônibus corria muito. Buzinava muito. Desviava bruscamente dos outros veículos e das vacas. Muito. Muitos. Eu logo adormeci, como faço em todos os meios de transporte. E sonhei, como se estivesse desperta, que o ônibus corria e quase batia - mais ainda. E eu sempre quase morria. Mas eu estava lá, entregue, se a hora fosse esta.
A verdade é que, pra mim, viajar é sempre como morrer. Chegar mais perto da morte, apalpa-la. E é fascinante e é pleno e é dolorido. A gente sente nos poros o que é a verdade cotidiana: estamos sempre partindo. Em casa estamos partindo. No avião estamos partindo. Dormindo estamos partindo. Sempre, sempre.
Talvez das viagens eu tenha adquirido esse jeito de olhar as pessoas: como se me despedisse. Olha-las nos olhos e, em meu íntimo, agradecer pelo encontro. O encontro das almas em vida. Porque cada encontro é raro e é único. Por isso gosto do cumprimento daqui: Namastê - meu deus interior saúda o seu deus interior. Porque nenhum acaso é insignificante. E, no universo de partículas infinitas, aconteceu de as nossas se encontrarem. E se transformarem. É sempre mais do que um esbarrão, cada encontro.
Hoje parto de novo, embora parta sempre. Deixo um estado que amei e que amava muito antes, desde que o namorava, pelos guias e fotografias. Hoje parto. E deixo. E levo. O quê? Vidas secretas que espiamos pelas portas e becos. Sorrisos, vários. Abeici, um senhorzinho do vilarejo, que me guiava pelo deserto e repetia "camelinho", ao me ouvir conversar com o camelo. Uma menininha muito suja que me acompanhou por uma escadaria, segurando meu dedinho. O moço do restaurante na cidade azul, com quem me impacientei ao descobrir que, uma hora depois, ele não havia começado a preparar meu pedido, e eu viajaria em breve. Depois fui embora chorando porque não o reencontrara para agradecer por todo o antes, por todos os pratos servidos. E, no final, um lar. Uma família, um quem sabe de promessa de retorno no diwali. E (quase não agüento mais) outro adeus.
A gente deixa o que pode deixar. Mas o que se joga no mundo é exatamente o que lhe volta, o que se tem. E em seguida há um novo ônibus e outra estrada, e segui-la é como morrer. Partimos sempre.
(texto de 24 de outubro de 2013)
Primeiro relato da Índia
Lina. É minha identidade indiana, desde que Kamal, meu motorista em Agra, começou a me chamar assim. É o nome de uma atriz famosa aqui, ele contou. Adotei o nome. É compreensível, como Lian nunca foi, em lugar algum. Mesmo minha vizinha na vila, Dona Nazaré, me chama de Mila. Aceito também.
O nome é o invólucro do que a gente carrega.
Lina carrega a história de um outro lugar e aos poucos incorpora o tempero de cá. Aqui é mais quente. Lina gosta. E subitamente me vem à cabeça uma professora que acusava de excessivamente egóicos aqueles que se auto-referiam em terceira pessoa. Quão egóica serei eu, que falo de mim (e comigo) como "eu", "você", "nós" e "ela"? Quão egoica serei eu, que me multiplico?
E, dentro deste novo invólucro, sigo a mesma, com letras trocadas. Sigo amando, como amei a Índia ainda no avião, quando me serviram o primeiro jantar condimentado. O tempero do Oriente me remete a uma ancestralidade. É no tempo de antes de mim que encontro essa identidade mais funda. Eu não comecei em 1982, de repente saibo.
Meus primeiros dias aqui são agitados. Delhi e Agra. Encaro metrô na hora do rush, estações de trem, tuk tuk entre veículos e buzinas. E eu que pensava que a linha amarela do metro de São Paulo comportava o máximo possível de corpos em um espaço. Na Índia o possível se multiplica, como Lina. Aqui tudo é. Isso, mas aquilo também. Cada ideia comporta seu contrário, como o balançar de cabeça tão característico daqui. Sim e não.
Índia é o país dos indianos, é minha primeira certeza. Antes dos templos, das comidas, das paisagens. É o país de um povo que é vários e que está por todos os lados e que fala e que buzina e que te segue pelas ruas. É um país para quem gosta de gente, em sua dignidade e pobreza. E, no meio dessa gente, descubro uma das minhas contradições, Lina e Lian. É que sempre me acreditei anti-social e evitava, tanto quanto podia, eventos em que se aglomeravam pessoas, para verem e serem vistas. Trocadas algumas letras, me encontro amando as aglomerações, olhando e sendo olhada com curiosidade, me comunicando com todos, trocando sorrisos e palavras.
Vejo nas vitrines roupas tradicionais ao lado de outras ocidentais. O ocidente é feio, penso. Depois me corrijo: a modernidade é feia. Eu gosto dos saris e das dupatas. Gosto dos vermelhos e dos alaranjados. E me envolvo de tecidos cor de fogo, porque na Índia só é possível ser quente, mesmo nas noites insones, do corpo não adaptado ao fuso. São sempre solitárias as insônias, caminho sozinha. Por onde ando? Veneza, talvez.
Mas meus dias são povoados de gente. Dizem que atraímos aqueles com energia parecida. Então minha alma é pobre e criança. E me cerco deles. Eles querem meu dinheiro. Sim. Eles gostam de mim. Sim. Tudo é dúbio e igualmente verdadeiro, em um lugar em que os contrários não se excluem. Eu e eles, que me povoam. Você e nós. Lina e Lian. Isso e aquilo.
E sigo fazendo constatações: O Taj Mahal existe. Parece óbvio e ridículo, mas eu me choco. Bob Marley é universal. Outra constatação. E, antes que eu me dê conta, estou em uma celebração de noivado indiana, jogando pétalas de rosas e brincando com as crianças, em seus melhores vestidos. E sigo fazendo contas e me sentindo enganada pelo tempo, que passa tão depressa por aqui.
Eu subtraio os dias, embora queira rete-los todos. São eles preciosos e parcos. E poucos. Pouquíssimos. Enquanto eu, na Índia, me multiplico, várias.
Este é um país de pessoas.
(texto de 17 de outubro de 2013)
terça-feira, 1 de outubro de 2013
Em defesa do Estado...
Mas é claro que tem que bater nos professores.
Não sabiam que o professor tem mais força do que qualquer exército? O professor é aquele que tem o poder de abrir a janela e fazer ver. E se a gente vê... Ah, se a gente puder ver que o mundo não é só isso, então o mundo não será só isso: essa mentira que alguém inventou de contar.
Mas é claro que tem que calar os professores.
Se o professor fala, a gente pode até aprender. E, se a gente aprende, a gente aprende é que não fomos feitos para povoar mundo de mais mundo inerte. A gente entende que vida tem que fazer sentido em uma camada muito mais funda.
Mas é claro que tem que jogar bomba nos professores.
Se o professor luta, a humanidade percebe que a escola é a rua, em permanente espaço de criação e mudança. O mestre ensina pelo exemplo, veja o perigo.
E se a gente resolve seguir o exemplo? E se o mundo muda? Que será dos banqueiros? Do dinheiro? Do refrigerante?
Que será do Poder, se o Amor prevalecer?
terça-feira, 24 de setembro de 2013
No caminho
Ele parece o Sméagol, de "O senhor dos anéis", sentado sempre daquele jeito, quase de cócoras, na frente das Lojas Americanas. O cabelo meio desgrenhado e meio calvo. Os olhos muito grandes. Os pés descalços e enormes, saídos das pinturas de Portinari.
Parece nunca sentir frio, com sua eterna bermuda jeans e sem camisa. Mas, quando chegou o inverno, levei-lhe um agasalho, que um amigo deixara aqui em casa havia mais de um ano, e que eu, sem consultá-lo (perdão, Alan!), decidi que aquele outro amigo faria melhor uso.
- Vai me ajudar, sim. À noite faz muito frio. - ele contou.
E pela primeira vez me perguntei onde ele passava as noites. É que, a mim, parecia que ele pertencia àquela mesma calçada, que de lá brotara, como uma árvore seca. E muito me espantei um dia em que andava pelo Largo do Machado e o vi passar. Era o óbvio do óbvio do óbvio. Mas me foi uma grande surpresa me dar conta de que ele chegava. E vê-lo de pé, caminhando. Como o homem que ele é.
Talvez porque eu quase não tenha passado por ali. Talvez porque eu tenha andado só pelo outro lado da rua. O fato é que fazia tempo que eu não o via.
Dentro desse tempo houve um momento em que me peguei pensando que não sabia seu nome.
Tempo passado - eis que hoje o vejo, enquanto ando na outra calçada, como o habitual. Ele tem os cabelos cortados e a barba mais rente. Resolvo atravessar a rua para cumprimentá-lo, como não faço há tanto tempo.
- Olá!
Ele leva alguns milésimos de segundo para me virar a face, mais um segundo inteiro para me reconhecer. Sei o momento, porque seus olhos subitamente crescem e brilham. Ele me cumprimenta efusivamente.
Não sei o que é o tempo para ele, que está à parte do mundo da produção e dos relógios e dos calendários, mas exclamo:
- Quanto tempo! Atravessei a rua só pra te dar um alô!
Então ele me estende a mão e, quando ofereço a minha também, ele a segura com firmeza, com suas mãos enormes de pedir e guardar moedas.
- Obrigado. Muito obrigado.
E não soltava minha mão nunca mais, acolhendo-a entre as suas:
- Sabe, - continuou - eu peço sempre por você. Porque você é muito maneira!
E não sei quantos segundos duraram aquele infinito de tempo em que ele segurava minha mão. Quando a soltou, aproveitei para procurar um trocado na carteira e lhe dar, como fazia tantas vezes. Ele recebeu o dinheiro quase com desdém, embora não o fosse. É que ele não parou para olhar ou contar o que eu lhe punha nas mãos, porque naquele instante havia um tesouro muito mais valioso que eu lhe entregava.
E continuava me olhando com seus olhos imensos e brilhantes. E sorrindo. E agradecendo. E agradecendo.
Agradecendo o quê? Por quê?
Talvez alguma humanidade que eu, ingenuamente, lhe restituísse, ao enxergá-lo.
Saberá ele que também restituía a minha humanidade, que tantas vezes perdi?
Obrigada, você também. - vou embora pensando - Obrigada, Sérgio.
É este seu nome.
terça-feira, 10 de setembro de 2013
Devaneios de um domingo de sol
Um dia, depois de longos dias de chuva, nós amanheceremos juntos e haverá sol. Então nós desceremos da arca e sairemos a andar de mãos dadas. Aonde vamos? A andar. Pelas ruas haverá pés de pitanga e de amora. E nós subiremos nas árvores como fazíamos quando éramos crianças e sabíamos que o mundo nos oferta tudo, e que amora é amor, sim. Vou contar pro seu pai que você namora. Pequenas bobagens. A gente se lembrará de tudo, da sua infância e da minha, porque será como se a gente se conhecesse desde sempre. E você dirá que eu te empurro da cama, e eu explicarei que apenas tentava me fundir a você, e que, se você não chegar pro lado e deixar que eu te aperte, quem sabe não voltemos a ser uma coisa só. E a gente correrá pelas praças, dando risada dos cachorros, porque eles são engraçados e doces e desajeitados. E eu vou querer subir na maior árvore que aparecer em meu caminho. E reclamarei do dedo fraturado, que me impede de utilizar os pés como garras. E você me dará bronca por não ter procurado um médico por mais de dois meses e dirá que eu preciso aprender a me cuidar e deixar de ser durona. E todo mundo saberá que sou durona, mas só você saberá que eu me quebro como vidro, e dos dias que levam para que eu recolha os pedaços. E vai ser reconfortante e assustador que alguém saiba dos meus segredos mais recônditos. Então a gente entrará em um museu qualquer e dirá que aquele é o museu mais interessante que existe, porque fala de nós. E a gente trocará olhares de espanto e nos perderemos entre corredores infinitos. Então eu entrarei sozinha em uma sala escura e, quando sair, já não te encontrarei. E eu andarei pelos corredores que subitamente se tornarão vazios. E chegarei a um ambiente de esculturas religiosas antigas e eu terei medo de me encontrar no meio de tantos cristos crucificados sangrando. Eu sempre tive medo desse universo de dor. E sairei apressada e perdida dentro de um museu estranho. E, até te encontrar novamente e correr para os seus braços, eu terei medo.
Terei medo de que tudo aquilo tenha sido apenas um sonho, e que eu seja mesmo sozinha como sempre fui, em um corredor qualquer, e que o mundo continue sendo o mesmo.
O mesmo mundo de antes de você.
terça-feira, 3 de setembro de 2013
Tudo que muda
Pois é. Passo por racismo desde que me entendo por gente. Não há um dia da minha vida em que alguém não me aponte na rua, gritando: "Arigatô! Sayonara!", rindo e fazendo piadinhas. É estranho viver em um lugar em que as pessoas se sentem no direito de rir da sua cara.
Comigo pode. Porque aqui se pensa que só existe racismo contra negros. Se é que existe. É o que dizem. Ou melhor. É o que não dizem.
Outro dia, em Niterói, cruzei com um preto cheio de crianças pretinhas, saltitantes. Voltavam de uma pescaria. Passei sorrindo, porque eram lindos e alegres. O pai (acho que era) me gritou algo assim, como sempre me gritam. As crianças saíram rindo. Me deu pena de vê-las reproduzindo preconceito e me dá mais pena de ver que um povo não se enxerga no outro.
Estou cansada de ouvir que sou uma "oriental bonita", o que equivale a dizer "oriental, mas bonita". O que não me soa como elogio.
E coisas piores.
Quando eu era criança doía mais.
Mas talvez exatamente por isso, hoje qualquer tipo de racismo ou segregação dói em mim. Talvez por isso eu me sinta meio negra, meio índia, meio cigana, cubana, boliviana, moradora de rua. Talvez por isso eu sinta tanto o ser dos outros. Ou talvez por isso eu saiba com tanta clareza que "outros" não existe. É sempre comigo.
Bem. Até aí eu pensava saber tudo sobre racismo. Mas então uma pessoa conhecida postou em sua rede social algo sobre na China se comer cachorro e que horror que desumanidade os cachorros são fofos etc. Eu nunca teria a intenção de dizer que isso é certo, mas achei que faltava um olhar relativista aí. Se você é vegetariano é uma coisa. Se você acha certo comer vaca, acho complicado querer julgar uma cultura a partir da sua. E, apesar de todo mundo me dizer que não compensa me envolver com o que as pessoas pensam, eu creio que não faz sentido querer viver em uma bolha. Então eu me intrometo. É fato que só entro nesse tipo de debate na internet quando considero que o interlocutor vale a pena. Neste caso valia. Era uma companheira de luta, do bem, indígena. Estávamos no campo dos debates necessários.
Acontece que, quando fui comentar, vi que um Fulano havia comentado logo acima: "ESPERAR O QUE DESSE POVO NOGENTO (sic)..." etc etc etc.
Então descobri que eu não sabia na pele tudo sobre racismo. Estava aprendendo. O ódio.
Entrei na discussão, ignorando-o. Mas ele permaneceu escrevendo discursos de ódio, vociferando contra as pessoas que vinham defender meu ponto de vista e agredindo-os. Escrevia sempre em letras maiúsculas, o que já considero invasivo e uma necessidade absurda de se impor.
Nesse dia chorei. Chorei porque fora o mesmo dia do massacre no Complexo da Maré. Chorei por desesperança. Chorei pelo ódio que, pela primeira vez na vida, fora raivosamente assim me dirigido ("ESSE POVO NOGENTO... AINDA TEM CORAJEM DE VIR AQUI SE ESPRESSAR"). Chorei pela maneira covarde com que seu discurso atingia outras pessoas. E por haver quem o apoiasse.
A uma das pessoas que ele atacava, que aqui chamarei de João (pois quero que ele tenha um nome), Fulano dizia que ele não sabia nem escrever e que deveria ir plantar mudas, que era tudo que sabia fazer.
E talvez tenha sido isso o que me machucou mais e por mais tempo. A crítica de uma pessoa simples contra outra pessoa simples. O ódio de um pobre contra outro pobre, que se revelava na escrita "errada". E mais do que isso. A atitude de humilhar alguém pelo seu ofício: "VAI PLANTAR MUDAS, QUE É TUDO QUE VOCE SABE FAZER!"
Via-se que Fulano era um oprimido que carregava todo o discurso do opressor. O discurso da destruição e do ódio. Sem saber que "plantar mudas" é o trabalho mais nobre que pode existir.
A gente precisa de quem plante. A gente precisa de vida, de nutrição. A gente precisa de quem cultive amor e de quem saiba cavucar a terra. O mundo quer é isso: gente que plante mudas, gente que use a mão.
Eu comecei o texto em mim.
E me expandi em João.
Polinizemos a paz.
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Quem tem medo do bicho homem?
Eu tenho medo. Eu tenho cansaço. Eu tenho esperança. Depois tenho mais medo. Mais cansaço. Esperança. Exaustão.
E tudo se repete.
E o homem, também, se repete.
E eu tenho mais medo.
Ah, se bastasse não ouvir! Excluir as pessoas de suas redes. De suas vidas. Mas elas existem no mundo. Pior: elas representam as pessoas que existem no mundo. Ah, as pessoas médias! Elas existem e falam.
As pessoas médias não se cansam de falar. Elas disseminam seus discursos de ódio. Elas falam que todos os meninos de rua deveriam ter sido mortos na chacina da candelária, pois deixaram um sobrevivente, e ele matou uma professora no ônibus 174. Elas falam. Elas defendem que pobre é bandido e que bandido tem que morrer. E que direitos humanos o quê. As pessoas médias não querem direitos humanos, querem direitos do consumidor. Querem iphone sem imposto. As pessoas médias acham normal e confortável e seguro que o dono do restaurante expulse o mendigo agarrando-o pelo braço. As pessoas médias se omitem. E o índio continua morrendo. E a história se repete e se repete e se repete. E o bicho homem continua confundindo união com homogeneidade. Hegemonia cultural, racial, econômica. O bicho homem deixa seu igual morrer de fome. O amor, mesquinho, não tem amplitude para se estender além de seus territórios: alguns poucos familiares, amigos, objetos. O bicho homem ama seus objetos.
Mas eu tenho medo do bicho homem. Às vezes eu tenho esperança. Mas eu me canso. Eu fico exausta. Eu silencio.
E isso é só um desabafo.
E um apelo:
Manifestem-se, pessoas extraordinárias! Dancem o amor! Espalhem o amor! Pintem o amor, que está tão difícil de se ver! Falem nele! Gritem-no! Evoquem-no em fogueiras e rituais! Liberem o amor com suas esquizofrenias dos manicômios! Desgarrem-no dos livros das escolas, desordenem-no! Eu preciso das pessoas extraordinárias!
Eu preciso acreditar no bicho homem.
terça-feira, 6 de agosto de 2013
Mais da Alegria
E passei o dia simpática às três senhoras sobre as quais me contou Dona Nazaré: Mimosa, Alegria e Delícia. É claro que, com esses nomes, só podiam ser portuguesas. Uma mulher chamada Delícia não passaria pelo crivo da malícia brasileira. Acho bonita a Inocência. E eis que temos um novo nome.
"A Alegria morreu. A Delícia se mudou. E a Mimosa continua lá". - me contara Dona Nazaré. E eu sofri pela morte da Alegria como se a conhecesse desde sempre.
Mas hoje acordei com uma nova Alegria. Uma história acontecida, que às vezes me volta à mente.
Nathália e Fabrício moram comigo. Um dia ela veio me contar o que ele lhe dissera: "Amanhã vou assistir à sua peça. Vamos eu, Fulano, a namorada de Fulano e a Alegria". Nathália estranhou: "Alegria? É o nome de uma pessoa?" E Fabrício respondeu: "É a minha namorada. É porque ela é a alegria da minha vida!"
- Mas bem que Alegria é um nome bonito! - concluí.
E depois disso pensei tantas vezes sobre como eu gostaria que os nossos nomes de pessoas fossem mais nomes de coisas do mundo. Na língua espanhola é mais comum que palavras corriqueiras e repletas de sentido transformem-se em nomes de gente. Gosto disso. Aqui, há alguns poucos. Os mais populares que consigo me lembrar são Lua e, em bem menor escala, Estrela. Parece que os astros oferecem menos perigo. A gente não quer se misturar. Às vezes a gente ainda disfarça. Letícia. Marina. Pedro. Lúcia. Renato. Beatriz: Alegria. Do mar. Pedra. Luz. Renascido. A que faz feliz.
É tão bonito ser no mundo, por que não sê-lo assumido?
Conheço algumas Jades e algumas Pérolas. Nenhuma Pedra. Conheço uma Selva. Todo mundo pergunta: "Mas é esse o nome dela mesmo?!" E é. E não é qualquer um que tem cacife para assumir um nome forte desses, mas ela tem. Conheço uma Flora. Uma Flor. Uma Rosa. Mas por que não uma Fauna? Uma Raposa? Por que não uma Árvore? Uma Floresta? Um Jardim? Um Rio? Por que não Fogo? Por que não Riso?
Ah, como seria bom contar histórias! Até as fofocas teriam um sabor diferente: "Você não soube? A Chuva largou o Orvalho e fugiu com o Oceano!"
Seria lindo povoar o mundo com mais mundo.
Quem sabe o final fosse mais feliz.
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
Vila da Alegria
Eu já evitava tomar remédios alopáticos por tudo nesse mundo. Mas aí, depois de passar mais de um mês respirando mal e acabar com febre alta no hospital, achei que seria sensato obedecer à médica.
- Mas... por que você me receitou antibiótico?
- É que seu quadro de sinusite já está muito avançado e...
Ainda tentei uma segunda opinião:
- Você acha que tenho mesmo que tomar esses antibióticos que a médica receitou?
- Lian!
Acabei tomando. E antibiótico, uma vez que você começa, tem que tomar até o fim. Programei o alarme do meu despertador para tocar no horário certo, três vezes ao dia. Mantenho ao lado da cama uma fruta para forrar o estômago. Mas ainda assim. Me sinto envenenada. O estômago que dói. Uma tontura que não passa nunca e faz com que eu sinta que corpo e alma estão desconectados. Então eu fico com raiva de ter começado a tomá-los. E sinto que não consigo me concentrar em nada e que tem uma nuvem dentro da minha cabeça e que tudo me parece alheio e que o mundo está muito barulhento.
Então eu tinha acabado de tomar meu mate com pão de queijo e broinhas de milho, como faço todas as manhãs. E voltava para casa entre apressada e furiosa. A comida que não queria parar no corpo. Eu doida por um repouso, para que o estômago se acalmasse e aceitasse o alimento que ali estava. E, se fosse para sair, que ao menos não fosse no meio da rua.
Ao chegar na vila, encontrei Dona Nazaré. Tenho que explicar que, não importa quão apressada ou furiosa você esteja, ao encontrá-la é preciso parar. Dona Nazaré é de outro tempo: do tempo em que se tinha tempo e que as pessoas se falavam e passavam horas na porta de casa vendo a vida passar. Dona Nazaré é do tempo em que se faziam serenatas na janela, e, não por acaso, foi assim que travamos contato. Estávamos tocando e cantando em casa, quando alguém resolveu que deveríamos andar pela vila. Fomos espalhando música de janela em janela. Quando chegamos na casinha amarela, um moço falou: "Vou chamar minha sogra, ela vai adorar." Cantamos para Dona Nazaré. E desde então ela sempre me sorri e me pára para conversar. E eu gosto de pensar que ainda vivo um pouco neste tempo de Dona Nazaré.
Pois hoje, quando voltava da rua, assim furiosa, assim apressada, assim tonta, assim enauseada, eis que a encontrei. E ela me perguntou, pela centésima vez, meu nome:
- Sempre pergunto, mas nunca consigo decorá-lo. Acho que é coisa da idade.
- É que meu nome é diferente mesmo, por isso é difícil de reter.
- Sabe... quem tem nome diferente são as vizinhas da minha irmã. Uma é Mimosa, a outra é Alegria e a outra é Delícia. Todas são portuguesas.
- Que diferente... são irmãs?
- Nada! Uma não tem nada a ver com a outra! A Mimosa mora na casa da frente. Ela é uma costureira famosa. A minha irmã é síndica na vila dela, sabe? A Alegria vivia rindo... A gente dizia que o nome dela só podia ser esse mesmo.
E de repente eu me esqueço da náusea e da dor de estômago e sou transportada para o tempo de Dona Nazaré e para essa outra vila, em que se tem vizinhas portuguesas chamadas Mimosa, Alegria e Delícia. E a Alegria vive rindo. E a Mimosa é costureira famosa e cheia de tecidos vibrantes. E a casa da Delícia, por que não?, deve ter cheiro de pastelzinho de belém e outros quitutes de ovos açúcar e farinha. E elas devem se reunir na porta de casa para rir da vida e, com esses nomes, só podem ser meio gordas. E, sendo meio gordas, só podem ser muito felizes. E ter maridos bem humorados e de bigode. E filhos e netos cheios de açúcar correndo e fazendo barulho, eufóricos por serem mimados em casa de avó.
Volto ao mundo e Dona Nazaré continua me contando das três portuguesas, vizinhas de sua irmã:
- A Alegria morreu. A Delícia se mudou. E a Mimosa continua lá.
Então eu tenho pressa novamente. Preciso chegar em casa e me sentar. Porque estou fraca. Porque estou tomando antibiótico e me sinto envenenada. Então eu me despeço de Dona Nazaré, entro em casa e me atiro ao sofá.
Seguro o vômito e o choro: porque a Alegria, justo a Alegria, morreu.
terça-feira, 9 de julho de 2013
O manifesto escatológico
(Parte III de "A Revolução será fofa!")
Xavier não fala em política.
Obviamente ele não é ingênuo para acreditar que exista posicionamento a-político.
Ou reacionário a ponto de desejar a manutenção do status quo.
Xavier é artista. Sabe que a Arte é, em si, transformadora. Política. Ainda que não seja ( e não tem que ser ) panfletária.
Não o objeto artístico convencionado, legitimado, exposto em museus. Mas a relação. A experiência artística, que reside no revirar, expor camadas, abrir espaços vazios. Provocar questionamentos, ainda que não verbais.
A verdadeira experiência artística reside em ampliação, comunhão. Ou seja: Amor. É extremamente político isso. Porque não se encerra em si. Tudo é problema meu, sim, já que sou tudo isso: o mundo.
Xavier é artista performático. Sua expressão é seu corpo, que ele não vende. Xavier rejeita os espetáculos midiáticos, apesar do porte de galã.
Sua tática é deslocar sentidos e usos convencionais. Posar todas as manhãs como esfinge sobre a pia. Depois se atirar à nossa frente na escada, barriga para cima, boca aberta. Provocar estranhamento. Eliminar fronteiras. Então, como um cachorro, ele arfa, com a língua para fora da boca. Depois senta-se de bunda no chão e lambe sua barriga rosada de porquinho. E assim nos lança no incômodo espaço da indefinição.
No outro dia estávamos no quarto. Xavier queria que eu abrisse a porta para ele sair. Mas, diferentemente dos gatos convencionais, que miam seu protesto perante a porta, ele preferiu performar artisticamente em nome de sua causa. Arrastava-se de lado, conseguindo impulso no colchão. Pulava na cama, recomeçava o circuito.
Eu, em meu abuso de poder, entendi o que ele queria, mas a cena era tão divertida, que o mantive lá, para que o espetáculo não terminasse. Sem se alterar, Xavier subiu em minha cama mais uma vez. Posicionou-se sobre minhas roupas.
E fez um cocô-manifesto.
Xavier tem essa arte agressiva. Fétida. Sensorial. Ele dispensa palavras: joga sobre a pilha de roupas limpas o choque da merda. Lança-nos no abismo da falta de sentido. Da escatologia, em seu sentido original. Pois escatologia não se refere necessariamente ao que é nojento, mas ao fim das coisas (por isso o que sai do corpo é escatológico), ao sentido último: Para onde vamos, afinal?
E a verdade é que não sabemos para onde vamos. Mas Xavier segue abrindo espaços vazios, questionamentos. Ele performa o ilógico e acha linda a indefinição. É preciso que haja Arte para que haja transformação. É preciso que não saibamos exatamente aonde vamos chegar. É preciso criar uma forma completamente nova: uma outra linguagem, uma outra visão.
Tem que ser imprevisível, para que seja Revolução.
segunda-feira, 8 de julho de 2013
Gatos de todo o mundo: Uni-vos!
(Parte II de "A Revolução será fofa!")
Jonas sabe que a história é a história da luta de classes.
Quando me aproximo para fazer carinho, ele sai correndo e se posiciona em um lugar seguro, para me observar. Só baixa a guarda raríssimas vezes. Quando ele dorme, por exemplo, sento-me ao lado dele devagarinho e começo a acariciá-lo. Ele gosta do toque ainda inconsciente e, quando desperta, já foi conquistado. Então me afasto, e ele até solta seu miado infantil, para que eu volte a lhe dar carinho. Mas são raras as ocasiões.
Ele tenta manter-se alerta: não quer se deixar ludibriar. Sabe que a mão que alimenta é a mesma que priva, e a mão que acaricia é a mesma que encarcera. São sutis, os mecanismos de dominação.
É preciso que a classe mantenha-se unida. Por isso ele se alinha a Serafim. Mais tarde a Xavier. Tenta cooptar Floffy, que permanece hostil. Floffy não acredita em partidos, associações ou qualquer forma de organização política. Jonas, pelo contrário, defende que a classe só conseguirá que suas reivindicações sejam atendidas se miarem juntos e com pautas bem definidas.
É ele quem lidera o movimento que vai bater à porta do meu quarto quando o prato está vazio. Jonas não quer comida para ele, apenas: quer ração suficiente para todos. Mais ainda: quer presunto, arroz, iogurte. Pois ele não aceita como naturais os privilégios humanos. Jonas luta por condições dignas. Água fresca, por exemplo. Xavier sobe na pia, e eu lhe abro a torneira, deixando cair um filetezinho, que ele bebe satisfeito. Mas Jonas não se deixa corromper: se não for para todos, não serve.
Todos: a classe. Enquanto a divisão de classes existir. E Jonas mantém os olhos e os ouvidos bem abertos, atento para as vozes dissonantes. Ele logo reconheceu uma delas quando trouxemos Ringo, um cachorro carente e estabanado. Ringo, à sua maneira atrapalhada, tentou socializar com os gatos. Jonas foi o primeiro a se opor. No início assustou-se com ele, é verdade, pois Ringo, na sua falta de jeito, tentava se aproximar aos pulos e latidos, ainda que com a melhor das intenções. Depois, mudou de tática, chegando perto delicadamente, com choradinha ansiosa. Mas Jonas manteve-se firme. Não deixaria um cachorro infiltrar-se naquele movimento, por simpático que fosse Ringo: gatos e cachorros mantêm disputas históricas.
Jonas preserva o foco, mas sabe que nenhuma luta tem sentido senão pelo amor. Pela coletividade. Ele gosta de dividir com os seus. Principalmente as alegrias. E a maior delas: as baratas. A caça a esses insetos é o esporte que une todos os gatos. Até Floffy entra na equipe. Jonas vibra, vibra muito. É bonito de se ver. A cumplicidade entre eles, com uma barata em mãos. O barato é quando ela ainda está viva, mas já dominada. Ela tenta se esquivar, Jonas atira-se sobre ela e encara Xavier. Entrega-lhe o inseto. A dádiva. A alegria. Gol.
Mas ele permanece atento. Alerta a cada movimento, felino e humano. Ele sabe como nós, detentores dos meios de produção, podemos restringir a liberdade. Abrir e fechar portas, armários e torneiras. Expulsá-los de cima da cama ou do sofá. Ou simplesmente privá-los de direitos básicos, como ração ou higiene na caixinha de areia. Por isso ele fica de olho quando entro no banheiro e Xavier me acompanha, querendo que lhe abra a torneira. Aviso: "Vou tomar banho, tem certeza de que vai ficar aqui dentro?" Xavier tem certeza. Tranco a porta e, assim que entro debaixo do chuveiro, Jonas começa a miar do lado de fora. Ele me acusa de manter Xavier aprisionado. Faz um escândalo. E imediatamente Xavier, também, começa a miar do lado de dentro. Repito que só poderei abrir a porta ao final do meu banho. Eles não se calam. E eis que a voz popular fala mais alto. Me enrolo na toalha, abro a porta, e os dois saem correndo saltitantes, juntos e cúmplices.
Sem perder a ternura...
quarta-feira, 3 de julho de 2013
A Revolução será fofa!
Semanas atrás, flagrei uma foto de Floffy cheia de espuma
entre os dedos, resultado do grande buraco que ela abria no sofá. Os mais conservadores tacharam-na de vândala
e baderneira. Hoje ficou provado: não era. Floffy apenas construía sua casinha,
operária que é, com sua garra e o suor de seu trabalho. Pelo direito à moradia.
À la Che, Floffy não perde a ternura jamás. Esfrega-se em
nossas pernas e sobe em nosso colo na primeira oportunidade. Aliás, ela sabe
reconhecer as oportunidades. Manifesta-se pelas causas que julga importantes,
nos momentos mais apropriados. Quando estudo, por exemplo, ela resolve ocupar a
mesa e deitar-se exatamente sobre o livro que leio, ou o caderno onde faço
anotações. Ela sabe que, para transformar, tem que desorganizar um pouco. Floffy reivindica visibilidade. Às vezes tenho que tirá-la à força. Ela sabe
que as forças são desiguais, mas ainda assim não deixa barato: revida com uma
patada.
E protege também seu corpo e seu direito sobre ele. E, sobretudo, não esquece sua história de dominação. Ela traz a viva memória de sua castração, anos atrás. E por isso rejeita Nathália, que a levou para o veterinário, cuidou dela e trocou seus curativos no período, como já fui, também, rejeitada por Jonas pelo mesmo motivo. Na época, eu queria explicar-lhe que era para seu bem. Mas como dizer-lhe isso, se nem eu estava convencida? Era para seu bem ou era para a tranquilidade de nossa casa, com seus móveis e moradores? Era por bem ou por controle? Eu não sabia. A verdade é que levei-o para ser castrado por insistência dos outros habitantes da casa. É que sobre o poder há um outro poder e assim por diante.
Depois Jonas esqueceu e parou de se esconder ao me ver. Mas Floffy não esquece. Ela sabe que, para que a luta tenha sentido, não pode perder a história de vista. A memória é arma.
Mas Paulo Freire já dizia que, "quando a educação não é libertadora, o oprimido quer ser opressor". Floffy quer. E por isso se alia ao Poder Econômico: nós, os humanos. E adquire alguns privilégios, como dormir na cama quentinha. Sim, ela se alia a nós e se opõe aos outros gatos. Mas sabe bem quem somos e não perde oportunidade de pisar sobre mim durante a noite ou de, sorrateiramente, beber água do meu copo sobre a mesa.
E, sem que se perceba, Floffy muda a rotina e a geografia da casa. Come flores e vomita suas pétalas pelo chão. Constrói uma casinha no buraco que abre no sofá. Derruba a pilha de livros sobre a cômoda. Ocupa os espaços, todos eles.
A Revolução será fofa!
quinta-feira, 27 de junho de 2013
As cidades e as nuvens
Diziam que haveria uma Super Lua. E eu fui passar a noite na Pedra da Gávea para encontrá-la. Luz, naqueles dias, era coisa escassa, e cada um procurava-a como podia. Os tempos andam nebulosos. O céu também, com suas nuvens negras. A noite foi fria e um pouco chuvosa. Lua não houve, a não ser por um segundo, antes de voltar a desaparecer na escuridão. E de repente era manhã de novo, sem que pudéssemos ver o Sol nascer.
Foram assim os últimos dias. A gente escala montanhas em busca de um pouquinho de luz e encontra mais névoa. Então a gente se perde nas trilhas, por indefinição dos caminhos. "Você não tem medo dos bichos da floresta?", me perguntou uma amiga. Eu não. Eles é que têm medo de nós.
A selvageria da cidade.
Mas é que no meio da selva também é possível a delicadeza. Por isso fui a São Paulo, encontrá-la, mesmo que rapidamente. Era a qualificação do doutorado da minha irmã de alma, a Júlia. Passamos metade do dia caminhando, então começou a chover e nos escondemos em um café. A gente falava em um outro mundo, como a gente sempre fala. Eu questiono, e Júlia, sem perceber, responde em versos.
Digo-lhe que não acredito em mudanças que não partam do Amor, o grande. E que não acredito em iluminação pessoal que não chegue ao social. Que não acredito em iluminação vertical. E me volta à cabeça o comentário de um amigo, tentando me agradar, quando eu discutia questões sociais: "Não perca seu precioso tempo com isso. Ilumine-se!" E eu respondia mentalmente: "Iluminar-me como? Praticando minha Yoga, alheia ao mundo? E, se assim for, meu tempo é precioso por quê?" É que, a meu ver, iluminação é, antes de tudo, Amor: comunhão. Oposto de Ego, que nos separa do todo que somos. Por isso acredito que, no caminho da iluminação pessoal, é impossível que não nos deparemos com o social. Porque, quando ampliamos em Amor, não mais podemos dizer que o problema do outro nada tem a ver com o meu.
Isso tudo eu compartilhava com a Júlia, explicando-lhe, porém, que não acreditava em revoluções a partir de teorias, por certas que elas fossem. Só acredito nas transformações efetuadas a partir da experiência do Amor. E Júlia me contava sobre Feuerbach, sobre a semelhança entre nossos pensamentos. E acrescentava, explicando-me que esse tipo de experiência só é possível quando se tem condições mínimas. Quando se tem o que comer. Quando se tem tempo. O tempo da experiência e do silêncio. Por isso a importância das pequenas medidas, como redução da jornada de trabalho. Porque uma coisa não precede a outra. O Amor realiza as mudanças, enquanto as mudanças realizam o Amor. Júlia me fala em transformação nessa linguagem que eu entendo, pois disso ela é feita.
Júlia me dá esperança, mas no dia seguinte tenho um choque de realidade. Alguns choques, na verdade. Entre eles, fico sabendo do que se passa no Rio: o número de mortos aumentando na Favela da Maré, em um confronto com a polícia. Não vejo mobilização significativa da classe média que tem ido às ruas nos últimos dias. Vida na favela vale menos? Engulo em seco. Então de que serve tudo isso? Pra mim, se não for por todos, as nossas lutas perdem o sentido. Saio em dilúvio. Chove forte em São Paulo, e caminho molhada pelas ruas. Paro em um sinal. Um moço pergunta se não quero entrar embaixo de seu guarda-chuva. Agradeço e recuso, explicando que já estou molhada mesmo. Atrás de mim, aparece uma senhora que, sem perguntar, me abriga com seu guarda-chuva. Sorrio. O sinal abre e saio agradecendo aos dois. Confirmo: na selva é possível, sim, a delicadeza.
E penso em como eu queria um mundo com mais Virgínias, Júlias, Leilanes. Descubro mais: Marílias. E mais: Jadires. Depois penso que, entre todos, era o Profeta Gentileza quem mais tinha razão.
Pego um ônibus e volto ao Rio de Janeiro. Logo que desço na rodoviária, um policial me aborda, pedindo para revistar minha mala. Remexe tudo, faz perguntas e acaba me liberando.
Saio aliviada, por ele não ter encontrado as esperanças - tão pequenas - no bolso do meu vestido.
sexta-feira, 21 de junho de 2013
Relato de guerra
( relato originalmente postado em rede social em 21/06/13)
Depois de dois dias grudada no computador, lendo e debatendo muito sobre nossos caminhos, ontem acordei buscando movimento. Computador desligado. Era hora de me alimentar de outras energias. Fui à papelaria comprar cartolina e, chegando em casa, espalhei as tintas e pincéis no chão. Isso por si só é alegria. Fiquei pensando no que escrever no cartaz. Pensava em frases das canções do Belchior, que são lindas, atuais e me acessam muito diretamente. Palavras de amor, sentido último e primeiro. Escrevi qualquer coisa assim, frente e verso, mas logo quis comprar outra cartolina. Senti necessidade de ser pontual, para deixar claro qual é minha luta. Afinal, a favor do amor todos somos. Pelo menos em teoria.
Saí de casa com o rosto pintado de índia: outro posicionamento estampado na cara. Quis clareza, desta vez, em meio a esse campo obscuro das lutas. Peguei o metrô com três amigos, que estavam vibrantes por participarem de uma manifestação. Desabafei que não estava na mesma sintonia. Ia. Mas com um frio no peito. Tinha medo. Uma das amigas, sorrindo, disse "eu não". Repliquei que respirara gás - muito gás - no domingo. É. Agora já conheço o medo. Vinagre na mochila, por garantia. Pés no chão. Um deles ainda machucado da manifestação anterior, mas insisti nos chinelos.
Cheguei à Presidente Vargas levantando meu cartaz. De um lado, a obviedade de que o custo do "não-aumento" das passagens tem que ser retirado do lucro das empresas de ônibus. Do outro, a frase "Faça amor, não faça agronegócio", sugestão da minha amiga Júlia. Mal chegamos, me separei do grupo que saiu de casa comigo. Minha energia era outra. E eu me sentia só. Saí andando, cartaz no alto, para que o máximo de pessoas lesse meu recado. Senti que, naquele momento, aquilo valia mais do que gritar os uníssonos.
Assim foi por muito tempo. Um exercício de me posicionar e observar. Depois fui seguindo o fluxo da multidão, andando em direção à Prefeitura. Então a violência. Bombas de gás lacrimogêneo, vinagre e tudo isso que, infelizmente, deixou de ser novidade na minha realidade, embora nunca o fosse, na realidade de tantos outros. Então juntei minha voz às outras para chamar a polícia de covarde e cantar a música dos Titãs. Fora isso, levantava a voz para gritar que as pessoas não corressem, para que elas não se apavorassem, para que não nos pisoteássemos.
Então apareceu um grupo, rosto coberto e aparência de periferia. Quebravam tudo, com chutes, pedras e bombas. Eu só tinha vontade de pedir que não destruíssem o pequeno comércio. O pequeno. A multidão gritava "sem violência", chamando-os de vândalos e bandidos. E eu só me perguntava quem éramos nós para dizer que não quebrassem a cidade, que nunca foi deles. A violência policial, que agora se voltou também a nós, essa sim sempre lhes pertenceu. E fiquei muito triste e também temerosa. Não era um espetáculo bonito. Mas eram os frutos do que sempre plantamos, que, de súbito, se tornavam visíveis, ali, quiséssemos ou não. Uma aula de história que se nos apresentava. Pena que muitos não puderam enxergá-la. "O que a polícia tem usado contra a população são armas de guerra, para serem usadas nas favelas, não na cidade" - me vinha esse texto à cabeça (que agora reproduzi em minhas palavras), que li recentemente e nunca engoli. Então, naquele momento, me senti extremamente confusa. Se, por um lado não os apoiava, quem era eu, ou quem éramos nós, para julgá-los a partir dos critérios de uma sociedade que nunca os enxergou como iguais?
Seguimos. Entramos na Rio Branco. De repente, polícia e "bandidos". Todos soltavam bombas. Os "bandidos" soltavam bombas nas coisas, embora estilhaços tenham alcançado alguns manifestantes. Os policiais atiravam bombas de gás, não para atingir as coisas, mas as pessoas. E a classe média corria, apavorada, cercada por todos os lados. Após pedir várias vezes que não corressem, acabei correndo também. E depois de tentar entrar em várias ruas e ser impedida, voltei pela Rio Branco, cruzei a nuvem de gás na Presidente Vargas e não sabia o que fazer, quando vi um grupo de manifestantes parado em uma esquina. Perguntei aonde eles iam, pois não queria seguir sozinha. Eles disseram que eu me juntasse a eles. Paramos na porta de um hotel, São Francisco, se não me engano. Eles tentavam se comunicar pelo celular, para descobrir se havia por onde sair. Não havia. Pedi ao gerente do hotel que nos deixasse entrar, e a resposta foi negativa. A polícia passava em seus tanques, apontando metralhadoras. Quando jogaram uma bomba de gás bem na nossa frente, o gerente abriu a porta e pediu que entrássemos com calma, um a um, e ficássemos na recepção.
Ali ficamos um tempo. Alice, Leo, Nini e Olívia, o grupo que me protegeu. Sentados no sofá do hotel ainda desolados, diante do sem-sentido que se escancarara aos nossos olhos. Mais tarde o gerente disse que mandara o segurança à esquina e que a rua já estava mais tranquila, pedindo que nos retirássemos. Agradecemos e saímos. Após um tempo conseguimos um ônibus para o Méier. Só queríamos sair dali. Lá, pegamos um taxi para a Tijuca, onde uma das garotas morava, e eu segui nele para casa, dando uma volta grande, já que ouvíramos no rádio que havia confusão na Lapa, e o túnel Santa Bárbara estava fechado também.
Entrei em casa e, para meu alívio, os amigos que haviam saído junto comigo já estavam todos lá. Tentei entrar em contato com a Márcia, amiga que desencontrei. Temi por todos. Os que estavam na manifestação. Mas também por todos nós.
A manifestação de domingo me inaugurou no medo. Mas era tudo mais claro. A de ontem me apavorou. Sim, pela polícia. Mas também por nós, essa massa cuja heterogeneidade a princípio parecia positiva, mas que se mostrava cada vez mais autoritária na exigência ultra ideológica de apagar todas as ideologias. Depois soube dos acontecimentos de São Paulo, o que reforçou minha percepção. E meu medo.
Virei a noite acordada, tentando encontrar algum sentido no que não tem. Lembrei de Walter Benjamin dizendo sobre a incapacidade de os soldados narrarem suas experiências de guerra, simplesmente porque era impossível significar suas experiências. Elas nascem do absurdo. É claro que o que vivi foi em uma escala absolutamente menor. E ainda assim foi absurdo. Fiquei pensando nos discursos tão repetidos nas manifestações, sobre impeachment da presidente. Li muito. Fiquei juntando os cacos. Tive medo de estar dando volume a uma manifestação que começou bonita a partir de um movimento político (não se enganem, tudo é político, inclusive sua negação) e que ganhou uma cara que não é minha. Que é o meu oposto. E penso que as pessoas não percebem o quanto essa manifestação que pede desenfreadamente a saída da presidente, atribuindo a ela responsabilidades que nem são de sua competência, é perigosa. Que dá abertura a golpes. Militares, inclusive. E que isso não é improvável, porque uma parte muito grande dessa massa que vai às ruas é conservadoríssima. Estamos em um momento da história que parece se repetir. Algo que não vivemos, mas nossos pais sim.
É preciso cuidado. O momento é delicado.
E, assim, me retiro das manifestações.
PS: E depois desse relato longuíssimo esqueci um detalhe importante: ontem de madrugada, desabafando com minha amiga Joyce, ela me falou que mora muito mais perto dos morros do que eu. Conhece as pessoas de lá. E que esses que quebraram tudo são DIFERENTES. Fisicamente diferentes, ela disse. Opa. Tem uma peça aí que se encaixa com uma desconfiança nossa.
Por um mundo descalço
(relato originalmente postado em rede social em 16/06/13)
Eu só sei que, em um momento, cantávamos o hino nacional e gritávamos palavras de ordem. No outro, corríamos das bombas de gás. Eu caí no chão, duas pessoas pararam pra me ajudar. Tratei de catar meus chinelos caídos e corri. Nos encolhemos em uma esquina, atrás de um carro. Todos tossiam, choravam, cuspiam. Pensei que fosse parar de respirar. Uma menina tirou um vidrinho de vinagre, passei no rosto e fiquei melhor. Subi a rampa do metrô e fiquei meio incrédula olhando os policiais. Eu só pensava em chegar bem perto e perguntar se eles conseguiam dormir. Se não tinham vergonha. A gente chorava pelo gás, mas muito mais de tristeza e indignação. Houve um momento em que eu e uma menina nos olhamos, de repente nuas e iguais. Nos abraçamos e ficamos assim um tempo. Depois vi que meu dedão estava inchado e sangrava. Era só o dedão, mas doía e atrapalhava a pisada. Me vi andando como uma velhinha e percebi como, sim, envelheci nessa tarde. "Chinelos podem ser bons para trilhas, mas não servem para manifestações", pensei. E me lembrei de quando, após subir o Pico da Bandeira, fui subir o do Cristal. Tirei a bota e fui descalça, pois meus pés dão segurança na escalada. "Não machuca?", várias pessoas me perguntavam. Machuca. Tenho que olhar por onde piso, evitar os espinhos e os cascalhos. E quando, na volta, recuperei as botas escondidas na moita, me dei conta de que podia pisar em tudo sem tomar cuidado. E que assim acabava pisando nos galhinhos e plantinhas. Pensei que, calçada, sou um monstro. E me dei conta: "Botas são tanques de guerra". E assim é o Poder. A gente pisa onde quer, sem olhar, e não sente nada.
Por um mundo descalço.
Eu só sei que, em um momento, cantávamos o hino nacional e gritávamos palavras de ordem. No outro, corríamos das bombas de gás. Eu caí no chão, duas pessoas pararam pra me ajudar. Tratei de catar meus chinelos caídos e corri. Nos encolhemos em uma esquina, atrás de um carro. Todos tossiam, choravam, cuspiam. Pensei que fosse parar de respirar. Uma menina tirou um vidrinho de vinagre, passei no rosto e fiquei melhor. Subi a rampa do metrô e fiquei meio incrédula olhando os policiais. Eu só pensava em chegar bem perto e perguntar se eles conseguiam dormir. Se não tinham vergonha. A gente chorava pelo gás, mas muito mais de tristeza e indignação. Houve um momento em que eu e uma menina nos olhamos, de repente nuas e iguais. Nos abraçamos e ficamos assim um tempo. Depois vi que meu dedão estava inchado e sangrava. Era só o dedão, mas doía e atrapalhava a pisada. Me vi andando como uma velhinha e percebi como, sim, envelheci nessa tarde. "Chinelos podem ser bons para trilhas, mas não servem para manifestações", pensei. E me lembrei de quando, após subir o Pico da Bandeira, fui subir o do Cristal. Tirei a bota e fui descalça, pois meus pés dão segurança na escalada. "Não machuca?", várias pessoas me perguntavam. Machuca. Tenho que olhar por onde piso, evitar os espinhos e os cascalhos. E quando, na volta, recuperei as botas escondidas na moita, me dei conta de que podia pisar em tudo sem tomar cuidado. E que assim acabava pisando nos galhinhos e plantinhas. Pensei que, calçada, sou um monstro. E me dei conta: "Botas são tanques de guerra". E assim é o Poder. A gente pisa onde quer, sem olhar, e não sente nada.
Por um mundo descalço.
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Tererê
Odeio salão de beleza. Odeio. Fazer cabelo, fazer unha e essas coisas todas.
Gosto de pentear meu cabelo com os dedos mesmo. Não tenho pente, nem escova, nem secador e nenhuma dessas parafernálias em casa.
Gosto de mãos limpas. Acho bonito. Unha com cor de unha. Coisa minha.
Mas o motivo principal pelo qual odeio salões é que é tudo tão demorado. Daí a gente passa a tarde lá, esperando. A mulherada conversa sobre tudo. E eu me sinto sempre menos mulher. Pelo menos desse tipo de mulher de classe média que anda com cabelo e unhas arrumados. Meus pés são ásperos de andar no mato descalça. E eu não gosto dessa demora sentada, me sinto um E.T., que não sabe interagir, não sabe conversar sobre a novela, o namorado e as roupas. Não sabe folhear Revista Caras, nem Capricho, nem Marie Claire, sem se sentir meio tonta, meio ansiosa pelas exigências do consumo, meio feia diante das modelos lindas.
Odeio salão de beleza. Odeio.
Mas adoro fazer tererê. Na areia, no calçadão, em alguma cidadezinha perdida por aí.
Acho bonito, também. Mas o motivo principal pelo qual adoro fazer tererê é que demora.
Eu gosto dessa demora sentada, me sinto humana.
Aproveito o tempo para papear. Às vezes passa alguém e gosta, senta ao nosso lado no chão, entra na conversa. Eu pergunto de tudo. Gosto de saber da vida das pessoas.
"A gente passa por muita dificuldade, com polícia principalmente. As pessoas já têm preconceito contra preto. Hippie e preto, então, fodeu." - alguém me conta. De vez em sempre faço tererê com algum dos irmãos latino-americanos: um boliviano, um colombiano, uma argentina. Um deles me contava sobre a violência de seu país, sobre os tantos amigos e parentes perdidos. Eu sempre tento reter, mas confesso que nem sempre consigo entender tudo o que eles dizem.
Certa vez fiquei conversando com um hippie que estava começando a se estabilizar e tinha arranjado uma casinha no morro: "Ainda quero que você conheça a minha casa. Quem sabe um dia a gente acabe se casando." Quem sabe. A gente não sabe de nada, mas eu fico tentando entender.
"Meu tererê é diferente, é indígena." - me explicou um índio, trançando meu cabelo com linhas em estilo macramê. Sinto não saber de que povo ele era. Ele repetiu duas vezes, mas eu, diante da palavra desconhecida, perdi no ar a informação. "Nós não existimos mais como povo, pois nossa área foi destruída." - contou. Perguntei de que estado era a família dele. "Da Amazônia. Na verdade, da Amazônia boliviana, mas pra gente não existe essa diferença, Amazônia é uma coisa só".
"Quer uma miçanga na ponta?" Quero. Uma conchinha também.
De repente está pronto meu tererê.
E vou embora mais mulher.
Assinar:
Postagens (Atom)